Com o digital a moldar profundamente, e de forma transversal, todas as esferas da vida humana, a governação da Internet e das tecnologias emergentes impôs-se — de forma discreta, mas inevitável — como uma das frentes mais estratégicas da política internacional contemporânea.

Hoje, já não falamos apenas de regular a inteligência artificial ou combater a desinformação. Falamos de como os Estados, as empresas e os cidadãos acedem ao conhecimento, participam na vida pública e competem numa economia global em acelerada transformação. O digital é, cada vez mais, o espaço onde se exercem — ou perdem — direitos fundamentais, soberania tecnológica e capacidade de influência internacional.

Infraestruturas digitais, plataformas, algoritmos e fluxos de dados deixaram de ser apenas ferramentas técnicas. São infraestruturas de poder. E como tal, estão no centro de tensões geopolíticas, comerciais, culturais e regulatórias. Governá-las — ou deixar de o fazer — tem implicações diretas para o equilíbrio entre democracia e autoritarismo, inclusão e exclusão, transparência e opacidade.

A Cimeira Mundial sobre a Sociedade da Informação (sigla em inglês WSIS – World Summit for the Information Society), organizada pelas Nações Unidas em duas fases (Genebra 2003 e Túnis 2005), foi um marco fundacional para reconhecer o papel central da Internet na transformação da sociedade e da economia. Foi também aí que se afirmou, pela primeira vez a nível global, a necessidade de um modelo de governação da Internet multistakeholder, ou seja, que envolva governos, setor privado, comunidade técnica, academia e sociedade civil em pé de igualdade. Este princípio foi consagrado na agenda de Túnis, e continua hoje a ser essencial para garantir legitimidade, eficácia e inclusão na tomada de decisões sobre a governação da Internet e os processos de política digital.

Passados 20 anos, o mundo prepara-se para fazer o balanço da WSIS com o processo de revisão da WSIS+20, que culminará na reunião de alto nível a realizar na ONU, em Nova Iorque, a 16 e 17 de dezembro de 2025. Até lá, múltiplas negociações terão lugar em diferentes espaços diplomáticos, técnicos e institucionais, onde se fará não apenas o balanço do que foi possível alcançar com a WSIS, mas se irá decidirá o rumo da governação digital global.

Portugal tem estado presente nestes espaços desde o início. Participou ativamente na WSIS (em 2003 ao nível do Presidente da República Portuguesa e, em 2005, ao nível do ministro que coordenava a Sociedade da Informação no Governo) e desde 2009 que acompanha, de forma contínua, o Fórum de Governação da Internet (Internet Governance Forum, IGF, na sigla em inglês), é representado no Governmental Advisory Committe da ICANN, na União Internacional das Telecomunicações (UIT), na UNESCO (the United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization), na CSTD (Comissão da Ciência, Tecnologia para o Desenvolvimento da ONU), no Conselho da Europa e nas múltiplas agências, programas e fundos de financiamento onusianos com impacto na sociedade e na economia aos níveis global, regional (EU – União Europeia, e OCDE – Organização de Cooperação e de Desenvolvimento Económicos) e nacional. Foi ainda um membro ativo na negociação do Pacto Digital Global da ONU (UN Global Digital Compact), adotado em 24 de setembro de 2024, no âmbito do Pacto para o Futuro, promovido pelo Secretário-Geral da ONU, António Guterres.

Portugal tem tido uma voz ativa na defesa de uma internet aberta, segura e interoperável, de políticas públicas que defendam a neutralidade técnica, a inimputabilidade da rede, a estabilidade, a segurança e a funcionalidade globais da rede, que respeitem os seguintes princípios: a liberdade, privacidade e direitos humanos, a governação democrática e colaborativa, o acesso universal à Internet, o respeito pela diversidade cultural e linguística, a promoção da contínua evolução e ampla disseminação das novas e tecnologias emergentes e de modelos de utilização e acesso, os padrões abertos que permitam a interoperabilidade da rede, com um ambiente jurídico e regulatório em constante atualização.

Este trabalho tem sido desenvolvido por diversas entidades públicas que, ainda que num quadro institucional aparentemente difuso e pouco claro, têm contribuído para a promoção do modelo multistakeholder e a criação de espaços de diálogo nacional e regional (e.g. a Iniciativa Nacional do IGF e a Iniciativa Lusófona do IGF). No entanto consideramos ser necessária, cada vez mais, uma clarificação institucional para que o país possa melhor aproveitar as oportunidades e mitigar os desafios que enfrenta, aumentando, desta forma, a capacidade de influência à escala global: se por um lado, a governação digital, por definição, exige uma articulação transversal entre diplomacia, regulação, ciência, inovação e economia, em Portugal, esta articulação está ainda por consolidar, o que tem colocado desafios em processos decisivos, como as atuais negociações de revisão da WSIS+20, da implementação do Global Digital Compact da ONU ou, a nível da UE, na implementação da Iniciativa Global Gateway da UE que, orientado para a cooperação digital com países africanos e latino-americanos, pouca atenção tem recebido por parte de Portugal, apesar das suas fortes ligações históricas, culturais, académicas e linguísticas com essas regiões.

Num mundo cada vez mais digital, quem não influencia, será inevitavelmente influenciado. Ou usando uma analogia gastronómica, “quem não se senta à mesa” (para influenciar e concretizar), faz parte do “menu” (perdendo a oportunidade de influenciar regras que, inevitavelmente, o afetarão).

É imperativo, assim, que os decisores públicos e políticos compreendam que a verdadeira transformação digital só poderá ser plenamente atingida quando as dimensões científica, tecnológica, económica, social e internacional são integradas numa visão estratégica comum e partilhada. Significa isto que, hoje, já não basta marcar presença na “mesa”. É preciso afirmar uma visão estratégica própria.

Portugal não pode ser apenas mais um Estado-membro da União Europeia nas negociações sobre o digital aos níveis global e regional. Portugal deve – porque tem capacidade política e técnica - posicionar-se como um líder de uma sociedade da informação e da economia baseadas no conhecimento, influenciando a decisão política na União Europeia, na Europa e no Mundo, através de uma visão estruturada e ambição de liderança.Consideramos, por isso, ser agora o momento de mudar de escala. O novo ciclo político que se inicia oferece uma oportunidade estratégica para repensar, com ambição e sentido de urgência, a arquitetura institucional da participação portuguesa nos processos globais de governação digital.

Portugal dispõe hoje de um capital de conhecimento, da credibilidade, de entrosamento em redes e da experiência técnico-diplomática e negocial no seio das organizações internacionais que não pode ser desperdiçado, a fim de se posicionar como um ator relevante na governação digital global. Assim, o caminho a trilhar deve passar por uma presença menos dependente apenas da competência e do voluntarismo dos seus representantes em fóruns internacionais, e mais com uma ação concertada para estruturar essa presença, através do reforço da liderança política e institucional, da coordenação interministerial e da mobilização com os diversos stakeholders envolvidos, em torno de uma visão estratégica comum e coerente, que transforme essa presença e competência técnica em influência concreta a nível global.

Deste modo, face a um mundo em rápida transformação e onde a governação do digital já não é um tema setorial - é sim um eixo transversal e central para o futuro da autonomia nacional e europeia, em particular para a proteção dos direitos fundamentais e da capacidade de inovação – gostaríamos de contribuir para o desiderato de posicionar o país como uma “Nação Digital Global”, lançando para o debate duas prioridades estratégicas:

1) Acelerar a criação da Agência Nacional para o Digital, nela se incluindo competências claras para coordenar e alinhar, de forma transversal, as várias políticas públicas do digital, tal como preconizado na Estratégia Nacional para o Digital.

2) Que essa mesma Agência, em estreita articulação com as entidades responsáveis pela política externa portuguesa, esteja empoderada para liderar a elaboração de uma Estratégia Nacional de Diplomacia Digital, centrada no reforço de especialistas em governação da internet, em tecnologias digitais e em política pública, capaz de posicionar Portugal de uma forma mais estruturada, ambiciosa e influente nos processos de governação digital à escala europeia e global.


Mais do que uma necessidade institucional, trata-se de uma exigência estratégica para o futuro coletivo do nosso país.