Este artigo podia ser sobre o Benfica. Sobre o encaixe de Di María no coletivo, sobre a revolução de Bruno Lage no onze, sobre as lacunas do plantel das águias. Podia ser sobre a inconstância de Arthur Cabral, sobre os erros na saída de bola, sobre a importância de Tomás Araújo. Ou ainda sobre o jogo menos conseguido de Álvaro Carreras, o encaixe de Manu Silva na equipa ou a segunda derrota consecutiva dos encarnados e as respetivas consequências na época. Mas do outro lado, o Casa Pia tornou-se o grande na sala.
Depois de 25 minutos em que o Benfica foi superior, chegou ao golo – numa das falhas algo habituais de Duplexe Tchamba – e dominava o jogo, impedindo o Casa Pia de subir linhas e de sair com perigo. A partir desse momento, os gansos cresceram, aproximaram-se da baliza adversária e tornaram-se na melhor equipa – e na que venceu – em jogo. Mais do que um disparo de pólvora seca isolado, a exibição do Casa Pia foi o culminar de uma temporada que, depois de um arranque difícil, está a ser jogada em crescendo.
O jogo em Alvalade, de algum modo um dos marcos da época, já está distante o suficiente para se perceber que foi uma pedra no caminho traçado por João Pereira, que já recusou os rótulos de romântico, mas que tem tornado o Casa Pia superior pela capacidade de trabalhar a bola. A equipa sabe jogar desde trás e tem, em praticamente todos os setores e posições, nomes capazes de fazer a diferença. Este é, portanto, um retrato do Casa Pia, uma sensação algo escondida da temporada, mas que merece mais holofotes.
Um dos méritos do Casa Pia, base do sucesso recente do clube, está na base de recrutamento e contratação de jogadores. A venda recente de Telasco Segovia, jogador em destaque nos torneios de formação de seleções e com alto potencial, traça um modelo que o clube pretende seguir e que tem a sustentabilidade como objetivo. O próximo nome desta lista, que está claramente talhado a patamares superiores, é Patrick Sequeira, guarda-redes dos gansos.
Sucessor de Keylor Navas na seleção costa-riquenha, Patrick Sequeira tem sido garantias de pontos ao Casa Pia. Tem caminho a evoluir, principalmente no jogo de pés, mas entre os postes é um dos melhores guarda-redes a atuar em Portugal. Não será de estranhar que, no verão, tenha clubes de outras dimensões a bater à porta, mas por agora vai garantindo pontos. Soube segurar o Casa Pia na altura mais delicada do jogo e evidenciou os reflexos e a capacidade de se agigantar nas redes.
Defensivamente, o bloco tendencialmente mais baixo, permitiu enquadrar melhor jogadores como José Fonte – nesta fase da carreira sai beneficiado – ou Duplexe Tchamba, cujo caráter algo errático sai de alguma forma atenuado. Contra o Benfica, subiu José Fonte para a linha dos médios, numa saída em 2+2 que fixava as marcações do Benfica e criava espaço para jogar. Neste aspeto, a evolução de João Goulart é assinalável.
Pela quantidade de opções – mesmo perdendo a irrevirência e talento de Telasco Segovia – o meio-campo é zona de destaque. Andrian Kraev estava suspenso, mas Rafael Brito tem margem para crescer na função de primeiro médio com capacidade de passe, mas também em condução, projetando-se com bola. Miguel Sousa, um jogador muito rotativo, com capacidade para procurar diversas alturas do campo, estar no banco é sinal de profundidade e jogou ainda Beni Mukendi.
O médio angolano parece cada vez mais pronto para se afirmar como titular indiscutível do Casa Pia e a assumir um papel de destaque no campeonato. Valoriza-se essencialmente pela capacidade de recuperação, adiantando-se no terreno e preenchendo a zona na qual a bola deveria entrar na saída de bola adversária. É enérgico, tem capacidade física para vencer duelos e permite à equipa subir as linhas. Menos notada, mas com bola, Beni Mukendi também tem argumentos no transporte e no passe para ligar setores e fazer o jogo fluir. Em jogos perante adversários com outro nível, a capacidade defensiva aliada às características na posse – simplicidade no passe, passada larga em condução – são mais evidenciadas como o primeiro golo dos gansos o demonstra.
À frente, e para lá dos titulares, há nomes como Pablo Roberto, que perde um pouco de espaço neste sistema tático, ou Henrique Pereira, emprestado pelo Benfica e capaz de fazer qualquer uma das três posições da frente. Curiosamente, e até pegando no arranque de temporada difícil do Casa Pia, o nome que é, porventura, mais importante na dinâmica dos gansos é Cassiano.
Longe de ser o melhor jogador do Casa Pia – é, até, a posição do ataque que mais facilmente poderia ver aumentar a qualidade do ponto de vista individual – o perfil do avançado brasileiro encaixa na perfeição nas exigências do modelo de jogo de João Pereira. É, de resto, um dos perfis individuais que mais sucesso tem em Portugal, aquele partilhado por Cassiano e por nomes como Oscar Estupiñán, Samuel Essende ou, em certa medida, Clayton Silva. A semelhança do perfil procurado em Max Svensson não deixa espaço a achar que tudo se trata de uma mera coincidência.
Longe de ser um reduto de técnica individual, Cassiano oferece soluções coletivas ao Casa Pia a três níveis: o ataque à profundidade, procurando esticar a defesa adversária quer para receber no espaço, quer para criá-lo para a entrada de outro jogador; os duelos físicos, no corpo, permitindo um jogo mais direto na procura de ganhar as segundas bolas; e o trabalho feito quer defensivamente, na pressão, quer ofensivamente, na procura de zonas de finalização. E, pela capacidade de fixar centrais e criar espaço entrelinhas, também se percebe o destaque de Nuno Moreira e Jérémy Livolant, bem como dos alas casapianos.
É impossível analisar qualquer um dos jogadores dos corredores do Casa Pia sem ter em conta a forma como as suas características são potenciadas pela relação trabalhada. À direita, os perfis opostos de Gaizka Larrazabal e Jérémy Livolant explicam-se facilmente. O ala espanhol é um jogador excecional do ponto de vista físico e atlético, com capacidade de condução a alta velocidade e potência para vencer duelos no corpo e fazer todo o corredor. É complementado pela fineza técnica e delicadeza com que Livolant, mais baixo e franzino, trata a bola, seduzindo-a no drible e encontrando espaço onde ele parece não existir para a fazer passar.
À esquerda, a relação entre Nuno Moreira e Leonardo Lelo é mais dançável, como se de um par de tango se tratasse. Quando um vai fora o outro está dentro ou vice-versa e ambos falam a mesma língua, facilitando as combinações e as permutas. A forma como, diante do Benfica, Nuno Moreira percecionou o espaço criado nas costas dos médios das águias, atraídos pelo posicionamento baixo da saída de bola do Casa Pia, e foi aparecendo no espaço vazio para gerar vantagens, foi essencial para o crescimento dos gansos na partida. O avançado de 25 anos – e vencedor do Prémio Revelação Bola na Rede de dezembro – está a afirmar-se e a dar o salto preconizado. Um rosto do que está a ser a temporada do Casa Pia, que viveu o apogeu de um caminho feito de baixo para cima.
BnR na Conferência de Imprensa
Bola na Rede: Qual o objetivo tático da saída em 2+2, com o José Fonte a juntar-se a um dos médios e quão importante foi este posicionamento mais baixo para criar espaço nas costas dos médios, espaço aproveitado por Nuno Moreira?
João Pereira: Como disse e muito bem, esse 2+2 por vezes com os nossos alas mais baixos – alas para nós porque é uma linha de cinco, se fosse de quatro eram laterais – conseguimos atrair os médios do Benfica para entrar entrelinhas com linhas verticais e o Cassiano a fixar um dos centrais. A partir daí o Nuno Moreira conseguia receber mais à frente. O Patrick [Sequeira] tentou, aqui ou ali não conseguiu, mas é um jogador que tem vindo a crescer também. Só a título de reparo, o Patrick estando connosco mais tempo, permite-nos trabalhar mais tempo com ele, não indo à seleção. Como é lógico, queremos que vá à seleção, que seja potenciado perante as idas à seleção, mas quem está por dentro percebe que se o tivermos connosco mais tempo, podemos trabalhar sobre os erros dele e, felizmente, isso está a acontecer. Está a ajudar a equipa a crescer também. O próprio João Goulart veio da Segunda Liga e está a crescer também, podia ter um handicap na construção, o Duplexe [Tchamba] também, tem alguma intermitência, mas sabe que a tem e quer muito aprender e melhorar. Parabéns pelo reparo que fez, era essa a ideia também, com alguma variabilidade também para o Nuno receber tanto do lado da bola como do lado contrário.
Bruno Lage: Infelizmente não nos foi possível fazer qualquer questão ao treinador do Benfica