
Ângela Carvalho, 36 anos, sempre se interessou pela ciência e, sobretudo, em perceber como esta impactava a vida das pessoas. Foi logo no sétimo ano de escolaridade que percebeu o caminho que a esperava. Adorava biologia e lia tudo o que lhe desse explicações para o mundo. Recorda, por exemplo, que era leitora ávida das educativas revistas da Rua Sésamo, que contribuíam para aprofundar o seu conhecimento infantil.
Licenciada em Engenharia Biomédica e com um doutoramento na mesma área, escolheu a área da saúde precisamente porque era nesta que conseguiria ter mais impacto social, onde a ciência e a tecnologia teriam resultados mais práticos para a sociedade. E para isso, fazer apenas investigação não era suficiente para se sentir realizada. Quis dar um passo mais além e está agora a liderar uma startup de biotecnologia que resulta de um spin off de um projeto de investigação académico da Universidade do Porto e que poderá vir a revolucionar o mundo da oncologia.
O objetivo da startup é desenvolver terapias inovadoras para combater cancros mais agressivos caracterizados por resistência a tratamentos e com poucas opções terapêuticas eficazes.
A Beat Therapeutics foi fundada em 2023 com uma missão bem definida: a de ser uma drug discovery, ou seja, uma empresa de descoberta e desenvolvimento de novos fármacos. Teve, como ponto de partida a investigação de duas professoras de Faculdades de Farmácia, Lucília Saraiva, da Universidade do Porto, e Maria José Ferreira, da Universidade de Lisboa. Ambas desenvolveram um trabalho científico que mostrou viabilidade em se transformar em fármacos para tratamento de cancros agressivos, e a ideia de constituir a empresa começou a instalar-se. “A Professora Lucília chegou a uma fase em que percebeu que os resultados da sua investigação tinham potencial para um novo candidato a fármaco e começamos a trabalhar no sentido de lançar um projeto empreendedor”, explica Ângela Carvalho.
Assim, a atual CEO co-fundou a Beat Therapeutics com as duas principais investigadoras do projeto, Lucília Saraiva, Maria José Ferreira, e ainda com Hugo Prazeres e Lúcio Lara Santos. Em pouco meses a empresa começou a atrair a atenção do setor da saúde, recolheu algum investimento inicial e acumula alguns prémios e distinções. No início de 2024, a startup recebeu o Prémio Jovem Empreendedor, promovido pela ANJE, e Ângela Carvalho foi ainda distinguida como uma das mulheres WomenTechEU, uma iniciativa do Prémio Europeu para Mulheres Empreendedoras promovido pelo European Innovation Council (EIC) e pela SME Executive Agency (EISMEA).
Como dar asas ao sonho do empreendedorismo
Ângela nasceu em Vieira do Minho, vila do distrito de Braga, e estudou em Vila do Conde, numa escola do Politécnico de Porto, na qual fez a licenciatura, que completou em 2009, seguindo depois para um mestrado e um doutoramento, na mesma área, ambos concluídos na Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto. Já durante o mestrado começou a fazer investigação em laboratório e manteve-se algum tempo neste percurso, tendo até iniciado um pós-doutoramento. “Chegou uma altura em que percebi que não era feliz a fazer apenas investigação. Não só pela precariedade da vida académica, mas porque enquanto cientistas é-nos difícil, por vezes, trabalhar para desenvolver um produto e colocá-lo no mercado”, explica Ângela Carvalho. Foi nesta fase que decidiu que queria estar numa posição de transferência de tecnologia, tendo ido trabalhar, em 2022, para um programa de apoio a startups e de projetos de investigadores que estavam a fazer esta translação do laboratório para o mercado. Esta sim, era a área que a apaixonava. “Eu gostava muito de estar próxima dos empreendedores, de perceber a paixão que eles tinham por desenvolver novas tecnologias. Na altura trabalhei com startups que estavam a desenvolver soluções para crianças com cancro e para as suas famílias, portanto houve ali uma junção de pessoas empenhadas em fazer o bem”, recorda.
Durante o ano que trabalhou na transferência de tecnologia para o mercado, foi tendo contacto com inúmeras investigações, com as quais se envolvia sempre, até que lhe surgiu o trabalho da Professora Lucília Saraiva. Este era um projeto disruptor: foi desenvolvida uma nova molécula, considerada “First in class”, com base em estudos realizados a partir de compostos naturais já conhecidos, de raízes de árvores como a Fruta Sapo, originária da costa oriental africana. O estudo dos compostos da árvore permitiu isolar muitas moléculas, e foi a partir dessas moléculas que se geraram novos derivados potentes, chegando à molécula designada internamente de BBIT20.
“Em laboratório conseguimos validar que tem um target muito específico às células cancerígenas e que por isso mesmo é bastante seletivo para as células do cancro, minimizando o seu impacto nas células saudáveis”, explica Ângela Carvalho.
Esta molécula demonstrou inserir-se na categoria de inibidores de resposta a danos no ADN, podendo dar origem a medicamentos inovadores para o tratamento de cancros agressivos. “Em laboratório conseguimos validar que tem um target muito específico às células cancerígenas e que por isso mesmo é bastante seletivo para as células do cancro, minimizando o seu impacto nas células saudáveis”, explica Ângela Carvalho. E acrescenta: “Enquanto empresa a nossa intenção é desenvolver terapias personalizadas que explorem características específicas nas células cancerígenas para que possam atuar seletivamente nestas e minimizem o impacto em células saudáveis”. Esta molécula tem demonstrado elevada eficácia terapêutica em ensaios pré-clínicos. E a BBIT20 já desencadeou todo o processo de pedido de patente, necessária para o desenvolvimento futuro de fármacos.
O objetivo da startup é, pois, vir a desenvolver terapias inovadoras para combater cancros mais agressivos caracterizados por resistência a tratamentos e com poucas opções terapêuticas eficazes. O seu principal candidato a fármaco tem como prioridade o cancro do pâncreas, cancro do ovário, triplo negativo da mama – tipo de cancro mais agressivo – e também o da próstata resistente à castração.
O arranque e crescimento do negócio
Para avançar com a criação da Beat Therapeutics foi necessário montar toda uma estratégia de financiamento: “começamos a concorrer a concursos de empreendedorismo, sobretudo ligados à Universidade do Porto e começamos a falar com alguma indústria farmacêutica para perceber o potencial impacto ou o interesse por um terapêutico como este. Concorremos também a projetos de aceleração e a calls com a InnovaID da Portugal Ventures”, afirma a CEO.
A empresa recolheu um investimento inicial de 100 mil euros da Portugal Ventures e mais alguns prémios monetários, como o do EIT Health, o X2.0, um programa europeu– o da WomenTechEU, por exemplo, contribuiu com um montante de 75 mil euros. “Claro que os prémios monetários são importantes, porque os custos de desenvolvimento são elevadíssimos. Mas muito importante nestes programas são a rede de contactos, que nos permitem escalar, arranjar novos parceiros, procurar investimento”, explica a empreendedora. É fundamental que a empresa se torne atrativa para os investidores, diminuindo o risco de investimento, mesmo o capital de risco, para que possa entrar com mais confiança no projeto, explica.

Ângela Carvalho é co-fundadora da Beat Therapeutics. Foto/Ricardo Castelo
Neste momento a empresa está ainda no processo de translação da descoberta académica para o desenvolvimento de um novo fármaco, pelo que ainda “é preciso portanto perceber que tipo de ensaios precisamos realizar, se vamos fazer ainda algumas alterações à molécula para potenciar efeito ou a nível de formulação, fazer ensaios de validação pré-clínica”, diz a responsável. Existe todo um pack regulamentar que é obrigatório fazer até chegar aos primeiros ensaios clínicos com humanos. O business plan da empresa aponta para 2028 como o ano para avançar com estes ensaios clínicos em humanos, e para isso é preciso recolher mais financiamento. Para o desenvolvimento pré-clínico, as estimativas apontam que sejam necessários cerca de 6 milhões de euros, e para avançar com os ensaios clínicos serão necessários entre 12 a 20 milhões de euros, dependendo muito do sub-tipo de tumor que a Beat Therapeutics defina.
Para o desenvolvimento pré-clínico, as estimativas apontam que sejam necessários cerca de 6 milhões de euros, e para avançar com os ensaios clínicos serão necessários entre 12 a 20 milhões de euros.
Na fase do desenvolvimento pré-clínico também se vai começar a identificar quais as subpopulações de doentes que vão responder melhor a esta terapia, afirma Ângela Carvalho. “Para a fase do desenvolvimento pré-clínico vamos abrir uma ronda de financiamento, no terceiro trimestre deste ano, para recolher cerca de 5 milhões de euros de financiamento”, revela a CEO. “Estamos bastante focados em investidores ou capitais de risco na área da biotecnologia, sobretudo europeus, porque estamos numa fase de desenvolvimento onde faz mais sentido começar pela Europa. Só na fase de validação clínica, talvez, é que vamos procurar investimento também aos Estados Unidos”, revela Ângela. O investimento é também necessário para fazer crescer a equipa. Além dos cinco fundadores, a Beat Therapeutics trabalha com um grupo de estudantes de doutoramento, mas pretende expandir a equipa com mais cientistas, para que possam escalar o desenvolvimento terapêutico.
Capacidade de chegar mais rápido ao mercado
Após a validação clínica, o objetivo da empresa é fazer um acordo de licenciamento com uma grande farmacêutica que tem capacidade para chegar mais rapidamente ao mercado, pois consegue realizar os restantes ensaios clínicos. “Existem ensaios clínicos de fase 2 e fase 3, para os quais são necessários centenas de milhões de euros para fazer a validação”, explica Ângela Carvalho. O modelo de negócio não passa, pois, por fazer uma exploração direta do medicamento, pois as barreiras seriam imensas. Uma grande farmacêutica já tem os seus canais de distribuição e de venda estabelecidos, já têm contactos diretos com as agências regulamentares. “Falamos de agências globais, porque isto é uma terapia para aplicação global”, refere a CEO.
A via administração do fármaco a ser desenvolvido ainda está em aberto. Nos primeiros testes está a ser feito por via intravenosa, mas também vai ser estudada a possibilidade de uma toma oral. Ainda não é possível afirmar ainda que a molécula dará origem a um medicamento sem reações adversas, mas está no bom caminho. ”Percebemos isso pelo mecanismo da ação, que ataca mais seletivamente células que já têm características associadas às células cancerígenas, e também porque já temos alguns modelos pré-clínicos que mostram que não existem efeitos adversos. Porém, especificamente só numa validação clínica”.
Para o futuro, a empresa tem a ambição de não se focar apenas neste primeiro candidato a fármaco, pois “queremos ser uma empresa de descoberta e desenvolvimento de novas terapias que possam responder a estes temas com elevada necessidade terapêutica”, remata a especialista.
(Artigo originalmente publicado na edição da Forbes Portugal de fevereiro/março)