São dois os prazos:

  • Até 10 anos depois de haver atingido a maioridade;
  • Dentro de três anos a contar da data em que teve conhecimento de circunstâncias de que possa concluir-se não ser filho do marido da mãe.

Nos últimos anos, este espartilho temporal tem causado cisão nos tribunais - da primeira instância ao Constitucional - com muitos juízes a rejeitarem aplicar a lei, por entenderem que viola o Direito à Identidade, previsto na Constituição. Foi isso que aconteceu há duas semanas, num acórdão do Supremo Tribunal de Justiça.

“Há mais de um ano que viviam em casas e cidades separadas”

Trata-se do caso de uma mulher de 72 anos que tinha intentado uma ação de impugnação e investigação de paternidade. Pedia na prática que deixasse de constar no assento de nascimento o nome do marido da mãe como seu pai, alegando que isso era uma impossibilidade: "não é o seu pai biológico, pois que há mais de um ano este e sua mãe viviam em casas e cidades separadas, não mantendo qualquer relação afetiva e amorosa."

A mulher apresentou à justiça a suspeita de quem era o verdadeiro pai.

"A sua mãe, anos antes do nascimento da Autora, tinha passado a viver na casa de DD, viúvo, onde fora trabalhar como empregada doméstica, com este tendo vindo a manter uma relação amorosa."

O tribunal haveria de autorizar a exumação de um filho do presumível pai, uma vez que o homem tinha falecido em 1971 e já não existiam vestígios biológicos. O exame de genética, realizado no Instituto de Medicina Legal e Ciências Forenses, chegou a uma probabilidade de 99,97% daquele ser o pai da autora.

Pedido rejeitado

Apesar do resultado, o Tribunal da Relação acabou por rejeitar o pedido da mulher, por entender que deveria ter sido ela a fazer prova de que só soube quem era o verdadeiro pai nos três anos anteriores a ter interposto a ação, prazo limite imposto pela lei.

No Supremo Tribunal de Justiça, o caso foi parar às mãos dos três juízes da 1ª secção Cível que, por unanimidade, a 28 de janeiro, decidiram alterar o rumo desta história.

Para os conselheiros, "os concretos prazos estabelecidos na lei implicam uma restrição desproporcionada e excessiva do direito à identidade pessoal" e por isso, recusaram aplicar os prazos do Código Civil.

Divisão no Tribunal Constitucional

Também no mês passado, surgiu uma outra decisão no mesmo sentido, mas desta vez, no Tribunal Constitucional. Neste caso, estava em causa um pedido de investigação de paternidade.

Um homem, do distrito de Santarém, filho de pai incógnito, foi a tribunal indicar a pessoa que, apenas em 2021, soube ser o seu verdadeiro progenitor. O presumível pai contestou a ação, mas foi obrigado a fazer um exame genético, cujo resultado foi peremptório: "apurou-se probabilidade de o réu ser pai do autor de 99,999999999995%".

A primeira instância declarou a paternidade e ordenou o averbamento no registo de nascimento. Mas a decisão seria revogada pelo Tribunal da Relação de Évora, que entendeu que o autor da ação tinha, afinal, tido conhecimento da paternidade em data incerta, mas entre 2014 e 2015, altura em que já estava ultrapassado o prazo especial de caducidade, fixado no Código Civil.

Mais uma reviravolta no processo

Chegado ao Supremo, o processo deu mais uma reviravolta. Num acórdão de 30 de outubro de 2023, um coletivo presidido pela Conselheira Maria Clara Sottomayor, arrasou a imposição de prazos.

"A pessoa humana, à luz dos valores da Constituição, deve ter o direito de, em qualquer momento da sua vida, questionar o Estado sobre quem é e quem são os seus progenitores biológicos. Os motivos que teve para só numa fase tardia da vida intentar a ação de investigação da paternidade dizem respeito ao seu foro íntimo e estão relacionados com a sua história e a dos seus pais biológicos. Por dizerem respeito à dignidade mais profunda do ser humano – o direito a saber quem é e de onde veio – o Estado não tem legitimidade para avaliar e hierarquizar estes motivos em função do decurso do tempo (ou de qualquer outro critério), fixando um prazo para o exercício do direito da ação de investigação da paternidade."

O Supremo fez ressuscitar o acórdão de primeira instância, contudo, a história não acabaria aqui. O Ministério Público do Supremo recorreu para o Tribunal Constitucional, mas no Palácio Ratton, o procurador-geral adjunto tinha afinal um outro entendimento do colega.

"As ações de investigação da paternidade devem poder ser instauradas a todo o tempo, sendo constitucionalmente ilegítima qualquer limitação temporal para o exercício destes direitos." Luís Eloy - procurador-geral adjunto do Tribunal Constitucional

É já o segundo caso em que o representante do Ministério Público no Tribunal Constitucional toma esta posição, por muitos classificada de progressista, defendendo o contrário do que diz atualmente a lei.

Quatro votos a favor contra um

A 23 de janeiro, o caso de Santarém acabou por ser apreciado pela 2ª secção do TC e, por quatro votos a favor contra um, foi decidido julgar inconstitucional os prazos impostos pelo Código Civil.

"Entendemos que as normas fiscalizadas, a estabelecerem prazos de caducidade para as ações de investigação de filiação biológica, colidem com os direitos fundamentais à identidade pessoal e ao livre desenvolvimento da personalidade e a constituir família, previstos no nº 1 do art. 26º e no nº1 do art. 36º, em termos proporcionalmente inadmissíveis à luz do nº2 do art. 18º, todos da nossa Constituição."

O caso irá certamente ao plenário do TC, onde se juntam os 13 juízes, e, por agora, ainda é impossível prever o desfecho.

"O Tribunal Constitucional, pelas decisões que conhecemos, está hoje dividido, nós não sabemos exatamente ainda qual vai ser a posição do Tribunal Constitucional, quando todos os juízes forem chamados a decidir sobre esta questão."

A explicação dos prazos

Professor de Direito na Universidade de Coimbra, Rafael Vale e Reis escolheu como tese de mestrado "O direito ao conhecimento das origens genéticas". Explica a origem dos prazos.

"Historicamente, o que sabemos é que o legislador procurou acautelar vários interesses, desde logo garantir que se descobria a verdade no Tribunal. Isto porquê? Porque tradicionalmente nestas ações a prova era sobretudo feita à custa de testemunhas. Ora bem, decorrido muito tempo, as testemunhas poderiam já não se lembrar verdadeiramente daquilo que tinha acontecido há 20, 30 anos e, portanto, dizer que havia um prazo para propor este tipo de ações de investigação da paternidade era, de certa maneira a guarda avançada da prova no Tribunal."

Com o passar dos anos, este e outros fundamentos perderam força:

"A partir do momento em que, há 20 ou 30 anos, os progressos científicos trouxeram os exames de ADN, este argumento, obviamente, caiu. Mas este não era o único argumento. Falava-se também da segurança jurídica em geral, a segurança jurídica de que há um tempo para tudo. Claro que este argumento também perdeu força, com a evolução do direito. Nas questões pessoais a segurança jurídica não é assim um valor tão importante, isto é, a segurança jurídica não pode ser alcançada à custa do direito fundamental a conhecer as suas origens genéticas."

Defender as famílias dos “caça fortunas”

Há ainda um terceiro argumento para a existência de prazos: defender os investigados ou as suas famílias dos chamados "caça fortunas". Um protecionismo que também tomba perante os direitos da personalidade de quem quer ver restabelecida a paternidade.

Rafael Vale e Reis diz que é assim um pouco por todo o mundo.

"Na verdade, a generalidade dos países, quer aqueles que estão geograficamente próximos de nós, mas até numa perspetiva global, o que podemos dizer é que é cada vez mais rara a consagração de prazos de caducidade, da investigação, da maternidade e da paternidade. Ou seja, há um movimento, que pode considerar-se até mundial, de eliminação destes entraves ao estabelecimento dos vínculos de maternidade e de paternidade”.