Ser o primeiro a alcançar algum tipo de feito no futebol é considerado especial e o abrir de portas de forma a desvendar patamares mais altos. Desta feita, o zerozero convida-o, caro leitor, a conhecer a pequena e pacata ilha de Bonaire e um dos jogadores do modesto emblema escocês do Dundee United - Jort van der Sande.

Com uma população de, sensivelmente, 25 mil habitantes, o pequeno território situado no mar das Caraíbas terá, pela primeira vez na sua história, um atleta a disputar competições europeias. Mais conhecida pelo turismo e serenidade dos dias, a ilha ao largo da costa da Venezuela tem um estatuto especial, enquanto parte integrada dos Países Baixos.

Para compreender melhor o feito alcançado na Escócia e as sensações, emoções e estilo de vida deste território neerlandês, o nosso portal contactou Jort van der Sande. Embarque connosco nesta visita guiada, até ao paraíso de Bonaire.

Da segunda divisão à Europa

A realizar a primeira época fora dos Países Baixos, Jort van der Sande ingressou no recém-promovido Dundee United, campeão da II Liga da Escócia no ano anterior. Depois de ter alcançado a elite do futebol escocês, a formação orientada por Jim Goodwin alcançou o playoff de campeão da principal divisão de futebol do país, na companhia de emblemas históricos como Aberdeen, Rangers ou Celtic.

@Instagram - Jort van der Sande

Mas o sonho não se ficou apenas com a manutenção garantida. Em boa posição para voltar a participar em competições europeias, the terrors venceram o Aberdeen na última jornada e garantiram, de forma emocionante, a qualificação para as pré-eliminatórias de acesso à Liga Conferência.

Findada a temporada desportiva para o conjunto de Dundee, Jort van der Sande viu o seu nome impresso na história do futebol de Bonaire, uma vez que se tornou no primeiro atleta da região a alcançar competições europeias. Com participação em 35 embates na turma escocesa, o avançado acumulou pouco mais de 1000 minutos ao serviço de Jim Goodwin.

Poderá ser considerada, por alguns, como abaixo das expetativas, mas tal questionamento não impede a nova página dos livros de história e, sobretudo, as emoções inerentes ao espetáculo do futebol.

qContra o Celtic ou o Rangers jogas para 50 ou 60 mil pessoas. São experiências que nunca esqueces
Jort van der Sande, jogador do Dundee United

Oriundo do ADO Den Haag, da segunda divisão dos Países Baixos, o jogador de 29 anos tem vivido grandes acontecimentos nos últimos meses. Um dos que melhor recorda é a da vitória frente ao Hibernian, pela margem mínima, onde viveu um dos momentos mais apoteóticos da sua carreira.

«Entrei perto do fim, quando estávamos a perder por 1-2 e pouco depois empatámos. No último segundo do jogo, fizemos o 3-2, houve uma invasão de campo e todos ficaram surpresos. O Hibernians é uma grande equipa na Escócia e vencemos aquele jogo quando estávamos a perder a 20 minutos do final. Penso que essa foi a melhor experiência que vivi», referiu o neerlandês.

Das Caraíbas para o mundo

Com 29 anos, o atleta de dupla nacionalidade nasceu e passou a maioria da sua vida na Europa, mais concretamente nos Países Baixos. Todavia, as vivências da sua infância, em Bonaire, marcaram de forma especial o imaginário de Jort van der Sande, que deu os primeiros passos no futebol na ilha paradisíca e que viu o talento desabrochar no continente europeu.

«Mudei-me para Bonaire quando tinha dois anos e estive na ilha durante cinco anos. Os meus pais são professores e mudaram-se para lá, para dar aulas, então a minha primeira experiência como ser humano foi aí. Os meus primeiros anos de juventude e a totalidade das minhas primeiras memórias são da ilha: aprender a nadar, escola, primeiros torneios de futebol. Recordo-me muito bem», revelou.

@Federashon Futbòl Boneriano

Num território que tem como desporto rei o futebol, a pequena ilha revela-se um verdadeiro «paraíso para mergulhadores». Reconhecida pelo turismo, e não tanto pelo aspeto futebolístico, Bonaire apresenta condições ímpares para os mais aventureiros, que podem percorrer «de carro em menos de uma hora» toda a região, que vive de forma «tranquila» o seu dia a dia.

Ainda que seja uma antiga colónia dos Países Baixos, o ponta de lança explicou que existe uma relação «muito específica», mas «boa» com o país europeu. Todavia, a região permanece demasiado «dependente» dos fundos que recebe para se desenvolver, o que impede o reconhecimento oficial da FIFA.

qTodas as ilhas e povos querem ser mais independentes, mas por enquanto não é possível e os Países Baixos estão a fazer um bom trabalho na região
Jort van der Sande, jogador do Dundee United

Com uma distância de quase oito mil quilómetros e viagens de avião que podem ultrapassar as nove horas de duração, as condições de espera e transporte não assustam os mais familiarizados com o processo.

«Muitas pessoas estão acostumadas pois têm família nos dois países. Acho que elas já estão acostumadas, mas, para mim, um voo de nove horas é muito longo. Agora faço com frequência, então fica cada vez mais fácil», esclareceu.

«Pensei: 'deixámos a ilha orgulhosa'»

Em relação ao futebol praticado na região, a espetacularidade ou o grande mediatismo não fazem parte do vocabulário de Bonaire, onde o estádio nacional tem uma lotação máxima de, sensivelmente, três mil lugares. Ainda assim, a ilha sente e vive as emoções e paixões deste desporto na «pequena aldeia», onde «todos se conhecem», tal como qualquer zona do globo vive os seus campeonatos e provas.

«Não é uma liga profissional. Jogam uma vez a cada duas semanas porque não têm muitos campos e a diferença entre as melhores equipas e as piores é enorme. Às vezes acompanho os resultados do campeonato, nas redes sociais, e vejo algo como 15-0, 12-0», explicou.

@Federashon Futbòl Boneriano

«São, atualmente, onze equipas e para uma população de 20 mil pessoas é imenso. Penso que o maior clube da ilha seja o SV Real Rincon, que é de uma pequena cidade, com dois mil habitantes, mas têm bastantes adeptos. Quando jogam têm, por vezes, mil pessoas a assistir à partida. Os outros clubes não têm praticamente adeptos, apenas algumas pessoas que vivem na vizinhança», completou.

Mesmo tendo um nível pouco desenvolvido no futebol, Bonaire assumiu o risco de criar a própria seleção nacional e contactou Jort van der Sande, que não hesitou na decisão: «Foi muito fácil de decidir. Eu nunca me imaginei a jogar pela seleção neerlandesa e tinha bastantes amigos na ilha que perguntavam 'não podes jogar por Bonaire?', e eu pensava, 'acho que posso, mas não têm uma equipa'. Nessa altura ainda não faziam parte da CONCACAF.»

qEstavam à procura de jogadores e alguém ouviu-me num podcast. Entraram em contacto comigo através do Facebook e três meses estava a fazer o meu primeiro jogo
Jort van der Sande, jogador do Dundee United

Numa formação que integra mais de 50 por cento de jogadores de equipas locais, o atleta assumiu que ser um dos poucos jogadores em contexto profissional ligou muito o seu nome à própria região: «Muitas pessoas, especialmente aqui da Escócia, não sabem nem conhecem Bonaire. Não faziam ideia do que era. Agora dizem 'Bonaire, um dos nossos jogadores é de lá'.»

A viver um contexto completamente diferente entre clube e seleção, o avançado revelou que joga em «diferentes condições»: temperaturas elevadas, estádios «praticamente sem relvado» e embates sem a presença de adeptos. Perante tal realidade, o jogador prefere olhar para o copo meio cheio, antes de revelar as rivalidades existentes entre ilhas vizinhas.

«O nosso estádio tem capacidade para duas mil pessoas e por vezes está praticamente cheio. Dez por cento de toda a população da ilha a assistir a um jogo é algo muito raro», apontou.

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«Se tivesse de dizer uma rivalidade, diria que a maior é com Curaçau. Ainda que tenha uma equipa melhor, com vários jogadores em campeonatos profissionais, Curaçau é como um irmão mais velho que queremos vencer e nós somos ainda uma criança, no mundo do futebol», comparou.

Com mais de 150 mil habitantes, Curaçau é uma das ilhas do mar das Caraíbas que se encontra mais próxima de Bonaire. Separado do vizinho pela imensidão do azul do mar, a região continua a dar os primeiros passos no futebol, mesmo sem a presença de adeptos nos jogos fora de portas, devido às grandes distâncias e viagens necessárias, porém, esse facto não impede a existência de momentos emocionantes.

«Jogámos frente a El Salvador, um grande país que já participou em Mundiais. Dava para sentir o estádio a pensar: 'vão conseguir um bom resultado'. Eles estavam a ganhar 2-0 e eu marquei no último minuto. Não foi nada demais, mas dava para sentir a positividade na ilha depois disso», recordou.

«No começo ninguém nos levava a sério e diziam 'Bonaire vai criar uma seleção, mas não são suficientemente bons, vão perder todos os jogos'. Depois daquele jogo todos ficaram mais positivos e pensei: 'deixámos a ilha orgulhosa'», concluiu.

«Era a minha estreia na seleção e tínhamos de ir a um festival»

Recentemente aprovado como membro da CONCACAF, Bonaire disputa a Nations League da confederação. Na primeira concentração que integrou, Jort van der Sande revelou ter ficado admirado com a diferença de «plano» em relação aos clubes por onde passou na carreira e confidenciou que a culinária da ilha conta com alguns elementos mais exóticos na ementa, tais como iguanas: «Sabem a frango. Existem muitas lá, então por vezes comemos.»

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«Era a minha primeira vez na seleção nacional. Estou acostumado a um ambiente profissional, onde não se pode sair na semana anterior a um jogo nem beber álcool. Li o plano de trabalhos e reparei num Festival de Reggatas. É uma festa com regatas e tínhamos de comparecer. É algo muito importante na ilha», começou por contar.

«Recordo-me que o treinador disse algo como 'o máximo são duas bebidas', sendo que no dia seguinte tínhamos jogo. Foi a minha estreia, então pensei: 'é um ambiente diferente e uma maneira diferente de se viver o futebol'», afirmou.

Com uma rotina diferente dos colegas, Jort van der Sande reconhece que é um caso específico na seleção nacional e orgulha-se de fazer parte da formação, mas sem exagerar nos sentimentos: «Sei que sou o primeiro jogador de Bonaire em muitas coisas, tais como jogar num campeonato mais competitivo ou ser o primeiro jogador profissional do país, mas tudo o que eu conquistar como jogador será basicamente a primeira vez.»

Na CONCACAF Nations League, que conta com três divisões, Jort van der Sande recordou ainda uma das «melhores memórias» no conjunto que atua no mar das Caraíbas.

@Instagram - Jort van der Sande

«Conseguimos a promoção à Liga B, mas perdemos em casa no último jogo, frente ao São Martinho por 0-4. Ficámos decepcionados e pensámos que a ilha também estava. No hotel, pensávamos que não havia motivo para celebrar, mas acabámos por ir até um bar, na cidade. Passados 30 minutos todos na cidade estavam a comemorar connosco», confidenciou.

Com receio de uma reação negativa por parte dos simpatizantes em caso de festejos, Jort van der Sande mostrou-se feliz com a união e camaradagem exibida na região, ainda que, por vezes, «possam demonstrar alguma negatividade.»

«As pessoas diziam 'o jogo acabou e perdemos, mas não importa pois fomos promovidos, podemos comemorar'. É futebol, é igual em qualquer parte do mundo. É tudo muito positivo se ganhamos e muito negativo se perdemos», rematou.

Antes de desligar a chamada, o atleta do Bonaire confessou que estará sempre disponível para ajudar e apoiar o desenvolvimento do desporto na sua casa, e acredita que, com tempo (e mais treino), outros talentos surgirão na pequena e pacata ilha do Mar Caribenho.

*por Jorge Ricardo