A pressão crónica sobre os serviços de urgência do Serviço Nacional de Saúde (SNS) português está a encontrar resposta num novo projeto que junta ciência, tecnologia e um imperativo de transformação: o HUMAI – High Users Management with AI. Esta iniciativa, liderada pela Unidade Local de Saúde de Almada-Seixal (ULSAS), em colaboração com a Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade NOVA de Lisboa (NOVA FCT) e o Value for Health CoLAB, propõe uma abordagem inovadora e preditiva à gestão de utentes que recorrem de forma reiterada às urgências hospitalares.

Num cenário em que a sustentabilidade do SNS está diretamente dependente da eficiência dos seus recursos, o HUMAI surge como exemplo do tipo de soluções que a administração pública deve perseguir: baseadas em dados reais, impulsionadas por Inteligência Artificial e centradas nas necessidades do cidadão.

A ideia é simples na formulação, mas ambiciosa na execução: desenvolver uma plataforma digital inteligente capaz de identificar precocemente os chamados “utilizadores muito frequentes” das urgências e atuar antes que se tornem reincidentes. O modelo prevê a integração de algoritmos preditivos com dados clínicos e contextuais, permitindo uma intervenção personalizada, planeada e – acima de tudo – preventiva.

Da experiência local à ambição nacional

O HUMAI não parte do zero. É a evolução de um trabalho iniciado em 2016 pelo Grupo de Resolução de Utilizadores Muito Frequentes (GRHU), que uniu o Hospital Garcia de Orta e os centros de saúde de Almada-Seixal. Os resultados falam por si: 51% de redução nos episódios de urgência e internamentos entre os utentes-alvo e 44% menos custos com o seu acompanhamento, segundo dados de 2021.

A diferença agora está na escalabilidade. O objetivo é transformar este sucesso local num modelo replicável, nacional, sustentado por ciência de dados e pela solidez de uma rede institucional robusta. O financiamento europeu, através do PRR e do programa NextGenerationEU, confere músculo à ambição e enquadra o HUMAI numa linha de investimento estratégica: a digitalização da administração pública com base em Inteligência Artificial, ciência de dados e cibersegurança.

Mais que tecnologia: reorganização de prioridades

Apesar de se apoiar na IA, o HUMAI é, antes de mais, um projeto de reorganização de prioridades. Parte do princípio de que a sobreutilização das urgências não é apenas uma questão clínica, mas também social, económica e organizacional. Exige, por isso, equipas multidisciplinares que articulem profissionais de saúde, engenheiros de dados, decisores públicos e especialistas em ética digital.

“A atuação preventiva do HUMAI poderá melhorar ainda mais os cuidados prestados e otimizar a resposta da urgência geral do Hospital Garcia de Orta”, afirma Pedro Correia Azevedo, presidente do Conselho de Administração da ULSAS. A abordagem não substitui o fator humano: complementa-o com previsibilidade e capacidade de planeamento.

Ana Londral, diretora do Value for Health CoLAB, sublinha a mensagem política: “A IA pode e deve estar ao serviço das organizações públicas, com soluções baseadas em dados da nossa população e que promovam uma utilização eficiente dos recursos do SNS.”

Riscos e garantias: onde é preciso atenção

O potencial transformador do HUMAI é evidente, mas não está isento de riscos. A centralização e tratamento de dados sensíveis requerem normas apertadas de governança, interoperabilidade e cibersegurança. O histórico de desafios na digitalização de sistemas públicos em Portugal justifica alguma cautela. Não se pode fazer à bruta, como às vezes nos parece que deva ser, é preciso envolver as pessoas, definir estratégias que todos aceitem, e caminhar juntos. Na verdade por muito que custe a alguns arautos da sabedoria tecnológica, a ciência sociológica ainda impera na Europa, e Portugal está dentro da solução, não do problema, e este projeto é uma das provas disso.

Sugestões de prevenção e atenção crítica:

  • Transparência algorítmica: os modelos preditivos usados devem ser auditáveis, compreensíveis para os profissionais de saúde e revistos regularmente quanto a viéses e eficácia.
  • Proteção de dados: é essencial garantir o cumprimento estrito do RGPD e assegurar que os dados clínicos não são utilizados para fins secundários ou comerciais.
  • Capacitação das equipas: a adoção da plataforma requer formação contínua e reforço de competências digitais no setor público de saúde.
  • Integração nos fluxos clínicos: a tecnologia não pode funcionar como um silo. Deve integrar-se naturalmente no ecossistema hospitalar e primário.
  • Monitorização contínua de impacto: métricas claras e públicas devem acompanhar o projeto em tempo real – quer na vertente clínica, quer financeira.

O HUMAI pode ser uma peça crítica num novo paradigma de saúde pública, mais preditiva, integrada e eficiente. É um caso paradigmático de como a Inteligência Artificial, quando aliada a evidência científica e compromisso institucional, pode devolver capacidade de resposta a um sistema sob pressão.

Portugal precisa de mais projetos como este: tecnológicos, sim – mas sobretudo inteligentes na forma como abordam os seus maiores desafios sociais.