Estávamos em 1995, na que seria a última visita de Estado do Presidente Mário Soares, e das mais tumultuosas, pois coincidiu com o atentado contra Ytzhak Rabin, a primeira pernoita de um Chefe de Estado em Gaza e os caóticos funerais de Estado, em Jerusalém, do primeiro-ministro assassinado. Do programa constava, como um componente que a parte israelita sempre procurava integrar, uma viagem de helicóptero militar até ao Norte, aterrando numa plataforma donde se avistavam as cercanias a 360 graus, e bem à nossa frente, numa manhã límpida que encurtava as distâncias,os tão cheios de significado Montes Golã. O Presidente assistiu a um briefing conduzido por um oficial general, numa cenografia cuidada, uma ampla mesa com cartas geográficas sob um largo toldo militar, para abrigar a delegação do Sol ainda punitivo malgrado estarmos no fim de outubro. A vista era majestosa, revelando o terreno intrincado de todo o planalto e pontos estratégicos como o Monte Hermon – Jabal al-Sheykh para os Árabes – que se eleva a 2800 metros de altitude.

São estas as imagens que me ocorrem nesta altura em que os Golã que andavam arredados da narrativa regional irrompem, por assim dizer, à nossa atenção, desde logo porque o líder da Organização de Libertação do Levante (Hayat Tahrir al-Sham) agora vencedor de uma Reconquista contra a opressão de Assad tinha adotado como nome guerra Al-Golani (dos Golã), uma referência ao território sírio que os seus pais tiveram que abandonar devido à ocupação israelita em 1967, na guerra dita dos Seis Dias.

Muito significativo também que o primeiro-ministro Netanyahu se tenha apressado a exprimir com ênfase que não tenciona recolocar os territórios sírios ocupados na agenda, ao afirmar que os Montes Golã serão “eternamente parte de Israel” (e sabe-se como a menção a “eterno” ecoa na reivindicação da Jerusalém como “capital eterna” do Estado de Israel). Na verdade, os factos no terreno e as operações militares falaram ainda com mais força que aquelas palavras quando a pretexto da doutrina de autodefesa preventiva (o direito algo dúbio a tomar medidas antes mesmo de se ser alvo dum ataque ou haver indícios de ataque eminente) as Tsahal ( as forças de Defesa de Israel) penetraram na zona tampão que o acordo de separação de forças de 1974 estabelecera e foram bem mais além da Linha Azul, instalando-se no ponto mais alto do planalto, aquele Monte Hermon que tínhamos avistado primeiro do ar, a bordo do helicóptero.

Entretanto o CEMGFA israelita, general Herzl Halevi, afirmou que as IDF"não interferem no que se passa na Síria" e que Israel não tem qualquer intenção de gerir o país. Falando dos Montes Golã, disse que existe a ameaça de que "elementos terroristas" possam chegar à área, tendo as forças israelitas sidomobilizadas para o prevenir.

Israel pretende que a questão do estatuto dos Montes Golã ficou definitivamente encerrada com a anexação formal em 1981, não reconhecida internacionalmente, mas que contou com a anuência da primeira administração Trump (a mesma que, também contra o direito e a prática dacomunidade internacional, entendeu mover a embaixada dos Estados Unidos para Jerusalém). Há que ter consciência que a soberania dos Golã não será o temamais premente quando a complexa situação actual na Síria implica outras questões bem mais preocupantes, como a natureza do poder do HTS, se islamista soft ou jihadista camuflada; o devir dos curdos; uma renovada atividade do Daesh, o próprio papel da Síria nas dinâmicas de conflito na região, do Líbano do Hezbollah à Gaza do Hamas.Mas talvez valha a pena recordar que não foi sempre assim.

No meu primeiro posto diplomático no Levante, de 1995 a 1998, como chefe de missão adjunto da Embaixada de Portugal em Telavive, ainda se falava do “volet Sírio” do Processo de Paz no Médio Oriente. Afinal a Conferência de Madrid de 1991, arrancada a ferros por George Bush pai e James Baker III, a última dupla Presidente-Secretário de Estado em Washington que soube resistir às pressões do actor mais reticente, tinha na agenda três “deals” de Paz-por-Territórios em que Israel obteria finalmente a paz com os seus vizinhos diretos restantes, representados pelas delegações do Líbano, da Síria e “Jordano-palestiniana”, num processo análogo ao que ocorrera com a celebração dum tratado de paz entre o Egipto e Israel em 1979, com a recuperação da soberania egípcia do Sinai ocupado desde1967.

Talvez agora seja irónico lembrá-lo, mas houve umenvolvimento intenso de enviados americanos a Damasco, em complexas negociações com Hafez Al Assad, para se obter um quadro de “Land for Peace & Security” que satisfizesse Sírios e Israelitas. Fazia parte da pequena história a evocação duma“diplomacia da bexiga”, pois as reuniões com Assad pai uma vez começadas podiam durar até cinco horas, sem pausas para abandonar a sala, e os participantes dessa provação até trocavam conselhos para não serem vencidos pelo desejo de verem terminada a discussão.

Essas negociações chegaram até a avançar grandemente quando o Governo de Rabin fez saber muito discretamente que encarava a devolução total do território sírio ocupado. (O comboio duma paz negociada parecia ter-se detido na estação, mas a morte de Rabin, a convocação de eleições por Peres e os atentados à bomba nosautocarros da linha 18 na Jaffa Road em Jerusalém, deixaram que esse comboio se perdesse)

A perspetiva de Israel devolver os Golã, embora publicamente negada,era aliás levada a sério por quem tinha responsabilidade de se certificar da segurança de investimentos feitos, como descobri pessoalmente quando visitei em 1995 a joia-da-coroa da atividade de colonatos israelitas naquele território, as Golan Wineries, que produziam um vinho prodígio, o Yarden. Um vinho que deixara estupefactos os apreciadores (que associavam até então os vinhos kosher a produtos de fraca qualidade pela necessidade de levá-los à ebulição para obter certificação rabínica). Lá fui até ao Norte, a essas quase míticas adegas, recebido pelo enólogo-chefe, formado na Universidade da Califórnia em Davis, a maior escola de enologia a nível mundial, fora da França.Recebeu-me no seu gabinete de trabalho, com uma fotografia a preto e branco, antiga,de uma pisa a pé no Douro vinhateiro a encimar a sua cadeira. Ficava numamezannine da enorme área da adega principal, com uma grande parede de vidro donde podia controlar a atividade dos trabalhadores. Com um detalhe importante: o vidro estava selado.

Não sendo Ortodoxo não podia aproximar-se ou manipular a produção do vinho em qualquer ponto da cadeia. Desde a vinha, à vindima, à vinificação, ao engarrafamentoe ao empacotamento e saída da Adega,o vinho só podia ser manipulado por Judeus Ortodoxos, garantindo assim a sua pureza para efeitos certificação kosher (evitando a barbaridade lesa paladar e aroma de se ferver o vinho). Foi já depois da visita terminada, quando um funcionário da adega me acompanhou a Katzrin que obtive um “scoop” diplomático inesperado. Interrogado sobre o que aconteceria se as negociações com a Síria levassem à devolução dos Golãs disse-me que havia rumores que, se não fosse possível manter a adega e as vinhas, mesmo sob soberania síria, havia aparentemente já planos de contingência para mudarem-se com armas e bagagens, isto é, estruturas da adega e re-plantio de vinhas, mais para Oeste, em território indiscutivelmente israelita (numaárea da Galileia Alta, creio, onde anos mais tarde se criou um outro grande “boutique wine”, o Galil).

Desde os tempos de Hafez al-Assad, depois de 1974,que a fronteira síria de Israel era a mais pacífica e que menos problemas causava. A liderança síria tinha a consciência que uma opção militar para recuperar território não tinha qualquer hipótese de êxito, e as suas capacidades militares teriam outros objetivos, como se viu, já com o filho no poder, na guerra civil que se seguiu à expansão à Síria das vontades libertadoras das Primaveras Árabes. Em todo o caso essas capacidades, nomeadamente os meios da força aérea e os sistemas de defesa anti-aérea, bem depósitos de munições e instalações de mísseis, foram sistematicamente degradadas nos últimos dias.

Por outro lado, muito recentemente, um líder do Hezbollah, ainda vivo no momento em que escrevo, Naim Qassem, manifestou a esperança que o novo partido no poder na Síria “considere Israel um inimigo e não normalize as relações com ele", acrescentando que serão estes os critérios que afetarão “a natureza da relação entre nós e a Síria" .Significativo portanto que o detentor actual do poder em Damasco, que parece preferir usar agora o seu nome civil, Ahmed al-Sharaa, tenha afirmado no sábado que as suas forças "não estão em conflito com Israel" e que não estão "em condições de travar uma campanha contra ele". Acrescentou que Israel operou na Síria no passado usando o pretexto da presença do Irão no país, mas que agora "já não há desculpas para a intervenção de Israel na Síria após a saída dos iranianos".

O “regresso dos Golã” é, assim, mais do que uma questão geopolítica. Entrelaça narrativas pessoais, memórias de batalhas, identidades nacionais, pessoas deslocadas, posturas militares e a busca sempre adiada pela obtenção duma paz duradoura no respeito pelo direito internacional e pelas necessidades de segurança das partes.



Embaixador de Portugal

Ex-Representante de Portugal junto da Autoridade Palestiniana (Ramallah)

Delegado de Portugal à Conferência de Doadores da UNRWA (com missões à Jordânia, Líbano e Síria)

Ex-Conselheiro e “Nº2” da Embaixada de Portugal em Telavive