O Mundial de xadrez relâmpago tinha mais interesse em Magnus Carlsen do que Magnus Carlsen no Mundial de xadrez relâmpago. Dito isto, o norueguês abandonou a competição quando a organização o impossibilitou de usar calças de ganga. A Federação Internacional (FIDE), a instituição que vigia a modalidade, não foi propriamente intransigente. Primeiro, “pediu” apenas que a estrela dos tabuleiros trocasse de indumentária. Depois, Arkady Dvorkóvich, russo presidente da FIDE, explicou em algumas linhas no “El País” que estava a “tentar encontrar uma solução” para que a prova não ficasse sem o jogador que mais vezes a venceu.

De facto, a decisão não era irrevogável. Uma “discussão frutífera” levou Magnus Carlsen a regressar à competição, como adiantou no canal de YouTube “Take Take Take”, do qual é proprietário. Do lado oposto do debate, a FIDE lamentou que a implementação de dress code “tenha criado uma situação que todos desejavam evitar”. Ainda assim, Dvorkóvich assegura continuar a querer “preservar a integridade do xadrez”, mas sem que tal tenha como custo a “atratividade”.

Uma vez aceite a utilização de calças de ganga, que até disse “conjugarem bem com o resto da roupa”, Magnus Carlsen tratou de mover as peças ao jeito de vencer a competição pela oitava vez. Mas não o fez sozinho. Sete jogos não dissolveram o empate (3,5-3,5). A final estava encrencada e assim ficou. Magnus Carlsen e Ian Nepomniachtchi aceitaram partilhar o título, sendo esta a primeira vez em que há repartição de um bem tão precioso na história do xadrez.

Os dois jogadores, justificou o nórdico, estavam “muito cansados e nervosos”. Para evitarem o “cruel” desfecho em que um dos domadores de peças venceria “por exaustão do outro”, dividiu-se o bem pelas ideias numa decisão a fazer lembrar o dia em que Mutaz Barshim e Gianmarco Tamberi dividiram o ouro do salto em altura nos Jogos Olímpicos de Tóquio. Por, no caso do xadrez, não existir tradição de semelhante compaixão e mesmo que tenha sido uma decisão homologada pela FIDE, o desfecho causou repulsa no grande opositor de Magnus Carlsen.

O tabuleiro não tem sido o único sítio em que Hans Niemann e Magnus Carlsen fazem uso do calculismo sempre útil para antecipar os movimentos do oponente. O desaguisado é antigo e em tempos o norte-americano foi acusado por Magnus Carlsen de fazer batota depois de o ter vencido num duelo da Taça Sinquefield, em 2022. Mais tarde, Carlsen abandonou um jogo online recusando-se a enfrentar o jovem prodígio.

Na altura, a FIDE investigou o caso e multou (€10.000) o grande mestre norte-americano por ter abandonado a Taça Sinquefield sem razão aparente. Ao mesmo tempo, a Comissão de Fair-Play da FIDE, numa investigação liderada por Kenneth Regan, especialista na análise deste tipo de trafulhices, expôs que Niemann fez batota em pelo menos 32 jogos online, podendo o número máximo da estimativa chegar ao 55. A violação das regras aconteceu quando tinha entre 12 e 16 anos.

Não é uma conclusão surpreendente. Já depois de ser uma superestrela, o próprio Hans Niemann confessou tê-lo feito em partidas virtuais naquele que considerou ter sido “o único grande erro” da sua vida. Ou seja, não ficou provado que o jogador dos Estados Unidos tivesse feito batota nos encontros referidos por Magnus Carlsen. Considerando que as acusações estavam a ser prejudiciais para a sua imagem, Niemann exigiu uma indemnização de 100 milhões de dólares.

Hans Niemann foi eliminado por Magnus Carlsen do Mundial de xadrez relâmpago
Hans Niemann foi eliminado por Magnus Carlsen do Mundial de xadrez relâmpago Misha Friedman

O desenterrar desta história acontece porque a tensão entre o primeiro e o 17.º do ranking acaba de ser reavivada. Após Magnus Carlsen sagrar-se co-vencedor do Mundial de xadrez relâmpago, em que eliminou Niemann nos quartos de final, o rival voltou ao ataque. “O mundo do xadrez é oficialmente uma piada”, escreveu o norte-americano no X. “Não acredito que o organismo oficial foi controlado por um único jogador pela segunda vez esta semana.”

Insatisfeito apenas com uma nota de desagrado, disse ainda que a FIDE permitiu que Carlsen criasse “toda uma nova regra” que lhe permitiu dividir o título com Nepomniachtchi e que a instituição não tem “qualquer intenção de ser imparcial”. “Imaginam uma final do US Open e o Alcaraz e o Sinner decidem simplesmente partilhar o título e os organizadores criam, pela primeira vez na história, uma nova regra por causa de ameaças financeiras?”

Ainda que em inusitados moldes, o jogador de 34 anos somou mais uma distinção, logo ele que até tem alertado para os benefícios dos desafios em cima de um tabuleiro quadriculado para lá das vitórias. “Acredito que o xadrez possa combater muitos desafios que enfrentamos hoje: atenção fragmentada, indecisão e escassez de coragem e disciplina causada por muito tempo de ecrã”, partilhou Magnus Carlsen à “Forbes”. “Vários estudos indicam uma correlação positiva entre quem é introduzido ao xadrez na infância e um melhor desempenho em áreas como a matemática e as ciências, além dessas pessoas mostrarem uma capacidade aprimorada de resolução de problemas, memória e capacidades linguísticas.”

Acreditando que “o xadrez precisa de ser modernizado” e que é preciso torná-lo “acessível e envolvente”, é normal rejeitar formalismos. E nada condiz melhor com isso do que umas boas calças de ganga.