Num país onde falta tudo — professores, médicos, técnicos superiores, forças de segurança — menos retórica política, existe um património invisível que jaz em silêncio, emparedado pelo desleixo e pela amnésia: bairros inteiros do Estado, erguidos com dinheiro público para servir causas públicas, que hoje estão votados ao abandono. Não por falta de uso possível, mas por excesso de indiferença.
No raio de cem quilómetros que rodeia a minha casa — e creio não viver numa excepção geográfica — encontro aquilo que deveria envergonhar qualquer ministro com ambições de boa gestão: o Bairro de São Gabriel, em Pegões, construído para acolher os funcionários da Emissora Nacional das Ondas Curtas, apodrece lentamente enquanto se proclama a transição digital e se clama por habitação condigna. Casas intactas por fora, esquecidas por dentro.
Ali perto, em Marinhais, sobrevive o Bairro RARET, nas imediações de Glória do Ribatejo, uma aldeia de antenas, torres e lares funcionais que, no auge da Guerra Fria, serviu como bastião da propaganda ocidental em solo português, numa operação coordenada com a CIA para contrariar a influência soviética nos países da cortina de ferro. Foi ali que o Ocidente falou para o Leste. Hoje, é só mais um silêncio.
Mais a sul, nas franjas de Vendas Novas, a vegetação reclama as estruturas do Bairro da Marconi, construído pela iniciativa privada da antiga Companhia Marconi, hoje totalmente ao abandono, apesar do seu valor patrimonial. E em Vila Fernando, junto a Elvas, o tempo venceu o Estado, enquanto os edifícios do antigo centro educativo esperam. Esperam pelo quê? Pelo colapso?
E no Polígono Militar de Vendas Novas, as antigas casas destinadas às famílias dos militares do Regimento de Artilharia n.º 5 estão hoje ao abandono, como que a simbolizar a ruptura do contrato entre a Nação e aqueles que a serviram.
Há um ponto comum a todos estes casos: nenhuma estratégia, nenhum inventário público, nenhuma política nacional de recuperação e afectação funcional deste património público ao serviço das classes do Estado que servem a República em regime de destacamento. Falo de professores deslocados, de médicos em mobilidade, de forças de segurança a quem se exige serviço em locais sem habitação acessível, ou sem qualquer tipo de apoio logístico. Em vez de lhes garantir o essencial, o Estado prefere empurrá-los para o desespero da renda de mercado, enquanto desperdiça património que já é seu. Que já é nosso.
Quantos bairros mais existem por Portugal fora nesta situação? Quantas casas, escolas, pavilhões, estruturas mistas? Ninguém sabe. Porque ninguém fez o levantamento, ninguém criou uma base de dados nacional, ninguém pensou que o Estado possa – e deva – viver em articulação consigo próprio. A habitação dos professores deslocados poderia estar no antigo bairro da Emissora Nacional. Os médicos sem casa em Elvas poderiam viver em Vila Fernando. As forças de segurança em Vendas Novas poderiam usar as casas militares do Polígono. Mas não. O Estado vive como se fosse uma manta de retalhos, onde cada serviço ignora o outro, e onde a única coisa que se partilha é a decadência.
Um país que abandona o seu património não abandona apenas pedras: abandona a sua história, a sua memória, e o seu dever. Um Estado que não cuida do que tem, jamais poderá cuidar do que quer construir.
O problema não é técnico. É moral.
É tempo de exigir, com urgência e sem demagogia, um levantamento nacional do património habitacional do Estado, com especial foco nos edifícios devolutos, nos bairros funcionais e nas antigas instalações públicas que possam ser requalificadas e colocadas ao serviço dos servidores públicos deslocados. Seria um acto de justiça, de poupança e de inteligência. Tudo aquilo que, infelizmente, temos deixado à porta.
E o mais inquietante é isto: todos os exemplos que aqui dei estão apenas dentro do raio da minha residência. Cem quilómetros à volta. Imagine-se agora o que não haverá por todo o país, do Minho ao Algarve, da Beira Alta à Madeira. Não falta património. Falta vontade.
TEXTO:
Paulo Freitas do Amaral
Professor, Historiador e Autor