O lamento mediático de Bad Bunny está a dominar a atualidade e os ouvintes, novos e velhos, do artista porto-riquenho parecem ter chegado à mesma conclusão: também deviam ter tirado mais fotografias.
Não estamos na Blitz (e muito menos no Blitz), por isso não vale a pena avaliar “DeBÍ TiRAR MáS FOToS”, mas é legítimo aproveitar a deixa de Bad Bunny para nos questionarmos sobre se efectivamente devíamos ter tirado mais fotografias no passado – e se o devemos fazer no presente. A dúvida é pertinente e faz sentido neste tempo em que não saímos de casa sem uma máquina fotográfica incorporada no telemóvel.
Sem entrar pormenorizadamente em “DeBÍ TiRAR MáS FOToS”, um trabalho sobre a justaposição do espaço e do tempo, é possível, quase certo, que cada pessoa tenha o seu próprio Porto Rico. (Tem-no na medida em que já não o têm, porque o perderam por motivos infinitos.) E é provável que o Porto Rico mais comum seja uma pessoa, um grupo de pessoas ou uma época que passou e que se perdeu, situação permanente que a embelezou de um modo mais ou menos doloroso.
No “The Tonight Show” (e num spanglish memorável), Bad Bunny partilhou com o amigo Jimmy Fallon que o arrependimento que serve de fio condutor de “DeBÍ TiRAR MáS FOToS” representa o que o artista devia ter feito e não fez – «(…) I should have embraced… appreciated more the moment, the present (…)». Percebe-se o raciocínio. Ao mesmo tempo, identifica-se um pequeno contrassenso na mensagem, próprio de quem perdeu uma batalha contra o tempo e se mostra incapaz de reverter a força dos ponteiros do relógio.
Não me parece que seja prático apreciar o presente enquanto se pensa em tirar fotografias. À partida, quem está concentrado no momento não pensa em mais nada: olha apenas para o que está à sua frente. Acontece que as pessoas não são lineares, nem simples. Tanto dizem «foi tão bom que nem tirámos uma fotografia», como «foi tão bom e nem tirámos uma fotografia». A fotografia é sempre útil – quando é tirada, porque regista um grande momento para sempre, e quando não é tirada, porque cria em nós a certeza de que fizemos parte de um instante inesquecível ao ponto de não pedir prova fotográfica.
As fotografias surgem com frequência, daí que o seu não surgimento pode, à partida, conduzir-nos à sensação de que, num dado momento, vivemos mais e melhor, verdadeiramente livres de uma pressão muito própria do tempo que habitamos e que nos obriga a documentar tudo – porque, se não se lhe tirou uma fotografia, não aconteceu. Mas aconteceu e foi bom. Não teria sido menos bom se tivessem sido tiradas fotografias.
Estou para perceber o verdadeiro papel das fotografias. A relevância que apresentam é-lhes dada por nós que as tiramos e por quem nelas figura. As fotografias são incapazes de recriar os episódios vividos. No máximo, pegam em nós (quando pegamos nelas e observamos as cenas registadas) e dirigem-nos até à fronteira inultrapassável que separa a memória do presente. São, por isso, úteis, extremamente importantes, contudo não têm forma de alterar o modo como o tempo nos rege.
Há quem defenda que não devemos tirar tantas fotografias quantas tiramos. É uma perspectiva que é de entendimento fácil. Realmente, pode ser que andemos a prestar mais atenção ao que o visor do telemóvel revela do que à revelação dos nossos próprios olhos. Pode ser que tenhamos demasiadas fotografias na cloud e que vivamos com o objectivo de chegar a um certo sítio, fazer uma fotografia e ir embora (para outro sítio e para fazer outra fotografia). Talvez seja por isso que andemos tão cabisbaixos – o telemóvel obriga-nos a olhar para baixo e não em diante.
De qualquer modo, não vou tão longe. Sei que ainda não perdemos a noção das matérias que estruturam a nossa vida: sabemos que, para serem apanhadas pela lente, têm de estar presentes. Existem sempre exceções (e tantas segundas intenções), mas tendemos a ver nas fotografias formas de enganar o tempo. Julgamos que o derrotamos quando eternizamos um dado momento com um clique. Raras são as vezes em que o vencemos. Ele destrói-nos quase sempre e mostra-nos que as fotografias não são solução. Nós sabemos e, com mais ou menos ingenuidade e lata, continuamos a registar tudo e todos. Enfim, não é que não devêssemos ter tirado mais fotografias. Os bons momentos é que deviam ter durado mais tempo.
O artigo é escrito, por opção do autor, ao abrigo do antigo Acordo Ortográfico.