
Os últimos meses foram de mudança, da casa dos meus pais para a minha. O processo devia ser natural, mas, nas pessoas com deficiência, não é. O percurso que me tinha sido traçado, pela família e pelo imaginário social, era viver com os meus pais até eles morrerem. Depois, ficaria com a minha irmã, com desfecho incerto: ora eu morria, ficando com ela até ao fim, ora, partindo ela primeiro, eu seria institucionalizado.
Percebi que essa não era a minha história.
Tomar a decisão definitiva da mudança e comunicá-la foi um choque para os outros. As perguntas e sentenças multiplicaram-se: Não acho essa decisão sensata; Tu não vais aguentar; Como vais ficar sozinho durante a noite?; E se acontece alguma coisa?; E a cama? Não vais ter uma cama de casal, pois não?
Não raras vezes exaltei-me nas conversas. Ganhei pouco ou nada com isso, mas as reacções, quando nos magoam, são viscerais. É preciso tolerância. Tolerar o preconceito do outro, persistir e mostrar que a história pode ser diferente.
A habitação é um direito constitucional desde 1976 em Portugal, existem leis subsequentes, bem como exposição mediática. Na deficiência, é mais um tabu. Existem dois tipos de políticas: o investimento público em residências e lares e o crédito à habitação com juro bonificado. Porém, as histórias de discriminação, no acesso aos seguros necessários para créditos, multiplicam-se.
Comecei a pensar neste texto em torno da pertença. Qual é, agora, a minha morada?
Ao mudar de casa fiquei sem o mesmo sistema de apoio e o meu grau de dependência é grande: não cozinho, não sou capaz de fazer a cama nem abrir uma janela. Todas estas actividades precisam de assistência e criatividade nas soluções. Beneficiam de políticas sociais, onde se insere a assistência pessoal e os produtos de apoio.
A minha emancipação é fruto de muito esforço, privilégio e um advento político-social em risco. Recentemente, nos Estados Unidos da América, culpou-se a empregabilidade de pessoas com deficiência por um acidente aéreo, insistindo-se ainda numa cura para o autismo. No Parlamento português, este ano, a deputada Ana Sofia Antunes foi insultada pela bancada do Chega. Disseram: “devias estar numa esquina”. Como a própria salientou, toda a comunidade foi ofendida.
Mudei de casa na semana em que Trump ganhou as eleições e dei por mim a observar o mundo: o que me rodeia, onde senti resistência sobre essa decisão, e o ocidental, que elege a extrema-direita, legitima o seu discurso e está mais xenófobo.
Estamos a viver em estado de guerra, nuns territórios é cultural, noutros é bélica. Seremos privilegiados enquanto Portugal viver apenas guerras culturais, mas, se queremos superá-las, precisamos de observar o que está a acontecer. O exemplo mais gritante é o conflito Israel-Palestina.
Foi a culpabilização, o moralismo e o intitulamento que sustentaram a criação do Estado-nação judaico, não foi a empatia nem uma visão plena do ser humano. Oitenta anos depois do Holocausto, em vez de paz, encontramos outro genocídio.
Voltaire escrevia, em “Tratado sobre a Tolerância” (1763), sobre a liberdade religiosa: “O direito de intolerância é absurdo e bárbaro: é o direito dos tigres, e é bem horrível; porque os tigres matam para comer e nós andamos a exterminar-nos por causa de parágrafos”.
Em Gaza, “parágrafos” levaram a mais de 18 mil amputados que, agora, são pessoas com deficiência. Também foram “parágrafos” que mataram 250 mil pessoas com deficiência no regime nazi.
Hoje, todas as pessoas vulneráveis no mundo são alvos a abater. Ninguém está protegido. E isto resulta numa sensação, ou numa situação, de desterro. Ficamos sem tecto, sem um propósito na vida. É aqui que olho para o estado do mundo e vejo que sou apenas mais um, com os meus desafios, seguro e em minha casa, mas com pontos de contacto e empatia para com o sofrimento dos outros.
Olhando para o meu percurso, posso dizer que foi difícil ver que o meu corpo cresceu com deformações; fico frustrado quando não aguento as 40 horas de trabalho semanais; não conduzo; e, se quisesse ter filhos, teria de lidar com a hereditariedade da minha doença. Tudo isto são questões que só eu posso resolver - se não o fizer só sofrerei mais.
A deficiência, que é apenas uma característica, determina e reduz a nossa identidade aos olhos da sociedade. Vivemos amordaçados por imposições, o desafio é libertarmo-nos para encontrarmos o nosso lugar. Conseguirmos aceitar uma folha em branco e criar algo diferente a partir daí.
Enquanto continuo esta mudança, questiono o meu lugar. As palavras de desencorajamento ainda ecoam em mim. Em Novembro, duas semanas após a mudança, parti um braço. Voltei para junto dos meus pais, onde fiquei três meses em recuperação. Estou novamente em minha casa desde Fevereiro. A rotina continua a mudar: hoje tenho dois assistentes pessoais, num horário de 80 horas semanais, e ainda o apoio dos meus pais.
O esforço a que me propus é maior do que pensava.
Compreendo agora que a nossa morada é um estado constante de metamorfose. Passamos pela infância, idade adulta e velhice em diferentes casas, com diferentes graus de dependência dos outros. Alimentar a ideia de que pertencemos apenas a um espaço físico, estanque, com um guião pré-definido, é uma falácia.
A minha morada é fora dos limites da família tradicional, apreciando ter crescido nela. Vejo-me, hoje, a pertencer tanto à minha casa como à dos meus pais, às pessoas que amo, ao meu trabalho e ao meu legado.
Precisamos de recuperar a nossa capacidade de empatia para devolver amor a nós próprios e aos outros. Nesta fase de vida, com tanta opressão no mundo exposta nos media, procuro ler autores que viveram tanto um estado de guerra bélico como cultural.
Primo Levi, escritor e químico de origem judaica, sobreviveu ao Holocausto. Ao lê-lo penso no que é suportar a violência de um regime, pelo simples facto de ter uma característica que contrapõe normas. Na sua poesia encontro a dignidade que, reconhecida em toda a humanidade, levaria cada um de nós à sua morada.
Considerai se isto é um homem
que trabalha na lama
que não conhece paz
que luta por meio pão
que morre por um sim ou um não.
(...)
Ordeno-vos estas palavras.
Gravai-as no vosso coração
Quando vos deitardes e ao levantar:
repeti-as aos vossos filhos.
Ou que a vossa casa se arruine,
a doença vos definhe,
os vossos filhos vos virem a cara.
(Excerto de “Shema”, de 1946, escrito um ano após a sua libertação de Auschwitz.)