
Às vezes parece mesmo que a justiça tem os olhos tapados. No topo do Jamor, onde estavam os adeptos do Benfica, deflagraram tochas vermelhas quando Kökçü disparou de fora de área para o golo da equipa da Luz. Quando os jogadores chegaram à bancada para os festejos, ainda respiraram parte daquele ar contaminado.
O Jamor sentenciou os rivais pela trágica situação do very-light que vitimou Rui Mendes ocorrida da última vez que se encontraram na final da Taça de Portugal. 29 anos depois regressaram ao local dos acontecimentos em busca de perdão, mas parece que na cabeça de alguns nada mudou.
Foram minutos caóticos esses em que o turco marcou e logo de seguida Bruma também o fez. As barreiras que separam a bancada da pista que anda à revolta do relvado já tinham ficado fragilizadas no primeiro festejo e, no segundo, a casa veio mesmo abaixo. Mal-empregada moradia que ficou em ruínas em vão, quando se soube que o golo do internacional português foi revertido por falta de Carreras.
O hemisfério verde do Jamor animou-se tanto que quase nem parecia que o Sporting, no meio daquele novelo de emoções, tinha mesmo ficado a perder. Já havia adeptos dos leões a sair do estádio, os votos para homem do jogo foram entregues pelos jornalistas e a polícia já ia cercando o relvado e as escadarias que dão para a tribuna presidencial. Toda a logística da final tinha entregado a Taça de Portugal ao Benfica.
Mas o inconformismo é loiro, tem ombros largos e mexe-se como uma pena. Foi-lhe dado por Stefan o nome de Viktor e este menino quis muito deixar o pai orgulhoso. Nas bancadas do Jamor, o Gyökeres mais velho fazia furor. Sabemos como são estas coisas. Uma pessoa acha que está perante um famoso e confirma-o através de quem vai tirar fotos com o sujeito. Enquanto ouvia desconhecidos a chamarem “lenda” ao filho, correspondia às solicitações. Os seguranças é que não viram nele razão para abrandar as exigências para desimpedir a escadaria.
É difícil derrubar Viktor Gyökeres mais ainda quando se é um jogador de cristal como Renato Sanches. Como é que é aquele provérbio da água que bate em pedra? Pois bem, a fragilidade do médio derrubou mesmo o megálito de avançado. Dentro de área. Nos poucos segundos que o mesquinho tempo ainda tinha para emprestar à final.
Não teríamos ido tão além na tarde se o Benfica não removesse dez minutos ao jogo. Dono do cronómetro, o árbitro compensou. Nesse pedaço, vimos o golo de Gyökeres Jr. que forçou o prolongamento onde tudo mudou.
Não é que o Benfica e o Sporting com matrícula de 2024/25 deixem grandes saudades, mas a final da Taça de Portugal foi possivelmente a última oportunidade de ver em ação o modelo verde com o extra Viktor Gyökeres e o modelo vermelho apetrechado com Álvaro Carreras e Di María.
Face a um Aursnes condicionado, Bruno Lage não tentou encontrar um substituto direto. A opção recaiu por Samuel Dahl e a ala esquerda teve, com o de Carreras, dois pés esquerdos enganchados. A despedida de Di María não foi celebrada com mais do que alguns minutos no prolongamento. Se Aktürkoğlu era uma escolha natural para o ataque, Bruma nem tanto.
Porém, bem analisadas as coisas, os dois treinadores, tal como tomaram a iniciativa de vestirem ambos trajes monocromáticos, também nas questões táticos fizeram pandã. Bruno Lage mais não fez do que encaixar no 3x4x3 do Sporting. Em termos de pressão, cumprindo Carreras com a tarefa de acompanhar todo e qualquer movimento de Trincão, teve vantagens óbvias que deram superioridade ao Benfica.
Muito se falou de grandes penalidades durante a semana pela tradição forjada nos últimos dois dérbis. Era para a possibilidade de, ultrapassado o prolongamento, o empate ainda se manter. Só que o Benfica parecia querer por essa via materializar a superioridade. Bruma até rematou contra a mão de Gonçalo Inácio, motivo pelo qual Luís Godinho marcou grande penalidade. A decisão do árbitro acabou por ser revertida devido ao fora de jogo de Kökçü. A presença encarnada na área leonina potenciou a disputa de lances dentro dela, mas o espalhafato de Samuel Dahl num choque com Morten Hjulmand não enganou ninguém.
A tarde corria tranquilamente a Samuel Soares, o corajoso que calçou as luvas nesta tarde de pujante presença solar. O jogo não estava a ser merecedor das suas intervenções. Não se pode dizer o mesmo de Rui Silva que, picado pelo mesmo bicho que o Homem-Aranha, travou Pavlidis. Também com as sirenes ligadas, Gonçalo Inácio, que passou o jogo em modo emergência, bloqueou Bruma.
Era certo que, ao intervalo, Rui Borges teria condições para comunicar friamente as soluções para desbloquear a pressão homem a homem dos encarnados. Um Benfica desmotivado pelo vácuo da produção ofensiva perdeu fulgor no final da primeira parte e Viktor, à meia volta, testou o material antiderrapante das luvas de Samuel Soares.
Não houve muitos apontamentos relevantes depois do turbulento arranque de segunda parte. A ponta final do tempo regulamentar foi de futebol preguiçoso e de constantes paragens para assistência a jogadores do Benfica. Rui Borges só lançou Geovany Quenda a 15 minutos do final, mas foi Rui Silva a ter que voltar a valer por toda a equipa e parar Belotti. No entanto, a margem mínima não foi suficiente para garantir a Taça de Portugal.
O Benfica jogou o prolongamento contra a sua vontade. Os 30 minutos que decidiram a final foram disputados pelos encarnados com as mãos atrás da cabeça em sinal de rendição. Penosos acabaram por ser os golos de Harder e Trincão, com este a ser o jogador em campo com prazo de validade mais prolongado no rótulo das suas qualidades.
Quando o jogo terminou, só restavam adeptos na bancada do Benfica, porque sair do Jamor não é a tarefa mais fácil do mundo. Mais do que ter permitido a dobradinha que fugia ao Sporting desde 2002, os encarnados deixam a final da Taça de Portugal com um sentimento de humilhação. Não adianta a Bruno Lage o taticismo quando não se faz uso dele com coração.