
O relatório “Uma opção sem escolha” da Amnistia Internacional (AI) sobre a Interrupção Voluntária da Gravidez (IVG) é publicado no ano em que se assinalam 18 anos desde a legalização do aborto até às dez semanas de gestação, e traça um retrato preocupante da realidade portuguesa. Alerta para o “o tabu e do estigma que ainda rodeiam este procedimento médico” e a falta de acesso pleno a este direito em todo o território nacional. A AI recomenda a descriminalização total da IVG, com a retirada do Código Penal.
Segundo o relatório da AI, desde o referendo em 2007 que legalizou a IVG, houve 33 condenações e 159 infrações para “o crime de aborto”. A organização afirma que direito permanece condicionado por um conjunto de barreiras legislativas e estruturais que comprometem a sua plena aplicação.
“Entre os principais problemas está a falta de cobertura em todo o território nacional, um dos limites gestacionais mais curtos da Europa, o período de reflexão obrigatório de pelo menos três dias, a obrigatoriedade de haver dois médicos diferentes para atestar e realizar uma IVG e a falta de regulamentação das recusas médicas por motivos de consciência (também designadas de “objeção de consciência”) por parte dos profissionais de saúde”, declara a AI no relatório.
A Amnistia Internacional lança ao mesmo tempo uma petição dirigida ao Presidente da Assembleia da República. Na petição, e incluinda também nas recomendações, a AI pede a revisão da lei para que permita “revogar o actual limite gestacional ou,no mínimo, alargar o limite das dez semanas degestação para a IVG”, um dos mais restritivos da Europa, escrevem. Em Espanha, o prazo é as 14 semanas de gestação.
No relatório a AI inclui dados do Ministério da Saúde de Espanha que revelam que, entre 2019 e 2023, cerca de 500 pessoas grávidas por ano atravessaram a fronteira desde Portugal para Espanha à procura de cuidados de aborto. Em 2023, dois terços das IVG realizadas em território espanhol foram após as onze semanas de gestação, um prazo que excede o permitido pela legislação portuguesa.
Acesso à IVG com falhas graves em várias regiões do país
Na sequência de denúncias públicas sobre dificuldades no acesso à interrupção voluntária da gravidez (IVG) até às 10 semanas, o Ministério da Saúde ordenou, em 2023, uma inspeção nacional aos estabelecimentos de saúde públicos. A Inspeção-Geral das Atividades em Saúde (IGAS) avaliou 38 dos 44 hospitais oficialmente reconhecidos para este procedimento, todos em Portugal Continental, dados partilhados com a Amnistia Internacional em dezembro de 2024.
De acordo com o relatório, entre os hospitais inspecionados, 27 realizavam a IVG completa, mas sete só o faziam em casos excecionais previstos por lei, e quatro não realizavam qualquer procedimento, apesar de constarem na lista oficial da Direção-Geral da Saúde.
A principal razão invocada para a recusa de prestação deste serviço nos 11 hospitais foi a objeção de consciência por parte dos profissionais de saúde.
A situação é agravada pela falta de cumprimento dos prazos legais para a primeira consulta, “10 hospitais encaminham os doentes para um centro de saúde ou outros estabelecimentos oficiais, enquanto 28 realizam a primeira consulta”. Dos 28, seis hospitais ultrapassaram o limite legal de cinco dias e dez não disponibilizam dados sobre tempos de espera, dificultando a fiscalização e responsabilização.
Em 2023, apenas 14 interrupções voluntárias da gravidez (IVG) até às 10 semanas foram realizadas nos Açores, todas no Hospital da Horta, na ilha do Faial. Isto significa que 144 das 158 pessoas residentes nos Açores tiveram de voar 1500 quilómetros para interromper a gravidez no continente.
A situação agravou-se em 2025, quando deixaram de existir médicos que realizem IVG no Hospital da Horta e no Hospital da Terceira. Este último confirmou à Amnistia Internacional que “não realiza interrupções voluntárias da gravidez, devido à recusa por motivos de consciência de todos os profissionais médicos do quadro” e que as duas prestadoras externas “não têm no seu horário contratualizado, horas dedicadas à IVG”.
A dificuldade no acesso à IVG estende-se a outras regiões, como o Alentejo, onde apenas 27% (190) das 696 interrupções solicitadas em 2023 foram feitas localmente. Em contraste, Lisboa e Vale do Tejo recebeu mais pedidos do que os registados por residentes locais, revelando deslocações de outras regiões para garantir o acesso.
Como aponta Teresa Bombas, especialista em Ginecologia, “o que se passa com a IVG reflete o que se passa no sistema nacional de saúde: há sítios onde os recursos estão a ser atribuídos e outros onde não estão”. A médica defende que, para assegurar o acesso universal à IVG, é essencial “dar resposta nas várias áreas” e não privilegiar umas regiões em detrimento de outras.
Testemunhos que refletem um sistema falhado
Através de relatos na primeira pessoa, como o de “Margarida”, que descobriu que nenhum médico nas nove ilhas dos Açores realizava IVG, ou o de “Natália”, que apontou o silêncio e medo que muitas mulheres enfrentam, o relatório humaniza o impacto concreto de um sistema que falha em assegurar o direito à escolha.
“Demorei um bocado a perceber que não havia um único médico nas nove ilhas dos Açores que fizesse uma IVG. Passado algum tempo, só pensava: como é que é possível não haver outra opção?””, questiona Margarida.
“Há muitas mulheres que passaram caladas e sozinhas, com medo do sistema, para além de todas as questões éticas e religiosas que têm de enfrentar. É um assunto delicado, envolve muitas camadas, e a sociedade resolve não dar atenção, como se a vida das mulheres fosse menos importante”, acrescenta Natália.
A realidade do aborto para as minorias
Apesar da legislação garantir o acesso universal à interrupção voluntária da gravidez (IVG), minorias como migrantes e pessoas trans continuam a enfrentar obstáculos específicos, sobretudo em situação migratória irregular.
As investigadoras do CIES/ISCTE, Sónia Pintassilgo e Violeta Alarcão, que estudam a justiça social e reprodutiva em Portugal, partilharam com a AI que as pessoas em situação migratória irregular “tendem a enfrentar barreiras adicionais no acesso a cuidados reprodutivos, como a contraceção e os cuidados pré e pós-natais”. A especialista Teresa Bombas refere ainda que esta realidade “não é legal” e que a lei “tem de ser protetora”. “Caso contrário o país corre o risco de voltar ao passado, com o aumento dos abortos clandestinos e inseguros e das complicações associadas. Conhecemos todos muito bem como era a realidade antes de 2007”, conclui.
Em 2023, quase um terço das IVG foi realizado por estrangeiras, com o Brasil a liderar. Sónia Pintassilgo alerta que os dados disponíveis são limitados e impedem uma análise mais profunda, sublinhando que “tudo isto é muito curto para poder analisar o fenómeno considerando diferentes camadas”. A investigadora defende que uma abordagem interseccional permitiria compreender melhor estas desigualdades.
A realidade da interrupção voluntária da gravidez (IVG) na comunidade trans continua invisibilizada e marcada por experiências profundamente traumáticas, como relata Elle, que recorda ter sido “tratade como gado” e sem qualquer privacidade nos serviços de saúde. A inexistência de dados sobre pessoas trans, intersexo e não binárias que realizam IVG em Portugal evidencia um sistema de saúde pouco preparado para lidar com corpos diversos.
Elle defende que é preciso começar por utilizar uma linguagem que inclua todas as pessoas que podem engravidar e que são vítimas de discriminação: “Continua a ser uma experiência altamente disfórica, o termo feminino é sempre utilizado. Fala-se do sistema reprodutor feminino, dos órgãos genitais femininos. Os médicos precisam de formação para saberem lidar com outros corpos”. Para a associação Anémona, o acesso ao aborto nestes contextos “continua a ser um desafio”, agravado pela discriminação e pela ausência de cuidados de saúde adequados fora do continente.
Recomendações urgentes
A Amnistia Internacional apela a uma revisão profunda da legislação e das práticas em vigor. Entre as principais recomendações estão “a garantia de acesso à realização de IVG em todo o território nacional (incluindo na região dos Açores)”, o “fim do limite gestacional legal” de dez semanas, a “revogação do período de reflexão obrigatório de três dias” e o “o fim da obrigatoriedade de dois médicos diferentes para a realização de uma IVG (entre quem atesta que o procedimento é efetuado dentro do prazo legal e quem realiza o procedimento)”.
Acrescenta ainda às recomendações “a regulamentação das recusas médicas por motivos de consciência com vista a assegurar o acesso total aos cuidados de aborto e o cumprimento da legislação”.
Para a Amnistia Internacional, negar o acesso à IVG segura é uma violação dos direitos humanos, incluindo os direitos à saúde, à privacidade, à dignidade e à autonomia reprodutiva. A organização reitera que o acesso ao aborto é parte essencial da proteção dos direitos sexuais e reprodutivos, consagrados no direito internacional.
“Obrigar alguém a levar adiante uma gravidez indesejada ou a recorrer a métodos inseguros é uma violação direta da sua dignidade e dos seus direitos fundamentais”, conclui a Amnistia.