Quando Ange Postecoglou desembarcou em julho de 2023 no Norte de Londres, o rótulo que lhe colavam era de energia positiva e futebol corajoso. Os primeiros tempos foram de euforia. Dez meses depois, no entanto, os Spurs arrastam-se para o fim do campeonato com o registo de pontos mais baixo desde 1997/98 e a sensação de que tudo ruiu ao mesmo tempo: a tática, as pernas (não necessariamente por esta ordem), a liderança e, sobretudo e por fim, a identidade coletiva que tinha sido criada durante a era de Harry Kane.

Tirámos o maior pilar sem erguer uma nova viga-mestra

A metáfora acima – dita por um membro anónimo da equipa técnica ao jornal Telegraph – é certeira. O Tottenham vendeu Harry Kane, poucas semanas depois de Postecoglou chegar, aos alemães do Bayern a troco 95 milhões de euros e tentou distribuir o poder de fogo do avançado internacional inglês (280 golos em 435 partidas, ao longo de dez temporadas) por várias cabeças. Ange adaptou, com algum sucesso inicial, Richarlison, um extremo, ao papel de falso nove e, em janeiro, o presidente Daniel Levy reforçou o grupo de trabalho com Dominic Solanke a troco de 45 milhões de libras (53 milhões de euros). Todavia, a médio e longo prazo, a perda gerou um vazio irreparável.

Isolados ou juntos no onze, porque Kane era muito mais do que um simples goleador, não se conseguiu reproduzir «a soma de golos, o envolvimento e qualidade na construção e até a ascendência emocional» que o capitão garantia. O resultado foi um vazio a que o Times chamou de orfandade táctica: houve fases em Heung-min Son parecia ser o único a quem a bola queimava menos ou não queimava de todo nos pés.

Sem o influente Kane e a sua capacidade de reter a bola em terrenos mais hostis, mais próximo das balizas contrárias, cada falha rapidamente se tornava letal defensivamente. E os erros, inevitavelmente, começaram a acumular-se. Depois, para piorar o cenário, entre novembro e abril os Spurs somaram 31 ausências por lesão em jogadores de campo, de acordo com as contas da BBC. Com os centrais preferidos Van de Ven e Romero a falharem inúmeros jogos em sequência com problemas físicos, a linha defensiva manteve-se alta como o treinador sempre quis, mas já sem a explosão física necessária para os sprints de cobertura da profundidade que a mesma exige.

Pior do que isso, Romero, Van de Ven, Maddison, Son e Bentancur, as principais referências da equipa, nunca estiveram disponíveis em simultâneo depois de novembro. O Times acrescenta que os Spurs «gastaram 2,7 milhões de libras só em tratamentos externos», quase o dobro da média da liga.

Os golos sofridos dispararam. O site The Athletic escreveu, recorrendo aos especialistas StatsBomb, que, a partir da 10.ª jornada, os londrinos passaram a registar quase o dobro de expected goals por partida. Ou seja, perante o espaço que então já concediam, sobretudo em zonas letais da grande e pequena áreas, havia quase o dobro de probabilidade de sofrerem golos. O Tottenham passou a registar a partir dessa altura 1,98 xG contra 0,93 xG das rondas anteriores. Ora, Van de Ven já não esteve na 10.ª ronda, ainda chegou a voltar na 15.ª no dérbi com o Chelsea, porém voltou a parar até à 29.ª, a 9 de março, quando entrou para cumprir pouco mais de 20 minutos com o Bournemouth. Esteve depois intermitente o resto da temporada. Faltou um substituto à sua altura, depois de ter sido muito elogiado na primeira temporada em Londres, acabado de chegar do Wolfsburgo e da Bundesliga.

Se mantiveres a linha a 40 metros da baliza com centrais fatigados, estás a implorar para ser batido

A frase de cima é de Michael Cox, conhecido analista tático britânico e autor, que explica muitas das dificuldades sentidas pelos Spurs esta temporada, num texto assinado no The Athletic a meados de março. A matriz ofensiva, com os laterais por dentro, extremos abertos, cinco homens atrás da primeira linha de pressão rival, exige o condicionamento do adversário bem alto no terreno e cedo, assim que começa a sua construção. Se este posicionamento for ultrapassado e não houver pernas para recuperar, a estrutura parte-se a meio do campo. O mesmo The Athletic ilustrou as debilidades com a sequência de 14 remates permitidos ao futuro campeão Liverpool em apenas 21 minutos, já em abril.

Quando os resultados não ajudam, o desgaste torna-se muito mais do que físico. Tanto o Telegraph como o Independent chegaram a relatar episódios de choque de personalidades no balneário, muitas vezes geracionais, entre veteranos que reclamavam pragmatismo (Son, Hoejbjerg) e jovens formados através Hotspur Way, entusiasmados com o Angeball, mas igualmente frágeis quando as derrotas se acumularam em dezembro (Udogie, Pape Sarr). Faltava aquela voz que, nos últimos dez anos, todos seguiam sem hesitar. «Sentiu-se a falta de uma figura totémica, que era o que Kane significava para o grupo», escreveu o jornalista Jonathan Liew, no Guardian.

Daniel Levy sempre sob mira

Com a crise no relvado, as bancadas voltaram-se para a direção. O presidente Daniel Levy – no cargo desde 2001 – é acusado por fações de adeptos de ter trocado a ambição desportiva pelo lucro. «Vinte e quatro anos, dezasseis treinadores, um troféu. A única constante és tu, Daniel» leu-se em março na South Stand.

O que antes era irritação dispersa ganhou corpo depois da venda de Harry Kane e intensificou-se quando o clube aceitou, em março, um investimento minoritário do fundo norte-americano MSP Sports Capital (MSP). A operação foi apresentada com o objetivo de «reforço de competitividade», mas interpretada pelo adepto comum como reconfiguração para uma futura venda total, mais um sinal de que o futebol teria deixado de ser prioridade.

Internamente, apontam-se a Levy dois pecados estruturais. Primeiro, o teto salarial imposto: ao longo de três anos, a folha foi emagrecida em 18%, dificultando a retenção e a atração de talento de topo. Depois, a insistência num modelo de negócio que está demasiado dependente da presença regular na UEFA Champions League para equilibrar contas. Esta época, o Tottenham não terminará sequer em lugar europeu na Premier League; tem de vencer a final da UEFA Europa League, em Bilbau, para ganhar esse acesso e assim evitar um rombo superior a 60 milhões de euros em receitas.

A relação do presidente com os novos investidores também fere algumas sensibilidades. O acordo dá ao MSP um assento no conselho, com Levy com poder de veto. Para os adeptos, é a prova de que nada mudará. Já segundo os analistas, alguns citados pelo Financial Times, é antes a garantia de que o clube não perderá a identidade numa corrida cega ao capital estrangeiro. A tensão vive-se nos corredores do estádio, onde se tenta preparar a próxima época enquanto se escutam cânticos de protesto do lado de fora.

O Independent lembrou já este ano que as receitas de matchday cobrem apenas 22 % do orçamento operacional do clube e que qualquer queda de desempenho em casa tem impacto imediato no planeamento financeiro. Desde que começaram os cânticos Levy Out a 23 dezembro, o Tottenham venceu 2 dos 9 jogos no seu estádio a contar para a Premier League.

O que resta a Postecoglou

Entre problemas musculares, táticas consideradas suicidas e um vazio de liderança em campo, o Tottenham parece ter esgotado a boa vontade que acumulou junto dos adeptos com a construção do novo estádio – que desculpava resultados menos bem-conseguidos – e a final europeia de 2019 (Liga dos Campeões, Metropolitano de Madrid, 0-2 para o Liverpool). Postecoglou insiste em morrer pela própria espada, mas ao mesmo tempo admite que o modelo precisa de profundidade – o que pode ser traduzido para um verão de contratações robustas, sobretudo num nove que devolva garantias de golo, ainda que todos os setores reclamem por mais gente de qualidade.

No entanto, nem é certo que a vitória em Bilbau segure o australiano, quanto mais um eventual desaire diante do Manchester United. Há semanas em que os nomes de Marco Silva (Fulham), Oliver Glasner (do recém vencedor da Taça de Inglaterra, Crystal Palace) e Thomas Frank (Brentford), entre outros, são falados como possíveis sucessores.

Até ao verão, o clube viverá em suspenso. Uma vitória sobre o Manchester United, na quarta-feira, apagaria, de certo modo, parte da imagem negativa e compraria tempo a Levy. A derrota deixaria o presidente, o treinador e boa parte do plantel perante a mesma pergunta dos adeptos: se Harry Kane era insubstituível, porque se permitiu que saísse sem alternativa à altura?