Carlos Vaz Pinto é originário de Penalva do Castelo, mas o seu nome é conhecido por todo o Mundo, depois de aventuras na Europa, África e Ásia com sucesso, deixando a sua marca e o seu futebol ofensivo. Começou a temporada no Mafra, mas encontra-se em busca de um novo desafio para a sua carreira, abrindo as portas aos quatro cantos do planeta, mas com objetivos sólidos. É o mais recente convidado do Bola na Rede.
Bola na Rede: Carlos Vaz Pinto, em primeiro lugar, agradecer teres aceitado o nosso convite para esta entrevista.
Carlos Vaz Pinto: De nada, um gosto estar aqui.
Bola na Rede: Fizeste uma carreira de jogador baseada na zona Centro de Portugal, com uma passagem pela Madeira. Quando é que decidiste ser treinador?
Carlos Vaz Pinto: Ainda foi quando estava a jogar. O meu último treinador, que esteve comigo em grande parte da carreira no Penalva do Castelo, foi muito importante. Quando terminei a minha formação académica, regressei a Penalva. Enquanto jogador formei-me no Académico de Viseu e fui emprestado ao Tondela, na altura do serviço militar. Fui campeão enquanto júnior e subi de divisão com os séniores do Académico de Viseu, na célebre subida nas Caldas da Rainha. Por via dos salários em atraso no Tondela, optei por voltar a estudar. Fiz o curso de Educação Física e regressei a Penalva, a minha terra natal. Passei por várias equipas, como o Fornos de Algodres, o Oliveira do Hospital e voltei novamente a Penalva do Castelo. Quando acabo o curso fui para a Madeira, porque vinculei lá, no quadro do Ministério da Educação, como professor e atuei no Machico. Em seguida, esse meu treinador convidou-me para voltar ao Penalva, para jogar. Eu já tinha o curso e era um dos capitães da equipa, mesmo tendo saído para o Machico. Ele disse-me “Um dia vais ser treinador, podias começar aqui com os nossos miúdos, no futebol de 7”. Eu comecei a coordenar a formação da equipa e comecei pelos Sub-13, chamados de infantis. Foi assim que passei a ser treinador. Acabava por ter três empregos. Lecionava na escola durante o dia e às 18 horas dava o treino dos miúdos, já com o equipamento dos seniores por baixo e às 19h30 acabava o treino com eles e começava o meu com os seniores. Eram sete dias de trabalho. Havia os jogos dos miúdos e os meus. Estive assim desde 2003 até 2007, quando terminei a carreira.
Bola na Rede: Como é ter três trabalhos e apenas 24 horas por dia?
Carlos Vaz Pinto: Não é fácil, mesmo nada fácil (risos). Ainda para mais, quando regressei da Madeira eu estava colocado em Condeixa a Nova. Ia todos os dias de Viseu para Condeixa dar aulas, uma hora e qualquer coisa. Depois voltava, ia a Penalva dar o treino e treinar e depois regressava. Foi muito difícil. Eram sete dias da semana a um ritmo alucinante. Com o Penalva estávamos na Terceira Divisão Nacional, mas em 2004 fomos campeões e promovidos à Segunda Divisão B. Tínhamos uma equipa muito competitiva. Era um dos principais jogadores, passando a modéstia. O rendimento era exigido e não era fácil. Mas valeu a pena, porque me deu ferramentas que foram muito importantes para o meu futuro. Foi o que me alimentou o ‘bichinho’ de ser treinador, embora não ambicionasse ser técnico profissional. Ou seja, quando aceitei o desafio era apenas um professor que tinha as minhas aulas e o meu emprego. Sou ainda do quadro do Ministério da Educação, encontro-me é com uma licença sem vencimento de longa duração. O meu projeto de vida passava por lecionar e ao fim do dia treinar, mas a minha ambição não passava por orientar os seniores. Nesse momento não tinha um plano de carreira.
«O meu projeto de vida passava por lecionar e ao fim do dia treinar, mas a minha ambição não passava por orientar os seniores. Nesse momento não tinha um plano de carreira».
Bola na Rede: Hoje em dia vemos cada vez mais jovens a quererem ser treinadores, tanto na formação, como nos seniores. Acreditas que vai continuar a ser uma tendência?
Carlos Vaz Pinto: Tenho algumas dúvidas. Não te sei responder de uma forma exata a essa questão por dois motivos. Somos muitos em Portugal. Eu vi na Associação Nacional de Treinadores de Futebol, da qual eu sou sócio, que somos oito mil. Atingimos um número altíssimo de treinadores para o mercado que temos. Somos muitos para um mercado tão pequeno. E quando falo em mercado é da parte profissional. Há espaço para haver muitos treinadores jovens, mas no espaço profissional é muito limitado. Há 18 clubes na Primeira Liga, outros 18 na Segunda Liga e mais alguns na Liga 3, mas não haverá assim tantos também a viverem exclusivamente do futebol. Espero que isto não desmotive a classe dos treinadores. Eu digo isto porque somos oito mil sócios, mas na minha equipa técnica em Mafra éramos nove treinadores e apenas eu era sócio. Imagino a quantidade de treinadores que existem em Portugal, com qualidade. Eu defendo que as pessoas não devem deixar de acreditar, mas podem também olhar para o exterior, eu acabei por fazer um bocadinho isso, a minha trajetória acaba por ser muito lá fora. A determinada altura percebi que o mercado português era muito competitivo e agressivo, com poucas vagas para tanta gente.
Bola na Rede: Em seguida vamos falar sobre a tua passagem pelo estrangeiro, que é interessante, mas antes vale a pena abordarmos um ponto. Passaste vários anos como técnico na formação da Académica, um histórico nacional. Como era o estado do clube na altura? Esperava-se a quebra que acabou por acontecer?
Carlos Vaz Pinto: Em termos desportivos era um clube muito forte. Era um clube que ganhou a Taça de Portugal, recordo-me dessa vitória. Também me lembro de equipas muito competitivas, com treinadores de nome. Estive três anos como coordenador de formação e estive nos Sub-19 como técnico, dois anos e meio e uns meses nos Sub-14. Recordo-me que nessa altura passaram na equipa sénior treinadores como Domingos Paciência ou o Pedro Emanuel. O Domingos fez um trajeto enorme, acho que acabou prematuramente a carreira. O André Villas-Boas iniciou a carreira nessa altura. O Jorge Costa também esteve por lá, o Paulo Sérgio igual. Com toda a certeza estou-me a esquecer de alguns. A Académica tinha resultados desportivos, mantinha-se sempre. No entanto, viam-se algumas dificuldades. A infraestrutura estava muito à frente para a época, para a dimensão do clube, era muito interessante. Mas percebia-se que existiam algumas dificuldades financeiras, que estas começavam a existir. Não havendo a criação de uma SAD, pela tradição da Académica, toda a relutância de criar a tal SAD…. Não estou a dizer que a SAD fosse a solução, mas percebia-se que poderia ser uma solução para que a Académica não caísse na Liga 3, como acabou por acontecer. Previa-se um pouco isso, com muita pena. Em termos de formação, em função do enquadramento geográfica de Coimbra, conseguíamos dominar a zona Centro, tínhamos uma grande capacidade de recrutamento. Conseguimos resultados muito interessantes. Conseguimos colocar cinco jogadores na seleção de Portugal Sub-18, havia capas de jornais a dizer que a Académica ‘mandava’ na seleção nesse escalão. O normal é o Sporting, o Benfica e o FC Porto dominarem as convocatórias, mas aqui éramos nós. Vários jogadores foram internacionais, muitos no ano seguinte jogaram em Toulon. Era um clube que tinha capacidade para atrair bons jogadores e foi uma pena em termos desportivos ter caído para a Liga 3. É um histórico, que tem capacidade e infraestruturas para estar em outro nível.
Bola na Rede: Em 2012 vives o teu primeiro período no estrangeiro, rumado ao Recreativo da Caála. Como se deu o convite para rumares a Angola? Inicialmente até foste como adjunto…
Carlos Vaz Pinto: Sim, eu vou como adjunto, um bocadinho na perspetiva de médio prazo passar para treinador principal. Quem me convidou foi o diretor geral do clube na altura, o senhor António Luís. Eu tinha trabalhado com ele em Coimbra e ele foi para o Recreativo da Caála. Eu na altura já lecionava em Coimbra, porque acabei por concorrer no centro de Coimbra, de maneira a evitar o que tinha na altura no Penalva, em que ia para Condeixa a Nova. Assim ia de manhã para Coimbra e passava lá o dia inteiro. Um dia, ele vem de férias e acabámos por nos encontrar em Coimbra, num supermercado (risos). Ele disse-me “oh professor nós vamos precisar de alguém lá para o clube, quem terminou a época foi o analista, como treinador principal. Ele vai iniciar a época, mas queremos um treinador português e ele vai fazer a transição. A meio do ano de uma maneira pacífica, porque sabemos que ele não tem capacidade para ser treinador principal, vamos mudar. As funções dele são de analista. Quem for para adjunto mais tarde vai ser principal. O professor era um bom nome, tem muita ligação à formação, de potenciar miúdos”. Eu tinha estado na Académica, até estava na altura do Sertanense, para onde levei miúdos da Académica. Alguns até jogam na Primeira e Segunda Liga hoje em dia. Ele convida-me e eu disse para me fazerem uma proposta, para analisar. Ele enviou-me a tal proposta de contrato para o mail. Quando lhe disse aquilo, falei porque tinha com ele uma boa relação, mas nunca pensei que se iria concretizar.
«Quando fui para Angola, acreditei que seria só um ano. Acabaram por ser três anos e a meio do primeiro ano passei a ser treinador principal. Nessa época chegámos à final da Taça de Angola. Para uma equipa digamos pequena, chegar à final da competição, contra o Petro de Luanda, é algo muito bom».
Bola na Rede: Foi fácil de aceitar?
Carlos Vaz Pinto: Foi um desafio interessante. Em função dos resultados obtidos na formação, já que estava a dar os primeiros passos no futebol de sénior, achava que a minha carreira podia crescer e evoluir. Coloquei uma licença sem vencimento de um ano. Tinha sempre essa questão. Se não corresse bem tinha a minha atividade profissional e podia voltar à escola. Quando fui, acreditei que seria só um ano. Acabaram por ser três anos e a meio do primeiro ano passei a ser treinador principal. Nessa época chegámos à final da Taça de Angola. Para uma equipa digamos pequena, chegar à final da competição, contra o Petro de Luanda, é algo muito bom. Não vencemos a Taça, mas acabámos por nos qualificar para a Taça da Confederação, o equivalente à Liga Europa. Para um clube daquela dimensão foram resultados históricos para o clube, para a província. Foi muito bom para mim. Eu queria ficar como adjunto, mas surgiu o convite de continuar como principal. Estava confortável como adjunto. Na época seguinte estive mais três ou quatro meses como adjunto, voltei a ser treinador principal e voltou a correr bem, chegámos às meias finais da Taça. Assim sou convidado a ficar como definitivo como treinador principal. Foi um ano como adjunto (dividido em duas épocas) e o restante como líder da equipa técnica. Foi mais ou menos fácil de aceitar o desafio, porque nessa altura já tinha ambição de experimentar o futebol profissional.
Bola na Rede: Qual era o estado do futebol angolano na altura? Era assim tão inferior?
Carlos Vaz Pinto: Eu sempre disse isto. É uma das perguntas que geralmente me fazem. Eu tenho dificuldades em ter um termo comparativo. Nessa altura, a situação de Angola era diferente. O jogador angolano ganhava tão bem, que não queria vir para a Europa. Estavam tão confortáveis ali, que não queriam sair. Hoje em dia já não é assim. Muitos jogadores deixaram Angola, outros eram filhos de europeus e a equipa do Pedro Soares Gonçalves fez um excelente trabalho no recrutamento. Fazem muito bem o trabalho de casa em perceber os jogadores que são filhos de portugueses. Naquela altura pagava-se muito bem. Muitos jogadores da Primeira Liga iam para lá. Lembro-me de ter jogado frente ao Rivaldo, que esteve no Kabuscorp. Também estava na mesma equipa o Meyong. Na Caála íamos buscar jogadores que estavam em Portugal, na Primeira e na Segunda Ligas. Estive no Libolo em 2017 e apanhei atletas que ainda estão no primeiro escalão português, como o Ricardo Batista, guarda-redes do Casa Pia. O Pires, que acho que ainda é o melhor marcador da Segunda Liga de todos os tempos, teve uma experiência em Angola que não lhe correu bem. Fez um ou dois golos no Benfica de Luanda e regressou a Portugal. Mas o nível ele era mais elevado do que aquele que era o nível médio do campeonato angolano. A adaptação ao contexto torna as coisas muito diferentes. O nível não é o mesmo do português, mas é um contexto extremamente competitivo e havia muitos bons jogadores. O Kabuscorp chegou a contratar o melhor jogador africano, era um campeonato com um nível interessante, com as especificidades grande das viagens e do clima.
«Lembro-me de ter jogado frente ao Rivaldo, que esteve no Kabuscorp. Também estava na mesma equipa o Meyong. Na Caála íamos buscar jogadores que estavam em Portugal, na Primeira e na Segunda Ligas. Estive no Libolo em 2017 e apanhei atletas que ainda estão no primeiro escalão português, como o Ricardo Batista, guarda-redes do Casa Pia».
Bola na Rede: Acreditas que é um bom local para os técnicos portugueses se desenvolverem? Temos vários casos nos últimos anos.
Carlos Vaz Pinto: Acho que é um bom contexto. A língua é um fator importante e tens uma experiência no estrangeiro. Angola e Moçambique são dois contextos interessantes para ter a primeira experiência no estrangeiro. O nível competitivo é interessante. O que pode dificultar um bocadinho é o fator económico, muito honestamente não sei como está a situação neste momento. Sei que o Ricardo Chéu está no Petro de Luanda, mas se calhar o Petro é das poucas equipas com capacidade de ter um treinador estrangeiro, além do Primeiro de Agosto, do Interclube e talvez do Sagrada Esperança. Em inicio de carreira é um contexto interessante. Com uma carreira consolidada também, se for para lutar por títulos nacionais e continentais. As competições continentais em África têm condições muito favoráveis para crescermos como treinadores.
Bola na Rede: Atingiste o sucesso em Angola, mas regressaste a Portugal, para um cargo distinto. Tornaste-te diretor desportivo do Famalicão. Porque é que decidiste dar esse passo?
Carlos Vaz Pinto: Foi um amigo meu treinador que falou comigo. Disse que me ia ligar, depois de saber que estava por Portugal. Ele disse “oh Vaz, há aqui um clube que anda em busca de um diretor desportivo, que até é mais um diretor técnico (era para assumir todo o futebol do Famalicão, no projeto que iniciou a criação da SAD)”. Era quase como se fosse um CEO, um diretor geral. O presidente disse que não tinha tempo para o clube e que eu é que ia tomar conta de tudo. O meu amigo disse que o projeto era a minha cara e eu na altura não queria ser diretor desportivo. Ele disse-me para ir ouvir a proposta e eu por consideração a essa pessoa fui ter uma reunião com as pessoas do Famalicão. Estive com o presidente, com o vice-presidente para a formação e o vice-presidente para o futebol profissional. Acabei por ser convencido, se calhar não só pela parte desportiva e pelo clube que era, mas muito pelo que senti naquela primeira impressão das pessoas. Aquilo que as pessoas valiam em termos de seres humanos. Gostei muito do contacto, da forma transparente como estavam no futebol. O Famalicão era quase como um bebé que ia estar ali a criar e criámos as bases para aquilo que é hoje o Famalicão. Todo o projeto da academia foi comigo, embora tivesse sofrido modificações. Fizemos igualmente um projeto para a remodelação para o estádio, que ainda não entrou em vigor. Também olhámos para as infraestruturas. Este cargo não tinha nada a ver com o campo e a meio da época acabo por aceitar para ir para o Libolo. Volto a Portugal em junho de 2016 e regresso em janeiro de 2017. Fui aliciado a regressar ao treino, a um clube que financeiramente tinha passado algumas dificuldades, mas que desportivamente tinha tido sucesso em Angola. Deixei o cargo de diretor desportivo, que acho que foi muito importante para mim. Deu para eu perceber o outro lado desta envolvência do futebol profissional que é a gestão do mesmo. Foi muito importante.
Bola na Rede: Ia-te mesmo perguntar o porquê da tua saída do Famalicão, mas antecipaste-te (risos)…
Carlos Vaz Pinto: E eu acrescentava que houve um desafio interessante. O Libolo tinha tido muito sucesso nos anos anteriores, mas em 2016 não o teve. Eu fui em 2017. Em 2016 eles não tinham ganho nada, mas nos anos anteriores tinham como principal objetivo chegar à fase de grupos da Taça da Confederação ou da Champions Africana. Nunca tinham chegado e há 20 anos que nenhuma equipa angolana conseguia chegar lá. Foi-me lançado esse desafio. Tinha estado na Caála e na Académica do Lobito, onde eu tinha lançado muitos jovens nas equipas principais. O Libolo não tinha dinheiro e tinha contratado alguns jogadores que já tinham estado comigo, jovens. Achavam que eu tinha o perfil de pegar num Libolo que tinha dificuldades financeiras, embora não falido. Ao mesmo tempo queriam chegar a uma fase de grupos. Acabámos por chegar até aos quartos de final da Taça da Confederação, inclusivamente. Fizemos história em Angola e foi muito interessante para nós. O objetivo foi atingido. Eu nem acabei a época, faltava um mês. Depois entrei no St. George.
Bola na Rede: Da maneira como falas do treino, a emoção que colocas nas tuas palavras, não se sentiu quando abordámos a questão da gestão no Famalicão…
Carlos Vaz Pinto: Se me perguntares hoje se me vejo nesse papel de novo, eu até me vejo. Mas não é de facto aquilo que mais me preenche. O que mais me preenche é o treino. Gostei muito do que fizemos no Famalicão. Estavam a dar-se os primeiros passos ao nível da certificação em Famalicão. Na minha carreira eu já tinha passado pela Académica. Organizar uma academia deu-me algumas competências. Antes mesmo da Académica, ainda no Penalva do Castelo, em função do Tobias Figueiredo, que sou eu que o indico ao Sporting, eu tinha uma ligação muito forte ao Aurélio Pereira. Eu bebi muito daquilo que era a Academia do Sporting e de como se organizavam. Muitas das pessoas que estavam no Sporting foram para a FPF e estabelecem a questão da certificação. Quando estou a tomar conta do futebol profissional e da formação do Famalicão, acabámos por organizar tudo muito como a Federação gostava na altura, porque os técnicos que estavam por lá eram os do Sporting e que eu conhecia. Eu sabia o que eles gostavam e quais as suas práticas. Generalizaram os restantes clubes em Portugal. O meu último ato de gestão em Famalicão é precisamente na reunião de certificação das entidades formadoras, no dia 3 de janeiro. Eles deram-nos os parabéns porque tinha sido o melhor dossier que tinham encontrado em Portugal. Eram pessoas que já conhecia e sabia o que queria instituir nos clubes. Deixa-me muito orgulhoso. A obra que hoje está na academia é um ato de gestão do Jorge Silva, que já não é presidente do Famalicão. Ao lado dele acabei por ajudá-lo dentro do que eram as minhas competências. Gosto da gestão, mas o treino é o que me preenche.
Bola na Rede: A seguir ao Libolo, passaste pela Etiópia e pelo Quénia. Como foram essas aventuras?
Carlos Vaz Pinto: Quem olha de fora e não conhece o futebol desses países vão-me chamar de maluco e de louco. O facto de ter jogado competições internacionais fez-me ter contacto com outras realidades. O Recreativo da Caála antes de eu ser treinador deles tinha jogado competições internacionais e tinha atuado na Etiópia, contra o St. George. Eu tinha ouvido algumas questões em relação a esse clube. Como é que eu vou lá parar? Na função de ter chegado aos quartos de final da Taça da Confederação, tinha algumas abordagens de clubes africanos. Na altura até tinha recebido uma proposta do Smouah, uma equipa do Egito, que era do nosso grupo nessa competição. Eu acabo por ir para a Etiópia. Como se recusa uma equipa do Egito para ir para a Etiópia? É tudo pela questão desportiva. Eu no Egito, no Smouah, eventualmente iria lutar para ficar no top-5. No St. George ia ter a oportunidade de lutar para ser campeão ou vencer títulos, além de jogar a Champions. Do ponto de vista desportivo para mim era mais interessante. O St. George é um clube muito grande. Os etíopes são cerca de 100 milhões de pessoas e cerca de 30 milhões são do Saint George. É um clube enormíssimo. O estádio está sempre cheio e proporcionou-me ganhar o meu primeiro título enquanto treinador. Foi uma aposta ganha para mim. Ganhei dois títulos, o Torneio de Abertura e a Supertaça. Fui à final da Taça, fui vice-campeão, não ganhámos o campeonato na última jornada. Esses títulos foram importantes para mim. No Quénia foi exatamente pela mesma coisa. O Gor Mahia é um dos dois clubes mais fortes do país. Permitiu-me ganhar mais um título. Quando fui para o Quénia vou já com a época em andamento, eles estavam em décimo sexto e toda a gente dizia que não íamos ganhar nada. Acabámos por ganhar a Taça e recebi uma proposta para ser adjunto do Costinha no Nacional da Madeira. Quando saí do Gor Mahia, estávamos em segundo ou terceiro, a três pontos do primeiro lugar. Ainda era possível chegar ao título, embora fosse complicado. Isto foi na altura do COVID 19, foi um ano muito desgastante. Estive lá seis/sete meses para depois regressar a Portugal, para um nível interessante. Aceitei ir para esses dois países porque são dois clubes importantes em África e são dois dos maiores clubes dos respetivos países. Permitia-me ganhar título e isso era muito interessante. Tudo isto mantendo um futebol dominador, algo que já exercia desde o Libolo. Era algo atrativo dar continuidade ao que tinha feito no Libolo.
«Quando estás em clubes grandes, que lutam por títulos, a paixão sente-se nas ruas, é incrível. Sentes-te acarinhado e que as pessoas seguem o teu trabalho. Isto é para o bem e para o mal».
Bola na Rede: O futebol nesses países conta com um nível superior ao de Angola?
Carlos Vaz Pinto: É de um nível semelhante, embora Angola tenha mais jogadores talentosos. O nível da liga é semelhante. Em Angola há muito essa paixão pelo futebol e nesses países há igualmente apaixonados. Tenho memórias incríveis da Etiópia, estádios com 60 mil pessoas. No Quénia, se não existisse o COVID 19, seria igual. São países em que adoram o futebol e é a loucura total. Quando estás em clubes grandes, que lutam por títulos, a paixão sente-se nas ruas, é incrível. Sentes-te acarinhado e que as pessoas seguem o teu trabalho. Isto é para o bem e para o mal (risos). Os treinadores são avaliados de três em três dias. Quando se ganha está tudo bem, quando se perde não é assim. Adorei trabalhar nesses dois países, embora com culturas diferentes. Na Etiópia são muito diferentes do Quénia e de Angola, porque são ortodoxos, começa logo por aí, têm hábitos muito diferentes. Têm um Ramadão, à semelhança dos muçulmanos, foram dois meses, muito agressivo. Coincidiu com a altura em que jogámos a Champions. Foi muito difícil a adaptação em termos de alimentação do jogador etíope. Foram experiências incríveis. Os dois países não se situam no top do futebol africano, mas são duas ligas interessantes, com um mercado de jogadores muito interessante. O nível da liga também tem vindo a crescer, devido às transmissões televisivas, já que agora há uma cadeia africana, que entrou nos países.
«O Famalicão pode fixar-se no top 5 português nos próximos anos. O clube merece estar ali no patamar do Braga e do Vitória SC, intrometer-se nessa luta e de uma forma consistente».
Bola na Rede: Depois dessas aventuras, foste para os Sub-23 do Famalicão. Porque aceitaste este passo, dado que estavas a treinar seniores?
Carlos Vaz Pinto: Era um escalão novo, na transição entre a formação e o futebol sénior, embora os jogadores já deveriam ser todos seniores, algo que não acontecia no Famalicão. Havia jogadores mais velhos do que aquilo que se vê hoje. Eu aceitei a proposta porque é um escalão novo e era interessante, a meu ver. Também se tratava do Famalicão. Na altura o Miguel Ribeiro, atual presidente da SAD, quando me convida começa a conversa por aí, dizendo que já tinha estado por lá, que conhecia o meu trajeto, queria convencer-me a treinar os Sub-23. Ele tinha duvidas que eu aceitasse. O facto de ser o Famalicão, que era um clube com quem eu estava em dívida, por ser um escalão interessante e por eu ter tido alguma experiência em formação, acabou por me fazer sentido. Eu gostei bastante, honestamente. Acabei por ter um grupo muito interessante de jogadores e estão quase todos a um bom nível. Há jogadores dessa equipa a jogar o Brasileirão….
Bola na Rede: Quais são os nomes mais interessantes dessa camada?
Carlos Vaz Pinto: O Clayton Sampaio, que acaba por ser vendido esta época pelo AVS ao Internacional de Porto Alegre. Foi um dos melhores defesas da Segunda Liga a época passada. Também está o Xavier, que era Sub-19 na altura e que está no Bahia, fez este ano uma época tremenda. Era o primeiro ano dos Sub-23 do Famalicão e apanhámos muitos jogadores que estavam connosco no plantel, mas eram dos Sub-19 e que não eram convocados por lá. O principal objetivo era consolidar a equipa do ponto de vista desportivo na Primeira Divisão de Juniores e paralelamente potenciar jogadores para a equipa principal. O Xavier era um desses nomes. O Luiz Júnior foi vendido pelo Famalicão ao Villarreal. Ele era Sub-19 e nós lançámo-lo nos Sub-23. O Tiago Dias agora está no Casa Pia, a jogar Primeira Liga. O Cláudio Silva está na Roménia. O João Sidónio está no Chipre e depois há vários na Segunda Liga e Liga 3. Há o Jorge Pereira no Feirense, o João Caiado no Paços de Ferreira. O Gabiel está no Tondela, é o guarda-redes suplente. O Brian Cipenga está no Castellón… Há uma série de nomes que estão a alto nível e de certeza que me esqueço de alguém. O Armando está no Varzim… Isto demonstra que o trabalho foi bem feito e foi muito interessante trabalhar com este lote de jogadores. Foi mais uma aposta ganha.
Bola na Rede: Viveste duas fases no Famalicão. Como vês o crescimento do Famalicão nestes últimos anos?
Carlos Vaz Pinto: O Famalicão tem uma massa adepta incrível. É uma cidade que respira futebol. É um clube que era um gigante adormecido, que chegou a estar até nas divisões secundárias. Eu apanhei o Famalicão na Segunda Liga, mas numa trajetória ascendente. O ano em que estive lá foi um ano de consolidação de Segunda Liga, a permanência foi atingida no final da época. O seu presidente tinha uma visão clara do que queria, de chegar à Primeira Liga e como o que queriam fazer. Assim consolidaram o clube na Primeira Liga, através de um investidor, que foi muito importante. A entrada depois do Miguel Ribeiro aumentou também o nível, com a sua vasta experiência, acabou por trazer para o Famalicão outro conhecimento, outros contactos, foi uma mais valia. O projeto está a ter resultados desportivos muito interessantes e do ponto de vista económico tem sido tremendo. Olhamos para equipas de topo e vemos jogadores que passaram pelo Famalicão nos últimos anos. Acho que o clube vai continuar a crescer. Necessita claramente de um estádio com outras condições para os adeptos, os adeptos merecem outro tipo de condições, porque são muito vinculados ao clube. Quando isto acontecer, com a academia que já tem, com toda a envolvência pelo futebol, o Famalicão pode fixar-se no top 5 português nos próximos anos. Eu acho que é isto que as pessoas também querem, não sei se será assim. O Famalicão merece estar ali no patamar do Braga e do Vitória SC, intrometer-se nessa luta e de uma forma consistente.
Bola na Rede: Em 2022 começas uma nova aventura exótica, ao serviço do Sreenidi da Índia. Como é que surgiu esse convite ara ires para lá?
Carlos Vaz Pinto: Foi um português que está lá que me convidou. O Sreenidi é um clube bebé, nasceu há sete anos com formação e a criar infraestrutura. É um clube com um dono, não há uma base de adeptos, tem poucos aficionados. Os adeptos são os miúdos, os pais dos miúdos, os funcionários… O clube convidou em 2018 o Fábio Ferreira para diretor geral. A base do clube nasce pelo gosto do filho do presidente pelo futebol e o revela ao pai. Eles têm um colégio e uma universidade, com duas infraestruturas diferentes. O filho disse ao pai que podiam criar um clube e que os melhores alunos do colégio na área do desporto podiam ter uma oportunidade de jogar. Acabam por criar seniores há três anos. No primeiro ano vem um técnico espanhol e ficaram em quarto lugar, na Liga Indiana, na da Federação. A Índia tinha ligas fechadas, a da Federação e a Superliga criada por um magnata. Na Liga da Federação competiram a convite, o trajeto normal seria começar na Terceira Divisão. Pagaram uma verba para entrar logo no primeiro escalão. O Fábio no segundo ano acaba por querer levar um treinador português, entrevistou três ou quatro. A ideia dele era ter um português com experiência internacional, mas com presença no futebol nacional profissional e eu enquadrava-me nesse perfil. Acabei por aceitar o desafio de ir à Índia. Tinha também a vontade de estar na Ásia, depois de ter estado na Europa e em África. É um clube muito organizado, com uma organização europeia. O Libolo também era assim. O Sreenidi está a ter sucesso por esse motivo, a organização é mesmo muito boa. Acabámos por fazer dois anos consecutivos o segundo lugar. No ano em que vou para a Índia é o ano em que as ligas passam a ser abertas, há subidas, mas não há descidas, porque as equipas da Superliga ainda estavam a pagara para lá estar, paga cerca de dois milhões. Isto acho que acaba em 2026 e a partir daí muda. A FIFA meteu-se um bocadinho na organização do futebol indiano. Neste momento só há subidas.
Bola na Rede: Como foi a tua adaptação a um país tão diferente? Levaste a tua família?
Carlos Vaz Pinto: A família ficou por cá. Fui sozinho. É um contexto diferente ao africano, mas o facto de ter estado em África acabou por me ajudar a adaptar ao contexto da Índia. A cidade onde eu estive era igualmente caótica como em África, mas diferente. O país tem coisas muito interessantes. A cidade onde estava tinha mais de 10 milhões de habitantes, o trânsito era infernal. A cultura é diferente, a grande maioria são hindus, mas na cidade onde eu estava havia uma comunidade muçulmana muito grande. Já tinha trabalhado com a cultura muçulmana em África. Acaba por ser uma mistura muito grande de culturas e com questões muito vincadas. Há mil e um festivais. Acho que me adaptei bem. Sou um bocadinho suspeito para falar da Índia, senti-me lá quase em casa.
Bola na Rede: Como é que o futebol é visto na Índia? Já entendi que o modelo organizativo é um pouco confuso, especialmente pelo sistema que existiu durante alguns anos com duas divisões principais. O cricket ainda ganha?
Carlos Vaz Pinto: O cricket ainda ganha. É o que tem mais adeptos. Há estados em que o futebol é muito forte e que tem estádios cheios, em que as pessoas gostam mesmo muito de futebol. É o país mais populoso do mundo e a FIFA acredita que onde há pessoas, há talento e a FIFA quer fazer uma aposta forte no país. A própria FIFA criou uma academia sua na Índia. O futebol indiano acabou por fazer há 10 anos o que a Arábia Saudita está a fazer. Levou campeões do mundo para lá, mas perceberam que não era esse o caminho, mas sim apostar ao nível da formação. O nível competitivo das duas ligas é semelhante, se compararmos as equipas de topo da Superliga e da Liga da Federação. Mas há muito trabalho a fazer em relação ao desenvolvimento do talento. Se formos a Calcutá ou a Querala vamos ter muitos miúdos e muitas equipas para se jogar. O estado onde eu estava era diferente. A equipa de Sub-20 para poder ter um quadro competitivo forte tem que todos os anos viajar muitos quilómetros. Assim tínhamos algum trabalho para desenvolver jovens. Os clubes montam uma academia forte, no Sreenidi já tínhamos 50 miúdos de todo o país, que dormem lá, que comem lá. Mas ainda falta criar um quadro competitivo interessante para desenvolver os miúdos. Treinar não chega. O Sreenidi tem um protocolo com o Benfica. O coordenador técnico da formação é do Benfica. Há um projeto que acaba por dar visibilidade à equipa e dá visibilidade ao Benfica na Índia. É um mercado interessante. A Índia é muito maior que Angola, Quénia ou Etiópia, mas em Angola também tínhamos dificuldades nos juniores. Não se compete todos os fins de semana. As equipas reúnem-se numa cidade durante um mês.
Bola na Rede: O presidente do Sreenidi disse-te uma vez uma frase que me ficou no ouvido: ‘mister, você ganhe, mas não ganhe muito’. É normal este estilo de abordagem por parte de dirigentes?
Carlos Vaz Pinto: É um caso único (risos). Mas é um caso que revela que existe uma visão. O meu presidente na Índia começou por criar a infraestrutura. Esta, hoje em dia, faz inveja a muitos clubes de Primeira Liga em Portugal. Tem um estádio, uma academia, campos de treino, um gabinete de performance a ser desenvolvido. O presidente tem uma visão para o clube e esse investimento na infraestrutura continua. Ao nível da equipa ele também tem essa visão. Quer estar no topo do futebol indiano a médio prazo, mas não de uma forma desmedida e não sustentada. Eu olho para a frase do presidente nesse sentido, porque o conheço e sei do trabalho que ele está a fazer. Acabámos por ter resultados interessantes nesses dois anos. O primeiro ano do clube nas competições foi no COVID 19. Ninguém jogava em casa, era tudo em campo neutro. O primeiro ano em que o clube joga em casa foi no meu primeiro ano. Estive lá dois anos e esta semana foi quebrado um recorde, chamemos assim. O clube nunca tinha tido um jogo em casa que não tivesse marcado um golo. Comigo marcámos sempre golos em casa, no primeiro ano nunca perdemos em casa. Criámos uma cultura de vitória o que faz com que o presidente a determinada altura esteja tão entusiasmado, que a visão a médio prazo passa a ser a curto prazo. Ele ficou muito entusiasmado, mas essa frase é de alguém que tem uma visão de que sabe aquilo que quer. Nunca mais terei ninguém a dizer-me aquilo na vida.
«Tinha mais um ano de contrato na Índia e tinha uma cláusula de rescisão. Tive de acioná-la para poder sair para o mafra, embora negociada. Não estava nos meus planos esse convite, mas aprendi ao longo do meu trajeto a não fazer planos».
Bola na Rede: Terminaste duas vezes em segundo lugar. Saíste devido ao convite do Mafra?
Carlos Vaz Pinto: Eu tinha mais um ano de contrato na Índia e tinha uma cláusula de rescisão e tive de acioná-la para poder sair, embora negociada. Não estava nos meus planos esse convite, mas aprendi ao longo do meu trajeto a não fazer planos (risos). Estava em África e voltei para Portugal. Aprendi que não devo fazer um plano de carreira. Quando vim de férias em final de abril, vinha apenas para isso e depois regressar à Índia, já com a planificação desta época feita. O convite do Mafra não foi nada programado nem esperado. Não bati também à porta deles, entre aspas. Nós treinadores apercebemos que às vezes há uma oportunidade e batemos à tal porta, mas aqui isto não aconteceu. Acabei por deixar o Sreenidi e pagar parte da cláusula de rescisão e contei com a boa vontade do presidente e do Fábio. Estou-lhes muito grato por isso. Era algo que me faltava em termos de currículo: estar como treinador principal nas competições profissionais em Portugal, já tinha estado como diretor e como adjunto.
Bola na Rede: Começaste a temporada no Mafra e deixaste o clube em outubro. O que aconteceu?
Carlos Vaz Pinto: Estas questões estão sempre associadas aos resultados, porque é para aí que se olha. No entanto, o projeto do Mafra é muito interessante. Acreditava e acredito que pode ter sucesso. Falta-lhe limar algumas questões. Eu internamente fui manifestando-me e neste momento não posso nem devo torna-las públicas, por uma questão de ética. Vão criar infraestrutura, o Mafra vai crescer nos próximos anos. Este ano acabámos por ter dificuldade nesse ponto. Não existia ginásio. No verão foi decidido colocar um novo tapete no Mário Silveira, que permite que o Mafra tenha boas condições de treino neste momento, mas que na altura foi difícil de gerir. As condições treino e de trabalho não eram as melhores, mas as pessoas tentavam sempre proporcionar o melhor. É um trabalho que nos deixa extremamente orgulhosos. Acabámos por ser nós a lançar uma série de jovens, algo fundamental para o projeto. O Mafra tem uma média de idades de 22 anos no plantel. Há um risco assumido e por isso também abraçámos esse projeto. Sentimo-nos um bocadinho frustrados porque o nosso compromisso com o projeto foi sempre total, fomos leais ao que eram as ideias do projeto, e acabámos por não ter tido tempo para desenvolver as nossas ideias e acho que estávamos a trabalhar bem. Introduzimos uma série de jovens no futebol profissional, muitos vindos do contexto africano, que é totalmente diferente. Muitos dos jogadores não conheciam o contexto competitivo onde estão a jogar. O mais difícil foi feito, não tenho dúvidas, esse primeiro impacto dos primeiros jogos. Em sete ou oito jogos lançámos na Segunda Liga mais de uma dezena de jogadores nascidos em 2004, 2005, 2006. Muitos jogadores entre 2003 e 2006. O foco do Mafra este ano era em miúdos de 2004 e 2005, com 19 ou 20 anos. Alguns deles já estão consolidados. A partir de agora só podem crescer. O mais difícil já estava feito. Tenho muito orgulho do que fizemos e no que desenvolvemos. Pediram-nos para criar um mindset dentro do clube para que a médio prazo a equipa possa atacar lugares de Primeira Liga e acho que isso foi feito e o futuro vai revelar isso.
Bola na Rede: Não falando do teu caso, mas incluindo-o, sentes que os dirigentes dão cada vez menos margem de manobra aos treinadores? Na Primeira Liga 10 equipas já trocaram de técnico.
Carlos Vaz Pinto: Na Segunda Liga vai mais ou menos nesse número também. Acho que há pouca margem em Portugal. Isto acontece em todo o lado, os resultados são o norte da orientação das direções e dos presidentes. Não deveria ser assim. Eu encontrei no Mafra uma visão diferente. A equipa tem um investimento nórdico. O dono é o mesmo do Midtjylland, são clubes irmãos. O que acontece é que em primeira instância a ideia é potenciar em Mafra para regressar à Dinamarca ou para vender, como no caso do Ousmane Diomande. Tivemos três jogadores a saltarem no último verão. O investidor tem uma filosofia de trabalho diferente. É tudo mais baseado no processo e foi isso que nos fez aceitar o desafio. Porém, depois não houve coerência sobre o que são os investidores do Mafra e o que é a base do Mafra aqui em Portugal. A ideia precisa de ser afinada nos próximos anos. Este é um dos primeiros anos em que as coisas estão mais nas mãos dos dinamarqueses. Mas é preciso afinar as coisas para não acontecer com outros o que aconteceu comigo. O Mafra tem ideias interessantes e podem afirmar-se no panorama nacional. Eles davam muito o exemplo do Midtjylland, de que não estavam tão focados nos resultados. Eles tiveram lá esse problema, acreditaram no treinador, mantiveram-no, bateram o pé contra os adeptos. O técnico continuou e acabaram por ser campeões a época passada. A filosofia deles é diferente da portuguesa. O que falta em Mafra é tornar isto mais harmonioso entre as pessoas de lá e as de cá. O Mafra tem um perfil diferente dos clubes de Segunda Liga. Acho que no geral é como estavas a dizer, há pouca margem para os treinadores em Portugal.
«O projeto do Mafra é muito interessante. Acreditava e acredito que pode ter sucesso. Falta-lhe limar algumas questões».
Bola na Rede: Para quem não te conhece, qual é o estilo de jogo que gostas de aplicar?
Carlos Vaz Pinto: Tendo em conta o meu passado como jogador e da posição em que jogava (era médio), gosto de um futebol mais ofensivo, com uma ideia dominadora de jogo. Nos últimos anos tenho tido a oportunidade de aplicar em prática essa ideia. O Libolo, o Saint George e o Gor Mahia são clubes grandes e tinham de ter uma dominadora de jogo. Na Índia acabámos por implementá-la e lutar por títulos. Em Portugal esta ideia foi muito interessante para os Sub-23 do Famalicão, porque potenciámos jogadores e ninguém potencia jogadores sem uma ideia ofensiva de jogo. Era também importante para o desenvolvimento daquilo que é o projeto do Mafra. É a ideia de jogo que eu gosto, mas ninguém é dominador nem ofensivo sem uma ideia equilibrada. Tem que ser uma equipa que perceba os momentos do jogo. Gosto de uma equipa agressiva, no bom sentido da palavra, no momento das transições, na organização defensiva, mas também no ponto de vista ofensivo, especialmente nisso. Gosto mesmo de trabalhar isso. Equipas que valorizem o que o futebol tem de melhor, que é a bola. Para isto é preciso ter uma equipa equilibrada, como te disse antes.
Bola na Rede: Somos os dois do mesmo distrito. Como tens avaliado a época das equipas do distrito de Viseu, nomeadamente Académico e Tondela?
Carlos Vaz Pinto: Fico contente por termos duas equipas a intrometerem-se na luta pela subida. Foram dois clubes onde eu joguei. No Académico de Viseu fiz lá grande parte da minha formação, cheguei à seleção nacional jovem enquanto jogador do Académico. Joguei em Tondela nos primeiros anos de sénior quando foi colocado o primeiro relvado no João Cardoso. Sigo os dois clubes com grande carinho. Acho que o Académico nos últimos anos acabou por crescer, também pela entrada dos investidores. Acho que a curto/médio prazo o clube pode chegar à Primeira Liga, o investimento é forte. O Tondela tem um perfil de plantel com capacidade para lutar igualmente pela subida de divisão. Ficava muito feliz se subirem os dois, é-me indiferente qual deles em primeiro lugar. Gostava que os clubes da nossa região subissem à Primeira Liga, já que o Mafra não vai conseguir fazê-lo este ano.
Bola na Rede: Para fecharmos, qual é o futuro de Carlos Vaz Pinto?
Carlos Vaz Pinto: Não sei (risos). Já trabalhei em três continentes, gostava de ir para a América do Sul, acho que era interessante para a minha carreira. Têm surgido sondagens e oportunidades. Não aceitei recentemente uma sondagem. Tenho dois ou três objetivos de carreira, que ainda sou novo e tenho ambição. Gostava de voltar a trabalhar em Portugal numa liga profissional. Gostava também de ter a tal experiência na América do Sul. Gostava de treinar uma seleção. Já tive essa oportunidade, mas não aceitei, em África. Estes são os contextos em que gostava de trabalhar. Não sei qual deles vou abraçar no futuro, tudo pode acontecer. Neste momento tenho a vantagem de ter estado em Portugal, África e Ásia. Acho que me dá alguma vantagem. Em termos de resultados, falta-me ser campeão nacional, já ganhei Taça e Supertaça, quero ser campeão. Quero olhar na próxima oportunidade, se possível, para o facto de poder ser campeão.
Bola na Rede: Obrigado por esta grande entrevista, Carlos.
Carlos Vaz Pinto: Foi um gosto, até uma próxima.