Estou agora mais certo de que dificilmente teremos um termo em português que faça as vezes de “umarell”. Palavra de origem bolonhesa, umarell nasce de umarèl, «velho» no dialecto da Emília-Romanha, e descreve todo e qualquer homem com mais ou menos idade que passa o tempo a fiscalizar inadvertidamente construções na via pública. O fenómeno não é exclusivamente italiano e muito menos do sul da Europa, já que se observa por toda a parte. Ora, onde há homens há umarell.

A rigidez do português não permite a definição de um termo próprio igualmente indivisível; contentamo-nos com a expressão composta «velhos nas obras», tão bem popularizada pelo perfil de Instagram com o mesmo nome e justificada pelo costume que também por cá convoca essencialmente os reformados. Tem menos classe do que a forma italiana, carregada de sprezzatura, mas não tem menos graça nem peso. Ambas são minimamente jocosas, quase ofensivas, já que simbolizam a mesma prática desnecessária e inusitada, ao mesmo tempo que a desconsideram. Do que uma obra não necessita é de mais um chefe, mas estes sempre aparecem com as mãos atrás nas costas e com ar de quem sabe mais do que os outros homens. E talvez saibam.

O umarell não é de agora, mas tem beneficiado da amplificação dada pelas redes sociais. É um dos fenómenos que caso não contasse com a bengala da internet passaria por despercebido. De qualquer modo, já era tema antes de ser tema pois é prática que tem guiado o homem desde – apetece arriscar – os tempos das primeiras construções e vai certamente acompanhá-lo até às últimas. O que perfis de Instagram, números icónicos de humoristas famosos (Jerry Seinfeld) e crónicas em busca de significado fazem é revisitar lugares-comuns.

É, pois, verosímil imaginar um homem que estivesse a circundar um Convento de Mafra ainda em construção a oferecer conselhos técnicos abelhudos aos homens que efetivamente estariam a levantá-lo. Saramago, que dedica um capítulo inesquecível à pedra Benedictione, teria tido engenho mais do que suficiente para comentar o contributo destes funcionários indevidos. De facto, imagine-se qualquer uma das grandes obras feitas aqui ou lá fora: todas, sem excepção, foram de certeza fiscalizadas por homens do outro lado do estaleiro.

Será que a cura para a solidão masculina passa pelo aparente controlo, tanto indesejado como lúdico, de obras na via pública? Pergunta pouco séria, a dar-se à expressão meme que ironiza uma situação que, preocupando, afeta nem por coincidência com especial intensidade os homens mais velhos, já reformados e com número igual de certezas e de dúvidas. Em qualquer caso, a resposta é indefinida; a cura deverá ser outra. O que se sabe é que os homens querem sentir-se úteis e ser úteis – são a evidência da vida metropolitana e o humor (que nela se baseia) que o demonstram de um modo descaradamente simples.

Diferentes homens oferecem explicações diferentes para as fiscalizações que empreendem – se bem que a maior parte não oferece justificações, apenas olhares. Não surpreende o facto de a grande maioria ter mesmo que ver com a assustadora condição Não-Ter-Nada-Para Fazer, comum e universal ao ponto de uniformizar a existência dos homens assim que atingem a uma certa idade. O que surpreende – e continua a surpreender – é o desabafo que, apenas por sorte e de passagem, ouvi há um par de dias de um «velho» para um pedreiro que o terá provavelmente ignorado. Com os olhos postos numa praça esburacada de Cascais, disse: «Era aqui que eu e os meus primos jogávamos à bola». Observando aquele ponto em construção, fez-se de Proust e voltou a outro tempo. Naquele espaço barulhento e poeirento, o «velho» tornou a ser a criança que foi. Nas mãos que tinha atrás das costas, via-se uma bola de futebol gasta e remediada, invisível.

Não é errado afirmar que os homens assumem a posição de fiscal – é até muito correto. Acontece que as obras são apenas uma desculpa. Eles não se interessam realmente pelo que está a ser feito; interessam-se mais pelos espaços e pelos tempos que perderam porque já sabem que, em vida, a mudança é obra que nunca acaba e apenas começa. Novos ou velhos, agora ou no futuro, é evidente que somos todos velhos nas obras.