Numa altura em que os livros ainda não eram tendência – pelo menos no que ao digital diz respeito – Marta Carvalho deparou-se com a vontade de falar sobre as suas leituras, mas poucas pessoas à sua volta para o fazer. Foi nesse momento que decidiu criar uma conta no Instagram dedicada aos livros, muito antes de o BookTok ser o sucesso que vemos até aos dias de hoje. A Litulla nasceu em 2018 e hoje é também uma newsletter no Substack, um book club e uma loja de merchandising. Um conteúdo que consegue ter destaque no meio dos vídeos rápidos que parecem estar em todo o lado hoje em dia.

O que é que te levou a lançar um projeto no digital?
A Litulla começou como um Instagram sobre livros, um bookstagram, em 2018. O espaço para livros era muito mais pequeno nessa altura, em particular em Portugal, mas mesmo no geral, nem me lembro ao certo como é que me apercebi de que havia contas no Instagram dedicadas a reviews de livros, devo ter encontrado alguma por acaso e decidi criar porque. Na altura não tinha necessariamente ninguém assim no meu círculo social que lesse muito e eu queria encontrar essas pessoas com quem discutir as minhas leituras. Foi ali numa fase em que tinha saído da faculdade há pouco tempo e estava a ler mais outra vez, porque eu sempre gostei muito de ler. E começou assim, eu não tinha nenhum tipo de plano, visão mais à frente ou intenção de criar um projeto maior do que isso, era uma conta onde eu falava dos livros que eu gostava de ler. Depois foi crescendo talvez porque eu encontrei um nicho estético que mais ninguém estava a explorar no mundo dos livros, eu sempre tive muito interesse em criar um espaço que promovesse a leitura de uma forma mais descontraída e despretensiosa, porque eu sentia que os espaços de reviews criavam uma certa distância do leitor que não tornava o passatempo da leitura algo que parecesse acessível. Eu queria criar esse espaço acessível e em particular focado em mulheres e em raparigas que quisessem começar a ler mais. Depois, na altura da pandemia, criei uma newsletter no Mailchimp e quando comecei no Substack foi numa altura em que queria voltar a essa newsletter, porque entretanto tinha parado. O Mailchimp já não estava a funcionar para mim, não sei porquê, já não me estava a agradar a plataforma e descobri o Substack. Quando o Substack me apareceu, eu na altura nem percebi muito bem a dinâmica da plataforma, não percebi que era uma plataforma completamente independente e que podia valer por si só. E depois foi crescendo de maneira a que neste momento eu tenho duas comunidades separadas, a do Substack é muito mais pequena que a do Instagram, mas quase que não há um overlap de audiência, são bastante diferentes.

Como é que descreves cada uma das comunidades?
Eu diria que a comunidade do Substack é mais interessada em escrita, são pessoas que querem escrever no online ou querem tornar-se autores. E a minha audiência do Instagram são leitores, essencialmente, e talvez seja mais jovem também. Acho que, não tenho certeza, mas diria que a audiência do Substack é um bocadinho mais velha.

Para alguém que esteja a ouvir pela primeira vez falar do Substack, como é que tu descreves a plataforma?
Eu diria que o Substack é uma plataforma que me permite criar conteúdo que é mais intencional, é long-form, permite-me escrever reviews muito mais extensas do que aquelas que eu partilho no Instagram. É uma plataforma que, por ter um algoritmo que é um bocadinho mais amigo, ou seja, o algoritmo do Substack ajuda a dar destaque a conteúdo que se calhar já saiu há um ano, ao passo que o do Instagram, aquilo que tenha saído ontem já é irrelevante. Portanto, talvez por ter um algoritmo um bocadinho mais simpático nesse sentido, permite-me ser mais intencional e se calhar publicar menos e focar-me mais na qualidade do conteúdo que eu partilho lá. Acabo por ser mais intencional no Substack, é conteúdo que me exige muito mais trabalho, mas que para mim faz sentido porque eu uso o Instagram um bocadinho como uma janela, uma montra do tipo de conteúdo que eu partilho, é um conteúdo mais imediato, e depois o Substack é onde eu de facto crio o material que é mais intencional e mais cuidado.

O teu conteúdo é todo em inglês, isso foi algo pensado inicialmente?
Na altura foi um bocadinho acidental porque eu apercebi-me que os livros em inglês eram muito mais baratos que os livros em português, cá em Portugal, e então comecei a ler em inglês por causa disso. Eu estava muito pobre depois da faculdade, estava com o meu primeiro trabalho, estava a estagiar, não tinha muito dinheiro para gastar em livros e apercebi-me que há livros em inglês à venda na Fnac e na Bertrand que são, infelizmente, muito mais baratos que os livros em português. Foi aí que eu comecei a ler em inglês, até então tinha lido só em português. Então fez-me sentido na altura como eu ia fazer uma review de um livro em inglês, escrever sobre ele em inglês. Mais tarde pensei: à partida as pessoas portuguesas vão perceber o inglês e acabo por atingir uma audiência maior. Mas não foi necessariamente planeado ou super intencional e inclusive nesta fase em que estou agora estou ativamente a fazer um esforço para tentar ler mais em português e partilhar mais em português também, mas como consequência dessa primeira decisão a audiência internacional é muito maior que a portuguesa.

Tens também um book club, que acontece também fora do digital. Em que momento é que esse projeto começa a ganhar forma?
Na pandemia surgiu o book club digital no Discord. Estávamos todos fechados em casa, toda a gente tinha zero vida social naquela altura, eu já tinha o Instagram, mas a verdade é que o Instagram acaba por ser uma plataforma em que tu partilhas, mas não há necessariamente um espaço para uma conversa entre várias pessoas. Conversas nos comentários, envias mensagens, mas não há um espaço para uma conversa em grupo. E, então, na altura decidi criar o book club no Discord para que toda a gente pudesse comunicar e falar por lá e foi uma coisa que eu senti que as pessoas queriam mesmo e estavam mesmo a precisar desse espaço. Acabou por se tornar uma comunidade um bocadinho à parte, composta por pessoas que também me seguem no Instagram e mais tarde no Substack, mas que estão ali num ambiente um bocadinho mais íntimo e que se sentem mais à vontade para falarem entre elas. Depois, a primeira vez que o clube do livro se juntou em pessoa, cá em Lisboa, foi no ano passado, em janeiro de 2024, porque as pessoas me pediram. Não sabia se as pessoas queriam aderir a isso, porque grande parte do book club também está lá fora, mas as pessoas começaram a pedir-me e, portanto, começamos a reunir-nos todos os meses para discutir o livro do mês. Antes do book club em Lisboa começar, aquilo que eu já tinha organizado eram book swaps, que são os eventos que eu faço as trocas de livros.

E continuas a fazer esse evento?
Sim, continuo a fazer. Inicialmente, cada book swap acontecia num sítio diferente, porque eu queria que cada uma fosse uma experiência única, mas depois, porque é uma dor de cabeça logística organizar sempre num sítio diferente, comecei a fazê-las de dois em dois meses na Good Company, a livraria. Agora estou a fazer uma pausa para o verão, mas à partida voltarão em setembro. E agora estão mais integradas no book club, embora qualquer pessoa possa participar.

Também acabaste por lançar algum merchandising, como surgiu essa ideia?
A primeira coisa que eu lancei foi uma tote bag que fiz para mim porque eu sentia que a merch dedicada a livros tinha um ar muito específico. É sempre muito relacionada com bibliotecas, e sou uma bookworm e cozy, e eu queria uma coisa mais feminina, divertida e relacionada com os anos 2000 e com aquelas roomcoms que eu uso como referência para os meus memes. Criei, tirei uma foto e vi muito interesse das pessoas que me seguiam para a comprar, então comecei a vendê-las. Acho que isto foi em 2021, se não me engano. Portanto, veio a tote, depois a seguir veio um boné e este ano lancei um bloco que permite às pessoas fazerem uma review do livro que estão a ler. E, mais importante, criei um cartão que oferece descontos em livrarias independentes.

Fala-me um pouco sobre esse cartão.
O cartão é um projeto que eu adoro, é o projeto do meu coração, porque foi uma coisa que eu criei com a intenção de incentivar as pessoas a apoiar livrarias independentes e deixar um bocadinho para trás os gigantes de ecommerce sempre que possível. Eu sinto que há muito conteúdo anti Amazon, há muito conteúdo a criticar as pessoas para incentivar um certo comportamento, e eu queria arranjar forma de dar uma conotação positiva à coisa. Ou seja, em vez de ser ‘não compres na Amazon’ é ‘vai a esta livraria porque’. E o cartão surgiu dessa forma. O meu objetivo sempre foi criar um cartão físico que permitisse ao leitor ter acesso a uma série de descontos e benefícios exclusivos que mais ninguém teria, junto de um leque de livrarias independentes por todo o mundo. Neste momento temos muitas livrarias em Lisboa que são parceiras e temos também nos Estados Unidos, Itália, França, Países Baixos, Noruega, temos vários sítios e tem sido um projeto muito giro.

É necessário estar no book club para ter o cartão?
Qualquer pessoa pode ter o cartão. Não tem mensalidades associadas, compras uma vez, és membro do cartão e depois é só andares com ele. Também tem um leque de descontos online disponíveis.

Tens o Substack, o Instagram, o book club, os eventos ao vivo e o merchandising. Esta é a tua principal ocupação?
Não, concilio com outras coisas. Trabalho como freelancer, trabalho em marketing principalmente, essa é a minha ocupação principal em termos financeiros. Depois a Litulla é aquilo que eu, no fundo, gasto mais tempo a fazer porque é o meu passion project, é aquilo que eu gosto mais de fazer. Mas sim, concilio com o trabalho.

Consideras que neste nicho dos livros não é tão fácil viver do digital como seria, por exemplo, em áreas como a moda ou lifestyle?
Sinto que é um espaço tão recente que inclusive é um bocadinho difícil de comparar. Mas, daquilo que eu vejo, o que acontece é que se tu quiseres, por exemplo, ser influencer, que eu não olho necessariamente para a minha comunidade já como isso, as editoras, tanto cá como lá fora, não têm budget e não têm cultura de te pagar.

Enviam apenas os livros?
No melhor dos casos enviam os livros. Eu já fiz algumas colaborações pagas, mas nunca com editoras. Já fiz colaborações pagas com livrarias, com empresas de entretenimento, mas nunca fiz com editoras. Não sei se é uma questão de budget ou se é uma questão de cultura, porque eu já trabalhei enquanto social media manager com empresas de beleza, hospitalidade, restauração, e há um interesse e um esforço dedicado a colaborar e a pagar criadores de conteúdo. Portanto, não sei se é a indústria que está um bocadinho tardia a acompanhar estas tendências, se será uma questão de tempo e, eventualmente, vai chegar a um ponto em que as pessoas conseguem fazer carreira como influencers neste nicho. Neste momento, não me parece possível, a menos que as pessoas façam dinheiro, por exemplo, em adsense no YouTube ou a serem pagas no Substack, porque o Substack é uma plataforma que permite subscrições pagas, que é uma coisa que, inclusive, eu já tive ativas. Portanto, há formas, mas não necessariamente diretamente através das empresas dos livros.

Os valores no Substack podem ser suficientemente bons para se considerar rentável?
Acho que é uma minoria que consegue viver do Substack. Há pessoas que vivem do Substack, pelo que eu percebi, especialmente escritores, jornalistas já estabelecidos que poderão ter saído de uma grande publicação para criarem o Substack deles e já têm uma audiência estabelecida. Não é impossível, mas os valores são, de facto, determinados pelo criador. Tu podes ter uma mensalidade ou as pessoas podem pagar uma subscrição anual com um desconto. Já é uma grande melhoria em comparação, por exemplo, com plataformas como o Instagram, que não têm nenhum tipo de pagamento.

Como é que olhas para este sucesso que os livros foram alcançando nas redes sociais ao longo dos últimos anos?
Em parte, eu gosto de assumir que tive alguma coisa a ver com isso, eu e as pessoas que já lá estavam, porque a leitura, de facto, foi uma coisa que voltou e ganhou popularidade. E eu não sei bem de onde é que veio este boom. Quando eu entrei no Instagram, sentia que era uma comunidade muito mais fechada e íntima. Na altura, sinto que bookstagrams seguiam bookstagrams, era uma coisa muito fechada. Depois começou a abrir, em particular com o BookTok. Quando o BookTok surgiu, eu sinto que o bookstagram já estava muito maior, foi uma transição natural de plataformas, mas no início sinto que foi um grupo relativamente pequeno de contas que acabou por contribuir para esta popularidade dos livros. Não consigo, agora de imediato, criar uma relação, por exemplo, com outra indústria ou com alguma influência externa que pudesse ter ajudado. Talvez certas editoras tenham estado atentas logo a esse início e tenham feito um esforço maior para posicionar os livros de outra forma. Não sei, mas sinto que definitivamente o BookTok nasceu do bookstagram, isso sem dúvida nenhuma. E depois tornou-se o seu próprio fenómeno.

Este aumento de popularidade dos livros no digital só traz vantagens ou trouxe também desvantagens?
Enquanto criadora, não sinto que hajam desvantagens. Enquanto consumidora, vejo desvantagens. Em particular vejo uma tendência que as pessoas têm a pensar em grupo, de avaliar livros em grupo, o que não encoraja necessariamente pensamento crítico individual. Sinto que isso também é uma consequência da internet em geral e de estarmos constantemente conectados. O hábito de leitura nem sempre se traduz com uma certa habilidade que seria necessária para as pessoas pensarem por elas mesmas e tirarem as próprias conclusões. É aquilo que chamamos de mob mentality. O que eu vejo é, por exemplo, muitos livros a serem criticados ou cancelados por certos elementos que não foram bem analisados pelo público. Sinto que as pessoas saltam muito rapidamente para conclusões, mas sinto que é uma consequência mais de estarmos online do que de lermos. Acho que devemos ler mais e estar menos online.