Desde cedo com um “fascínio por diferentes áreas”, Inês Ayer escolheu seguir design. Acreditava que este lhe daria uma “perspetiva mais multidisciplinar” que lhe permitiria estar, no futuro, “presente em diferentes discussões”. E deu.
O design, diz, mais do que “uma camada visual”, é uma ferramenta de impacto social. E é essa a ideia que sobressai no trabalho desenvolvido pela jovem líder que foi incluída no ranking Forbes 30Under30 de 2024. Em 2019, fundou o Studio Ayer, através do qual coordenou já mais de 80 projetos em 12 países. Atualmente a viver em Nova Iorque, é Senior Designer na Pentagram, uma empresa norte-americana de design, e investigadora no projeto Aliquoti para a redução da mortalidade neonatal de mulheres BIPOC [Black, Indigeneus and People of Color] no país.
Em Portugal, continua a contribuir para iniciativas sociais. Uma destas é a Global Shapers Community, iniciativa do Fórum Económico Mundial que reúne jovens profissionais voluntários de vários setores. Foi em representação do hub da iniciativa em Lisboa que voou para Davos, como uma dos 50 jovens dos mais de 500 hubs espalhados pelo mundo selecionados para estarem presentes na Reunião Anual do Fórum.
Em Davos, para além de participante, foi oradora num painel sobre Identidade Urbana. À discussão trouxe a perspetiva dos jovens que, acredita, mais que uma “quota que está lá para dar um parecer”, devem ser parte da “tomada de decisão”.
Em entrevista ao Expresso, no rescaldo da experiência e ainda “a processar tudo”, Inês Ayer fala sobre a participação em Davos, o panorama internacional na Era Inteligente e o que falta ainda fazer para que Portugal e os jovens não fiquem de fora de discussões globais.
O lema do encontro do Fórum Económico Mundial este ano foi a “Colaboração para a Era Inteligente”. Que papel pode, na tua opinião, ser o da colaboração e o da inovação tecnológica no tempo que vivemos?
Acho que vivemos numa era de mudança profunda, com a inteligência artificial, os desafios da transição energética, a desigualdade,… É cada vez mais difícil encontrar soluções que sejam sustentáveis para equilibrar todos estes pesos que temos na balança, mas acho que esta ideia do poder de uma visão que consegue unir vozes com um diferente espírito colaborativo pode ser o caminho certo.
Foi muito interessante ver como é que em Davos houve uma série de discussões que criaram alguma fricção, o que também revela muito do que é o mundo que temos hoje. Por exemplo, sobre o tema das alterações temáticas, tivemos declarações negacionistas de Donald Trump que entraram em confronto com os apelos de testemunhos como o do Al Gore. É neste tipo de espaços que conseguimos, dentro destas discussões, chegar a um âmbito comum e perceber como é que lados opostos conseguem chegar a soluções que nos podem ajudar no imediato.
A inovação e a tradição podem coexistir neste futuro?
Acho que é, sem dúvida, um grande desafio. O lado tradicional e este lado mais negacionista, por vezes, estão a atrasar muito o que deveria ser a evolução natural que a tecnologia nos permite. Mas, por outro lado, acho que existe um grande esforço, por exemplo, nas várias discussões em relação à Inteligência Artificial, de pensar no contexto e em como é que estamos a analisar essas situações.
Se pensarmos no Global North, que está a lidar com a inovação tecnológica, e o compararmos com o Global South, que enfrenta o risco de ficar ainda mais marginalizado, é importante perceber quais vão ser as barreiras éticas e como é que vai ser feita a governance da Inteligência Artificial para garantir que não exista ainda mais desigualdade no contexto mundial. Acho que foi uma preocupação que ressoou muito.
O painel em que participaste foi uma discussão imersiva sobre como as tecnologias de ponta estão a transformar a identidade urbana. Esta coexistência entre inovação e tradição pode acontecer também na identidade urbana?
O nosso painel foi um debate sobre a evolução das cidades e este cruzamento entre a tecnologia e a tradição e foi muito interessante, porque fui acompanhada pelo Hans-Urlich Obrist, diretor da Serpentine Gallery, que trazia uma perspetiva muito mais utópica, ideológica e artística, em confronto com a Anacláudia Rossbach, diretora da UN-HABITAT [agência das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos], que trouxe os pontos de vista da realidade vivida nas cidades.
Acho que a minha perspetiva acabou por trazer a da juventude, como é que nós pensamos e vivemos as cidades, enquanto uma experiência. Para nós, é importante perceber como é que vamos melhorar o acesso à habitação, um dos grandes problemas em Portugal e em muitas outras cidades europeias e no mundo, e perceber como nos estamos a adaptar à realidade das mudanças climáticas e sustentabilidade, quando planeamos, construímos e mapeamos as diferentes cidades em que vivemos.
Depois, também [perceber] a questão da mobilidade internacional e das oportunidades globais, porque sinto que, na nossa geração, que é uma geração nómada digital, há muito esta ideia de ir à procura de uma nova cidade que se adapte às tecnologias emergentes. E porque as cidades são, cada vez mais, multiculturais, mas ainda há muitas barreiras à inclusão social, perceber como é que os fluxos de migrantes fazem parte do tecido social de cada cidade e como é que conseguimos construir estruturas que integrem diferentes culturas e formas de viver dentro de um mesmo espaço.
O que representa a tua participação, para além de jovem, enquanto portuguesa, em Davos?
Durante esta semana falou-se muito do binómio Europa vs. Estados Unidos e, no meu caso, que venho de Portugal e moro nos Estados Unidos, foi muito interessante perceber como é que esta mobilidade também conta a história de uma Europa que parece que cada vez está a tornar-se menos relevante e de uns Estados Unidos que estão em ascensão. Acho que o meu papel teve muito a ver com perceber como é que, enquanto portugueses, nos podemos tornar mais relevantes neste tipo de discussões mundiais.
Comparando, por exemplo, com o caso de Espanha, em que o primeiro-ministro, Pedro Sánchez, esteve presente em várias discussões, deixou-me desmotivada ver Portugal tão afastado delas. E senti que o mundo empresarial privado teve um papel de liderança muito mais ativo em comparação com os membros do governo que marcaram presença na discussão. Achei-os muito mais desligados da evolução e da comunicação daquilo que é Portugal enquanto um país de oportunidades.
Temos de estar mais presentes e com uma escuta mais ativa. Temos muito a aprender com outros países, como a Ucrânia, que, com adversidades muito maiores, se consegue adaptar e reinventar de uma forma muito mais digital, enquanto Portugal ainda está um pouco aquém da evolução que poderia ter em termos tecnológicos.
Em Davos, participaste noutras sessões, sobretudo, sobre os temas da Sustentabilidade e Saúde, também Educação, Criatividade e IA. Que momentos e aprendizagens mais te marcaram?
Algumas das discussões que me marcaram muito foram sobre a saúde da mulher. Houve uma grande preocupação em perceber qual é o papel desta área no contexto da saúde global e na redução da disparidade entre homens e mulheres. Não é apenas uma questão de equidade, mas também uma oportunidade para impulsionar a economia em mais de um trilião de dólares até 2040. Esta discussão sobre investir no setor da saúde e colocar as mulheres no centro das soluções globais deixou-me muito esperançosa.
Em relação à questão da transição energética, acho que ainda há um grande caminho a ser percorrido, mas penso que há uma abertura maior do diálogo entre a Europa e os Estados Unidos. A nova presidência [dos Estados Unidos] é aquilo que me faz acreditar um bocadinho menos, mas há uma série de especialistas, tanto de empresas como de ministérios, que me fazem acreditar que há uma possibilidade para a discussão e a evolução. Especificamente, a organização do “Climate Reality Project”, fundada pelo Al Gore, que está a fazer uma série de ações imediatas e concretas.
Uma das grandes discussões foi também a questão da exploração do espaço enquanto nova fronteira, especialmente nos Estados Unidos. Numa série de discussões à porta fechada, tivemos a possibilidade de perceber que esta é uma revolução que, apesar de ser mais silenciosa, já está em prática.
E, por fim, a questão da inteligência artificial, de pensar o que é que no Global North podemos começar a fazer para perceber como é que controlamos este monstro inteligente de forma a que seja uma ferramenta e não uma ameaça.
Dos desafios que sobressaíram em Davos quais te parecem os principais?
Sem dúvida o controlo da inteligência artificial, porque há uma série de rollout plans [planos de implementação] de diferentes empresas para, em 18 meses, tornar a inteligência artificial cada vez mais presente. Acho que a força do trabalho e o futuro do trabalho vai ser muito moldado por estas novas ferramentas. Por isso, [o desafio] é pensar como é que a força do trabalho se vai conseguir adaptar e criar postos de trabalho nos próximos anos. E também perceber como é que conseguimos continuar a mitigar as alterações climáticas e adaptar-nos a esta nova realidade.
Foste a Davos em representação do Global Shapers Lisbon Hub. Que iniciativa é esta e qual tem sido o vosso trabalho?
Somos uma organização composta por jovens profissionais voluntários de diversas áreas como direito, empreendedorismo, finanças e design focados em enfrentar desafios comunitários e regionais. Cada hub tem as suas bandeiras e lutas e o nosso foca-se muito nas áreas de educação, cultura e sustentabilidade.
Temos a possibilidade de fazer não só projetos locais, mas também projetos que se expandem a um contexto global. Para dar um exemplo, um projeto desenvolvido há cerca de três anos, que se chama “A Maria e o Segredo da Poupança” e é um livro de literacia financeira para crianças, foi adaptado por mais de 50 hubs. Foi um projeto desenvolvido pelo Pedro Rocha e Mello, o David Cruz Silva, a Isabel Abreu Lima, o Ricardo Figueiredo e o Duarte Gouveia, em parceria com a Leya e com a Fundação Santander, que faz atividades específicas nas escolas. Foi um projeto que conseguimos escalar em mais de 20 idiomas. O nosso ilustrador, o Pedro Rocha e Mello, desenvolveu um template da história que pode ser facilmente adaptável culturalmente e ao contexto de cada país.
Como referiste, o projeto reúne jovens de áreas de interesse e trabalho distintas que cooperam e se aliam a estas causas. O teu percurso profissional mostra, em particular, como através do design se pode promover a mudança social. Como é que surgiu a ideia de aliar o design ao ativismo?
Desde o início que tenho um fascínio por diferentes áreas: os direitos humanos, a parte mais científica, a engenharia... Achei que o design era uma disciplina que me conseguia dar esta comunhão de valores e esta perspetiva mais multidisciplinar que me permite estar, depois, em meios como o Fórum Económico Mundial e presente em diferentes discussões, e usar o design, que é uma ferramenta mais proactiva, para tornar uma série de soluções realidade.
Pensar o design enquanto ferramenta de impacto social é ignorar a ideia de que o design é meramente uma camada visual. É muito mais do que isso, é tudo que está por trás. Em cada projeto em que eu me envolvo, tento pensar em toda a componente estratégica. Pego num problema e tento mapear diferentes outcomes para criar uma solução diferente. O outcome pode ser um livro, uma exposição de awareness, uma marca, um website, depende muito do problema e do que podemos fazer para encontrar uma solução que ajude a mitigá-lo.
Que causas e mudanças tens tentado promover através do design?
Por exemplo, enquanto Senior Designer na Pentagram, em Nova Iorque, tenho trabalhado com a Grace Farms Foundation, que se foca em perceber como é que há um fornecimento ético de matérias-primas, e desenvolvi, mais recentemente, um projeto que se chama “With Every Fiber”, uma exposição que funciona, em simultâneo, como um showroom de diferentes materiais e um laboratório de inovação. Tivemos a possibilidade de não só fazer a curadoria, mas também contar a história destes materiais e de como é que podem ser usados de forma sustentável e de chamar a atenção para práticas laborais éticas.
Também, um dos projetos que tive em Portugal, recentemente, foi a Academia da Próxima Geração [academia apartidária que realiza programas de formação para jovens]. Fiz parte da primeira turma como participante e passei, depois, a ser designer no projeto. Ajudei a construir a identidade do projeto de uma maneira plural em termos de ideologias, culturas e contextos políticos e a perceber como é que o conseguíamos comunicar e chegar às diferentes juventudes portuguesas.
Apesar de te teres mantido envolvida com iniciativas sociais em Portugal, profissionalmente mantiveste-te fora do país. Porquê?
Eu sempre quis usar a emigração como uma forma de alargar horizontes, porque sinto que aprendo imenso estando num hub multicultural, como Nova Iorque. Foi, por um lado, uma busca de oportunidades mais dignas e de um salário acima da média do que conseguiria em Portugal, mas também uma forma de alargar horizontes, porque sinto que a minha perspetiva evolui mais estando envolvida neste tipo de comunidades, que me fazem repensar a minha realidade e perceber como é que, mais tarde, vou querer voltar a Portugal e contribuir de uma forma muito mais plural.
Em Portugal existe o reconhecimento suficiente do papel de áreas como o design na promoção de mudanças sociais?
Acho que começa a haver um shift de mindset, mas que ainda é algo que não é muito valorizado. Na cultura americana, disciplinas como o design estão muito mais valorizadas e no centro da discussão. Em Portugal, ainda há muito esta visão do design enquanto uma ferramenta meramente visual, mas é uma discussão que começa lentamente a surgir.
E do papel que os jovens podem ter nesta mudança?
Acho que, com uma série de iniciativas que têm vindo a surgir, há cada vez mais reconhecimento dos jovens enquanto catalisadores de mudança. Por exemplo, nos media, há cada vez mais jovens a comentar e a dar a sua opinião sobre os diferentes temas e realidades que nos afetam, mas ainda há caminho a percorrer. Uma coisa é convidar os jovens a dar o seu parecer, outra é incluí-los na mesa de decisão.
Eu vi isto em Davos. Nós, a comunidade de Global Shapers, éramos as pessoas que faziam perguntas de forma mais provocatória, a pôr o dedo na ferida, dávamos o nosso parecer e éramos bem recebidos, mas uma coisa era estar a fazer uma pergunta numa sessão, outra era sermos realmente convidados a participar numa série de side conversations.
Acho que tem a ver também com a própria ligação que os países têm com a juventude. Colegas meus que vinham da Suécia ou da Noruega ou de algumas zonas da Ásia, como a Mongólia ou o Butão, eram convidados pelos dirigentes dos seus países a estarem presentes numa série de discussões. Em Portugal, há muito a aprender com outros países que começam a valorizar mais a nossa geração como as pessoas que vão estar sentadas daqui a algum tempo nesses lugares de decisão. É preciso perceber como é que conseguimos estar mais presentes na tomada de decisão e não ser só uma quota que está lá para dar um parecer.