
Editado esta semana pela Quetzal, 'Morramos ao menos no porto' é o segundo romance de Francisco Mota Soares -- que, na verdade, foi o primeiro a ser escrito -, depois de 'Aqui onde canto e ardo', que foi publicado no ano passado pela Gradiva e venceu o prémio revelação Agustina Bessa-Luís de 2023.
A história acompanha a ligação de Silvina e António e faz o retrato de um casamento de 25 anos, contado em diferentes dimensões, e revelando todo um mundo de dor, morte e violência, sob uma toada melancólica, que dá até voz aos mortos que murmuram debaixo do chão.
O título foi retirado de Séneca, como revela o excerto de 'Cartas a Lucílio' apresentado na abertura do livro, em que se lê "vivemos no meio das vagas, morramos ao menos no porto".
E é no meio das vagas que vivem as personagens deste romance, lutando para se manterem à tona, nem sempre conseguindo, e revelando toda a sordidez de que o ser humano é capaz, um tema que sempre atraiu o autor, como o próprio confessou, em entrevista à agência Lusa.
"Interessa-me muito a construção do lado mais violento das pessoas, das personagens, daquilo que são as nossas maiores dores e, nesse sentido, quase de escarafunchar uma determinada personagem, de ir ao âmago e procurar onde é que está a nossa maior violência. Nesse sentido, [o romance] torna-se impiedoso".
A escritora Adriana Lisboa, um dos membros do júri do Prémio José Saramago, disse na altura da atribuição, que este é um romance "impiedoso" e que os leitores não querem saber de piedade, nem querem ser carregados no colo, classificação com que Francisco Mota Saraiva diz concordar, porque mesmo enquanto leitor, sempre buscou o lado mais obscuro da humanidade.
"Por natureza, procuro uma certa escuridão, na leitura, mesmo na arte. Eu acho que, de certa forma, quando escrevo -- eu gostava de ter jeito para a pintura e não tenho -, muitas vezes, naquilo que escrevo, quase que pretendo fazer determinados quadros", afirmou.
Francisco de Goya é um dos exemplos a que recorre para falar dos seus "quadros muito negros", que, não funcionando necessariamente como inspiração, têm "um lado mais obscuro e mais escuro" que lhe interessa muito.
António é o narrador da história, que embala a tristeza da viuvez enquanto cuida das feridas da mulher, Silvina, um corpo defunto sentado numa cadeira de baloiço, cujos odores se misturam nos sumidouros da cidade, ocultados pelo cheiro de flores.
Há também uma parteira que recebe meninas para fazer abortos, um sargento que se julga coronel e que persegue rapazinhos no parque, um passador que leva meninos a salto para lá da fronteira, ministros corruptos, um desastre numa estrada e um rapaz em movimento, que não sai do mesmo sítio.
Quase tudo se passa no mesmo prédio, com o seu chão de madeira velha rangente, buracos na parede e maus cheiros que emanam nos ralos.
Francisco Mota Saraiva conta que foi construindo uma ideia de uma cidade na cabeça, sem se preocupar com a localização ou espaço temporal, mas apenas a observação que faz do mundo.
"Não me interessa muito contar exatamente uma história, porque já tudo foi escrito e contado, mas interessa-me explorar aquilo que são as dores do ser humano, as dificuldades e os maiores desafios, como seja a prostituição, a pedofilia, depois há sempre um lugar de hipocrisia, onde a política está muito presente".
Para o escritor, é "uma inevitabilidade" escrever a partir da observação que faz do espaço.
"E também não se conhecem histórias que sejam absolutamente cativantes ou que nos façam pensar e mergulhar no mais fundo de nós, se não procurarem esse sentido mais violento e mais profundo", considerou, explicando assim os temas que lhe ocorrem.
No entanto -- explica -- isto nunca foi o seu objetivo inicial, "foi surgindo naturalmente, para ir fazendo uma composição das pessoas que frequentam e se movem nessa cidade, com todas essas angústias e todos os problemas sociais".
O prédio onde decorre grande parte da ação, ganhando ele próprio uma vida, foi o ponto de partida, "um pequeno detalhe" que ganhou dimensão.
"Quando comecei a escrever o livro, eu vivia numa daquelas casas antigas, com tetos altos, chão de madeira. E estas casas são casas que têm muita história e têm muita vida, têm aquele som de madeira que range e parece que a própria casa se move por si própria. E eu comecei a imaginar, de alguma maneira, o que seria se alguém estivesse debaixo daquele chão, como se fossem os nossos mortos debaixo desse mesmo chão, que falassem".
Foi então construindo a história à imagem do prédio onde vivia, com toda uma diversidade de pessoas e de personagens, que se observavam umas às outras.
O estilo narrativo de Francisco Mota Saraiva abala os fundamentos da narrativa clássica, apresentando-se como uma escrita torrencial, encadeando palavras e imagens quase sem interrupção, dando à leitura um ritmo constante e contínuo, e ao mesmo tempo musical, mesclando linguagem crua e poética.
Como qualquer arte ou ofício, esta escrita exige trabalho e depuramento, mas na génese está a influência do Jazz, um estilo musical de que gosta muito, contou.
"O jazz está cheio de vários instrumentos que parece que às tantas se interrompem uns aos outros. E a verdade é que não deixa de existir ali uma melodia. Aquilo que eu faço, muitas vezes, quando estou a escrever, é também ir lendo alto o que escrevo, para tentar encontrar essa música sem perder o controlo do caminho para onde quero ir, como se existisse ali uma certa pauta e eu fosse escrevendo nesses interstícios".
Algumas palavras são recorrentes ao longo do texto, sendo usadas para diferentes personagens e diferentes situações, quase como um elo de ligação, um recurso linguístico que, mais uma vez, o escritor usa como uma espécie de "refrão da música".
"Eu tenho um lado muito obsessivo dentro de mim, e essas palavras que se repetem ajudam-me a completar determinados círculos, a chamar-me outra vez para a construção da personagem e, obviamente, não sendo propositado, acho que isso também pode funcionar como uma certa orientação para o leitor dentro do texto".
Jurista e consultor de profissão, com licenciatura em Direito e mestrado em Direito e Gestão, Francisco Mota Saraiva não sabe explicar como se tornou romancista, mas escreve desde muito cedo e recorda-se bem do momento em que encontrou a sua voz: aos 14 anos, numa composição para a escola sobre as férias.
"Decidi fazer uma composição um pouco diferente, mais ficcionada, se calhar mais mentirosa, e a partir daí achei que poderia fazer coisas diferentes", recordou, acrescentando que desde então foi sempre escrevendo e, terminada a faculdade, começou a dedicar-se de forma mais rigorosa e disciplinada, aproveitando sobretudo as manhãs e os fins de semana.
Hoje acumula as duas tarefas porque precisa de viver e tem contas para pagar: "Eu encaro isto como alguém que precisa de duas profissões para sobreviver. De um lado está uma profissão, digamos, mais mecânica, mais repetitiva, e depois do outro lado está aquilo que efetivamente eu gosto, que é escrever".
Em dois romances publicados, foi duas vezes premiado, um feito incomum que confessa causar-lhe alguma ansiedade, mas não ao ponto de recear escrever e não conseguir corresponder às expectativas criadas ou superar as suas obras anteriores.
"Não há expectativa nenhuma para manter. Eu sei a minha forma de escrever, é a forma que eu conheço de escrever, e foi com ela que eu pude ser publicado. Se eu puder continuar a escrever desta forma e ir depurando cada vez mais a minha escrita, se puder ser honesto com aquilo que escrevo, acho que isso já é meio caminho andado".
A sessão de lançamento de 'Morramos ao menos no porto' vai acontecer no dia 27 de março, pelas 18h00, na sala José Saramago, na Biblioteca Palácio Galveias, em Lisboa.
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