Inteligente, independente, empenhada e decidida, Bárbara era ainda uma adolescente quando decidiu rumar à Noruega para ali fazer o liceu. Não falava uma palavra de norueguês nem conhecia ninguém, nem sequer na família de acolhimento para casa da qual se mudou, mas sonhava com a experiência internacional e, sendo uma aluna excelente, deu tudo dela para conseguir ser selecionada para o programa (uma espécie de Erasmus muito restrito, dirigido a alunos do secundário). A faculdade levá-la-ia a mais um desafio autoproposto, superado com distinção, cumprindo a formação superior em Engenharia Informática nos Estados Unidos, que lhe abriria portas a uma carreira de luxo.

Esta podia ser uma história com final feliz e sem soluços, mas a vida de Bárbara era, de facto, bastante diferente daquilo que quem com ela lidava adivinharia. "Poucas pessoas entendem, porque eu fui de facto privilegiada na vida, mas hoje entendo que já em adolescente eu lidava com uma depressão", conta ao SAPO. Hoje com 31 anos, relata como foi preciso bater no fundo do poço para ganhar coragem para procurar uma saída para a ansiedade e depressão resistente, num país em que 23% das pessoas sofre com problemas de saúde mental e apenas 10% deles recebem tratamento adequado. Essa porta, Bárbara encontrou-a na terapia assistida com ketamina.

"Os meus pais divorciaram-se quando eu tinha 12 anos. O meu pai era alcoólico e eu sempre fui uma criança muito medrosa; lembro-me de ficar em pânico, sempre a achar que alguma coisa teria acontecido se simplesmente a minha mãe não me atendesse o telefone..." Entrava de imediato em espiral descendente, a imaginar cenários terríveis para ela e a irmã mais nova, e mesmo não tendo ainda o vocabulário para exprimi-lo, sentia o mundo desmoronar-se, ficando ela irremediavelmente soterrada. Durante anos, mais de uma década, a solução para o profundo terror e impotência que a puxavam cada vez mais para a depressão era ignorar, enterrar, andar para a frente fosse como fosse. "Sentia que não tinha outra opção, dadas as condições de excelência que tinha na vida", conta agora ao SAPO, revelando como tudo era piorado pela convicção de que não tinha o direito de sentir-se miserável.

Este quadro não é muito diferente daquele que pinta a Sociedade Portuguesa de Psiquiatria e Saúde Mental, que revela números dramáticos. "Portugal é o segundo país com a mais elevada prevalência de doenças psiquiátricas da Europa, sendo apenas ultrapassado pela Irlanda do Norte (23,1%)", sendo as "perturbações de ansiedade as que apresentam uma prevalência mais elevada (16,5%), seguidas pelas perturbações do humor, com uma prevalência de 7,9%". Níveis bem superiores aos registos de casos de abuso de substâncias, que têm 1,6% de prevalência. "As perturbações mentais e do comportamento representam 11,8% da carga global das doenças em Portugal, mais do que as doenças oncológicas (10,4%) e apenas ultrapassadas pelas doenças cérebro-cardiovasculares (13,7%)", revela ainda a SPPSM.

"Muitas vezes, as pessoas encaram a depressão como uma fraqueza", explica ao SAPO Vítor Rodrigues, diretor clínico da The Clinic of Change, que abriu portas em Lisboa em 2023 e onde Bárbara encontrou, finalmente, um caminho de verdadeiras melhorias. "As pessoas acham que têm de ultrapassar a situação sozinhas e adiam a busca de ajuda. E as correntes abusivas de coaching que vendem esse otimismo exacerbado — aquelas teorias de que tudo é bom, não há coisas más senão na minha mente e eu sou capaz de combatê-las — não ajudam , porque às vezes não estamos bem e temos de procurar ajuda."

A experiência de vida que Bárbara relata passa muito por aí. "Os seis meses antes de ir para a Noruega foram os mais felizes da minha vida, em antecipação daquela aventura e sabendo da sorte que tinha por poder vivê-la. Mas assim que cheguei, bateu-me tudo: era a única portuguesa, estava rodeada de desconhecidos, não conhecia a língua... Estava sozinha e não havia nada que pudesse fazer. Tinha 16 anos e foi a primeira coisa que tinha ganho por mérito, uma oportunidade tão prestigiada, como é que podia desistir?" Esse sentido de dever deslocado e uma maturidade precoce em quem era ainda uma menina faziam-na viver em permanente conflito consigo própria, mas Bárbara foi-se sempre obrigando a ultrapassar todos os seus medos. "Sentia que tinha muita sorte por ser inteligente e pelas oportunidades que tive, e tinha de me agarrar a isso e seguir em frente, acreditando que ia ficar tudo bem."

Até que isso deixou de ser suficiente. Tinha 20 anos, uma vida de sucesso e era perfeitamente incapaz de reconhecer o estado de depressão profunda a que chegara. "Tive de chegar ao ponto de estar a hiperventilar, em lágrimas, prostrada no chão, para reagir." No terceiro ano de universidade, ao mudar-se para a casa onde iria viver com o namorado perto do campus, Bárbara teve um ataque de pânico e percebeu que precisava de fazer alguma coisa. Mas não fazia ideia o quê. Ignorava até a forma de explicar a alguém o  que estava a acontecer-lhe. Teve a sorte de estar nos Estados Unidos, onde a saúde mental já era levada a sério, sobretudo em ambiente académico, e após consultar uma enfermeira especialista, foi encaminhada para uma psicoterapeuta e começou a tomar ansiolíticos e antidepressivos. "Pela primeira vez na vida, sentia-me bem, comecei a fazer exercício, acabei os estudos e corria tudo bem." O problema foi que estava apenas a tratar os efeitos, não a trabalhar as causas. E o efeito não perduraria.

"Para uma percentagem significativa de pessoas que sofrem de depressão e ansiedade, a medicação melhora, mas não se ultrapassa o problema; vai-se testando antidepressivos e terapias e a pessoa arrasta-se nessa situação, sem que volte verdadeiramente a sentir-se bem, com risco de dupla depressão e recaídas cada vez mais frequentes", explica Vítor Rodrigues, apontando que essas são as pessoas indicadas para o tratamento de psicoterapia assistida com ketamina que, entre um leque de outros tratamentos e acompanhamento, a The Clinic of Change oferece. Um tratamento que mereceu, já no ano passado, vários painéis de debate no Congresso Nacional de Psiquiatria, tendo sido apresentados estudos de Francisco Santos (Abordagem na depressão resistente: a experiência do uso de cetamina num hospital do SNS), Pedro Castro Rodrigues (Cetamina combinada com psicoterapia para depressão resistente: real-world evidence e o papel da experiência subjetiva) e Pedro Zuzarte (Cetamina num serviço público: novas fronteiras no tratamento de depressão resistente, dependências e outras comorbilidades).

O fundo do poço e enfim a luz

Ao voltar ao Porto para trabalhar, a saúde mental de Bárbara começou a deteriorar-se até um ponto em que "a depressão era tão resistente a tratamento que até os fármacos deixaram de funcionar, fosse qual fosse o cocktail". Esteve várias vezes de baixa, desesperou, experimentou todas as soluções que lhe propunham, ao ponto de chegar a estar internada no Hospital de Aveiro a fazer terapia electroconvulsiva. Nada funcionava. "Sentia-me tão mal que todos os dias quando ia para o Metro ficava a olhar para os carris. Nunca fiz nada porque não tive coragem."

E então atingiu "o fundo absoluto". "Estava farta de tentar tudo e não podia mais. À hora de almoço, fui para casa, deitei-me e decidi ter um último momento de conforto e nunca mais sofrer", conta. "Estava a fazer uma medicação que sabia ter risco de overdose e tomei a caixa inteira — acho que também por ter consciência da possibilidade de ser uma decisão reversível, se chegassem a tempo para me socorrer." Enfrentar o olhar de profunda tristeza da mãe, quando acordou no hospital, foi o trampolim para decidir que não só nunca mais tentaria algo semelhante como precisava de reagir, de procurar uma verdadeira solução.

"Interessava-me e estudei tudo o que fossem tratamentos para depressão resistente e encontrei estudos sobre a ketamina que me entusiasmaram, porque sugeriam ser das poucas substâncias que conseguem diminuir a intenção suicida em 40%, em apenas 24 horas. Era um milagre", conta Bárbara, que acabou por chegar às notícias sobre a abertura da The Clinic of Change, foi investigar o trabalho de David Nutt e da Awakn, parceira britânica pioneira naquele tratamento inovador, leu tudo o que havia disponível sobre a terapia assistida por ketamina. E enfim contactou Vítor Rodrigues. "Eu estava informada sobre o tratamento e os riscos, e estava desesperada por uma solução. Tinha tirado tempo para mim, para voltar a ser pessoa, em vez de estar só em stand by mode."

Vítor Rodrigues faz questão de explicar que o tratamento não é milagroso e isso mesmo faz questão de transmitir a quem chega à The Clinic of Change, venha de motu proprio ou recomendado pelo seu psicoterapeuta. "Isto não é uma cura, é um passo no caminho", vinca. "Não é 100% — aliás, 30% das pessoas nem têm resposta terapêutica à ketamina —, nem existe nenhum tratamento no mundo que tenha esse nível de eficácia absoluto. Mas é um desbloqueador e há quem melhore de tal forma que nem precisa de continuar a medicação. Outras pessoas vão precisar de trabalho continuado, e por isso também nós temos essa possibilidade para quem não esteja ainda a ser seguido, com consultas de psicologia, psiquiatria e vários tratamentos, incluindo este."

O tratamento de psicoterapia assistida por ketamina não é para todos, há aliás guidelines internacionais sobre a que tipo de condição se aplica e a quem está vedada, sendo essas balizas "respeitadas na íntegra pela clínica, até pelas ligações internacionais à Awakn de David Nutt, que é uma referência mundial na área". De acordo com o diretor clínico, as indicações são a depressão resistente a antidepressivos e a terapias, mas também há estudos muito consistentes que viabilizam este tratamento na doença de adição alcoólica com grande eficácia, havendo ainda evidência empírica suficiente nas perturbações de ansiedade, de comportamentos alimentares e de stress pós-traumático. "Estamos sempre a falar de doentes que já esgotaram as outras soluções, sendo a ketamina a única substância psicadélica que está aprovada em Portugal", sublinha Vítor Rodrigues.

A experiência sempre diferente

Mas afinal como funciona o tratamento, quimicamente, como se explica? O psiquiatra e professor de Psicopatologia e Psicoterapia no ISPA explica. "Há muitas vias bioquímicas, nem todas conhecidas em absoluto, e a ketamina distingue-se porque segue uma via bioquímica distinta da maioria dos antidepressivos. Estes funcionam como inibidores da recaptação da serotonina, isto é, aumentam as substâncias que nos fazem sentir bem nas fendas sinápticas, combatendo a sensação de depressão. A ketamina, por outro lado, vai inibir e atuar noutro neurotransmissor, o glutamato, através do bloqueio de um dos recetores que aumentam essa substância, interferindo também um pouco nas monoaminas."

Para Vítor Rodrigues, porém, mais importante ainda do que a bioquímica, é entender o que está em causa, olhar a imagem maior. "As neurociências cada vez mais olham para o cérebro como um conjunto de redes neuronais. Entre essas, há uma que controla todas as outras, a chamada default mode network — se todas as outras se desligarem, ela continua em funcionamento — e neste tratamento é essa que é desligada, ou seja, todo o material reprimido começa a vir à superfície, porque se desliga o que naturalmente reprime e bloqueia essa parte (um filtro que é necessário, para não ficarmos demasiado desinibidos e não corrermos riscos). Daí também ser necessário o acompanhamento por um profissional em quem se confie muito e com quem haja ligação."

O recurso à ketamina já é usado há anos em Portugal, tendo-se estreado no Hospital Beatriz Ângelo e estando também disponível no Júlio de Matos. É uma terapia aceite, disponível, mas que no público só é utilizada em casos absolutamente extremos. O que a The Clinic of Change garante é o acesso a quem ainda não ultrapassou um limite que torna inviável a recuperação completa, permitindo trazer melhorias e qualidade de vida, capacidade de voltar a funcionar, a quem sente que já não a tem. "Seguimos os mesmos critérios, mas conseguimos atender mais pessoas e dar-lhes um tratamento mais personalizado", resume o clínico. E isso passa por trabalhar, no dia seguinte à aplicação da ketamina, o material que veio à superfície, enquanto ainda há grande neuroplasticidade, novas ligações entre os neurónios que passam a estar ativas permitindo à pessoa ver as coisas de uma forma diferente da que a tinha levado à depressão.

No caso de Bárbara, isso implicou oito consultas prévias com uma das terapeutas da clínica, Carla Mariz, além das sessões de integração posteriores ao uso da ketamina. "Queria ter a certeza de que sentia essa ligação para embarcar no tratamento", explica, contando que após os quatro fins de semana do tratamento voltou às suas sessões de terapia de follow up. Descreve a experiência das sessões como quatro momentos profundamente diferentes uns dos outros e não tem dúvidas de que sentir-se segura na clínica e com a terapeuta foi fundamental para os resultados.

"Eu sou esta bola de sentimentos e emoções à flor da pele e a primeira sessão foi como se pegassem em tudo isso e atirassem pela janela, deixando-me totalmente em paz e aceitação, sem julgamentos. A segunda sessão foi mais emocional, chamo-lhe a experiência de 'todas eu aqui', porque me vi viajar pelas minhas vidas, a resgatar as Bárbaras da infância e da adolescência da sua solidão e tristeza, da falta de esperança, a resgatá-las desses momentos negros. Foi absolutamente curativo. A terceira e a quarta sessões foram uma espécie de chupa-chupa que os miúdos recebem quando vão levar uma vacina (ri-se), em que cheguei ao nível cósmico tradicionalmente associado aos psicadélicos: eu sou tudo, eu sou Deus e o cosmos e estou mesmo bem aqui."

Das sessões de interpretação saiu, por exemplo, a convicção de que faz parte do mundo, que se integra nele, mas também a descoberta de que a arte era o seu lugar seguro, uma das coisas que lhe dão imensa paz — hoje ocupa parte do seu tempo a pintar. "As sessões são sempre diferentes, isso é muito interessante", diz Vítor Rodrigues, apontando o valor de uma experiência totalmente pessoal. "É isso que permite chegar a pistas, como a Bárbara chegou às artes. E é essa diferença da ketamina para outras sessões que passam mais por um plano racional ou intelectual. Nestes, as pessoas dizem: eu percebo tudo mas não consigo mudar nada; mas quando se vive uma experiência intensa, não está apenas a pensar, está a trazer uma memória a uma situação emocional intensa e consegue perceber o significado, sozinho ou na sessão de psicoterapia seguinte", completa o diretor clínico da The Clinic of Change. "Nós aproveitamos os aspetos bioquímicos e a neuroplasticidade cerebral, mas o que nos importa é sobretudo trabalhar os aspetos psicossociológicos, daí ser psicoterapia assistida por ketamina, porque os aspetos psicológicos são trabalhados, aproveitando os efeitos psicadélicos das sessões. A Bárbara é um excelente exemplo da riqueza psicológica disto."

E podem as coisas correr mal? "Há uma avaliação médica prévia que visa precisamente evitar isso", responde Vítor Rodrigues, assegurando que a ketamina é, do ponto de vista médico, "uma substância muito segura", usada como anestésico até em crianças. "Neste tratamento, usamos doses sub-sub-anestésicas, doses mínimas. Claro que há contraindicações, como a hipertensão arterial não controlada, a hipertensão ocular e condições como insuficiências cardíacas, hepáticas, renais, em que o bom senso dita que não se faça." Do ponto de vista psiquiátrico, a ketamina também não se recomenda a pessoas com condições psicóticas complicadas, como a esquizofrenia ou a doença bipolar descontrolada, mas na maioria dos casos em que situações destas não se verificam pode fazer toda a diferença, para melhor.

"O pior que pode acontecer a quem tem condições para experimentar é não acontecer nada", resume o clínico. E isso também é de considerar, dado o preço do tratamento, que vai dos 3 aos 5 mil euros, comparticipados por seguro de saúde na parte das consultas de psicologia e psiquiatria, mas não no tratamento de ketamina. "Implica algum esforço", reconhece Vítor Rodrigues, "mas tem um custo-benefício grande, porque se volta a conseguir funcionar e a ter uma vida. É um investimento", diz, adiantando que seria útil haver algum tipo de comparticipação do Estado a este tipo de tratamentos.

Bárbara concorda. "Isto pode salvar muitas vidas e isso conta muito na saúde pública. Eu andei muitos anos à procura de algo sem nada funcionar e finalmente cheguei a uma solução que resultou. Ainda há caminho a fazer, mas este tratamento foi fundamental para uma pessoa que estava desesperada, como eu."