A obra centra-se nas 137 fotografias a preto e branco de Sebastião Salgado, tiradas ao longo de quase duas décadas, num testemunho das condições de vida dos "desterrados no Brasil".

Página a página, o livro de Salgado fixa os rostos dos camponeses, das suas famílias, dos seus filhos, os seus gestos, os olhares, acompanha homens, mulheres, crianças de rua, no seu dia-a-dia, e testemunha os assentamentos do Movimento dos Sem Terra, que reclamavam "um chão" para viver.

'Terra', o livro, começou a tomar forma depois do massacre, ocorrido em 17 de abril de 1996, quando 155 soldados da polícia militar abriram fogo sobre uma manifestação de trabalhadores, perto da localidade de Eldorado dos Carajás. As autópsias, citadas pela imprensa, foram comuns na morte a tiro à queima-roupa. Nenhuma acusação foi deduzida.

Dois meses mais tarde, em 19 junho de 1996, Sebastião Salgado convidou José Saramago para escrever o prefácio da obra.

O escritor português anotou então no seu diário: "Sebastião Salgado e Lélia, sua mulher, chegaram hoje a Lanzarote e regressam já amanhã a Paris, donde vieram. O objetivo da rápida visita foi conversarmos sobre o seu projeto de um livro de fotografias, na mesma linha daquele soberbo 'Trabalho' [...]. Desta vez as imagens irão dar público testemunho da luta dos camponeses brasileiros que fazem parte do Movimento dos Sem Terra".

José Saramago acrescentou: "São imagens impressionantes da ocupação de herdades deixadas sem cultivo pelos proprietários, imagens da repressão policial e dos pistoleiros a soldo do latifúndio, imagens de assassinados, imagens de gente que quer trabalhar e não tem onde, que quer comer e não tem de quê."

Na entrada do diário reproduzida pela revista Blimunda da Fundação José Saramago, o escritor descreveu como se sentaram "ao redor da mesa da cozinha, passando as fotografias de mão em mão, quase em silêncio, com um nó na garganta e os olhos afogados".

"Sebastião Salgado veio aqui para me pedir que escreva umas páginas para o livro. Assim farei, embora de antemão saiba que, diante do que acabei de ver, todas as palavras sobram, todas são de mais. Ou de menos."

Em 18 de junho de 2010, o dia da morte de José Saramago, Sebastião Salgado recordou: "Quando propus a participação [de José Saramago] no livro, foi muito mais que a introdução. Foi uma ação que a gente fez em conjunto, um manifesto".

'Terra', o livro, reúne ainda quatro canções de Chico Buarque. Em conjunto, imagens de Salgado, prefácio de Saramago e música do compositor e escritor brasileiro recordam os factos, não esquecem massacres anteriores, homenageiam os que se levantam, "desgarrados da terra", e sublinham "a importância da luta pelo chão".

"Posto diante de todos estes homens reunidos, de todas estas mulheres, de todas estas crianças [...], cujo suor não nascia do trabalho que não tinham, mas da agonia insuportável de não o ter, Deus arrependeu-se dos males que havia feito e permitido, a um ponto tal que, num arrebato de contrição, quis mudar o seu nome para um outro mais humano", escreve Saramago no prefácio de 'Terra'.

"Falando à multidão, anunciou: 'A partir de hoje chamar-me-eis Justiça'. E a multidão respondeu-lhe: 'Justiça, já nós a temos, e não nos atende'. Disse Deus: 'Sendo assim, tomarei o nome de Direito.' E a multidão tornou a responder-lhe: 'Direito, já nós o temos, e não nos conhece.' E Deus: 'Nesse caso, ficarei com o nome de Caridade, que é um nome bonito.' Disse a multidão: 'Não necessitamos de caridade, o que queremos é uma Justiça que se cumpra e um Direito que nos respeite.' Então, Deus compreendeu que nunca tivera, verdadeiramente, no mundo que julgara ser seu, o lugar de majestade que havia imaginado, que tudo fora, afinal, uma ilusão, que também ele tinha sido vítima de enganos, como aqueles de que se estavam queixando as mulheres, os homens e as crianças, e, humilhado, retirou-se para a eternidade."

A penúltima imagem que Deus ainda viu, prossegue Saramago no prefácio, "foi a de espingardas apontadas à multidão, o penúltimo som que ainda ouviu foi o dos disparos, mas na última imagem já havia corpos caídos sangrando, e o último som estava cheio de gritos e de lágrimas."

As canções de Chico Buarque prolongam a visão dos factos. Nenhuma delas parte de poemas de Saramago, mas todas partilham o que, das suas palavras, se destina a ser ouvido.

Assim são "Assentamento", "Brejo da Cruz", "Fantasia", e também "Levantados do Chão", composta em parceria com Milton Nascimento, que toma o título do romance do escritor e o seu espírito: "Como então? Desgarrados da terra? Como assim? Levantados do chão?"

O álbum foi publicado pela Companhia das Letras em 1997 e Sebastião Salgado, Chico Buarque e José Saramago cederam os direitos da edição brasileira ao Movimento dos Sem Terra.

Em 1998, 'Terra' deu a Sebastião Salgado o Prémio Jabuti de Literatura na categoria reportagem.

Sebastião Salgado, considerado um dos mais importantes expoentes da fotografia do mundo, morreu hoje, aos 81 anos, informou o Instituto Terra, organização não-governamental fundada pelo ativista.

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