A arrogância não tem de ser apenas fanfarronice. Às vezes está nos discursos meio alienados, de falsa modéstia. Os barrocos encómios de Roberto Martínez à seleção da Dinamarca, uma equipa que em 11 jogos antes deste com Portugal só tinha vencido dois, a excentricidade de dizer que aquele país nórdico é o segundo que melhor forma jogadores na Europa (o primeiro é Portugal, claro, batamos com o punho no peito), parece tudo soar a anedota delirante, mais do que a ser bom rapaz e simpático.

O que até se perdoaria se, em campo, Portugal provasse que as palavras do treinador eram tudo uma grande conversa, mind games, como se dizia há uns anos, aquele afagar de pêlo ao rival antes de o matar suavemente, com a lógica da diferença de qualidade a imperar.

Só que não. E não vamos estar aqui com paninhos quentes a cheirar a alecrim: o jogo na Dinamarca, uma das mais paupérrimas exibições da seleção nacional nos últimos anos, não é filho único, um acaso qualquer. Não foi assim tão diferente das exibições contra a Geórgia ou contra a Eslovénia no Euro 2024, da incapacidade que se viu nos recentes jogos com a Escócia. E não colocar este conjunto de jogadores, o mais talentoso que já terá calcorreado terras nacionais, a não ser absolutamente superior a Geórgia, Eslovénia, Dinamarca ou Escócia tem em si, à sua maneira, também uma qualquer arrogância.

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Porque se confia no indivíduo. Confia-se que basta atirar para dentro do campo onze jogadores (e depois mais uns quantos) e que eles, na sua infinita sapiência e talento, vão resolver o problema. Se já funcionou noutros jogos, com potências como o Luxemburgo, Eslováquia e Bósnia, porque é que não vai funcionar agora? Acredita-se, ou não se procura acreditar em mais nada, que um jogador de 40 anos a jogar num campeonato inferior deve estar 90 minutos em campo, mesmo que a equipa sofra coletivamente. Se Luís Enrique transformou Vitinha e João Neves numa das melhores duplas de médios da Europa, aqui também não deve falhar, mesmo que a ideia até seja despejar cruzamentos para a área.

Tudo falhou no Parken, como já tem vindo a falhar. E já não é surpreendente. Mais: Portugal até pode suspirar de alívio porque safou-se de uma goleada impactante, de um resultado que só não foi mais humilhante à conta de Diogo Costa, de mais um penálti defendido e de uma franca falta de acerto da Dinamarca na hora de aproveitar só um par das carradas de oportunidades que foi criando, sem qualquer oposição de Portugal, que foi deixando o adversário pressionar e avançar galopante para a sua área com métodos simples e intenções claras. O desespero de Bernardo Silva já nos últimos minutos, quando percebeu que o penálti que pedinchava não seria concedido pelo atento árbitro da partida, diz muito sobre aquilo que Portugal foi mostrando na 1.ª mão destes quartos de final da Liga das Nações: talvez, com um niquinho de sorte, a bola ainda entre, num ressalto, numa bola parada, num qualquer momento de sorte. Porque em bola corrida cedo ficou claro que não ia acontecer. Portugal quis muito menos do que a Dinamarca, parece querer sempre menos que o adversário.

O penálti defendido por Diogo Costa, limpando o erro de Renato Veiga quando ele próprio quis ser Diogo Costa, pareceu uma oportunidade para Portugal abrir o olho depois de uma entrada assustada, sem capacidade de lidar com a pressão dinamarquesa. Mas o perigoso remate de Pedro Neto, ainda dentro dos primeiros dez minutos, ficaria até ao fim como o único momento de verdadeiro perigo da seleção nacional no Parken. A 2.ª parte exacerbaria ainda mais a falta de soluções, de dentes arreganhados, a falência coletiva de um conjunto de jogadores que nunca pareceu saber o significado de equipa, perdidos em campo em trocas de bola estéreis e cavalgadas inconsequentes.

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Incapaz de ligar o jogo, sem fluxo pelo corredor central, com as referências rapidamente desmanchadas, Portugal só se via nas arrancadas de Rafael Leão ou quando Vitinha tentava encontrar uma qualquer linha impossível, rapidamente desaproveitada por um colega. Na frente, Ronaldo foi uma ilha, incapaz de jogar de costas, de oferecer opções ao ataque. E na frustração, fez o que tantas vezes faz e que, pelos vistos, lhe é permitido fazer: baixar à procura da bola para depois dar o proverbial passe para o lado.

Os milagres da inviolabilidade da baliza de Diogo Costa iam-se sucedendo: a Dinamarca rematava muito, nem sempre bem, é certo, outras vezes a bola ia encontrando uma perna de um jogador português quando já parecia ir em direção ao golo. Com a entrada de Hojlund, já na segunda parte, deixou de bastar meter uma velinha e rezar. Já dentro dos últimos 15 minutos de jogo, o avançado do Manchester United começou por ganhar em força a Gonçalo Inácio antes de rematar muito ao lado, mas no minuto seguinte deu-se a obra maestra de uma equipa que muito a procurou. E mereceu. Numa jogada toda ao primeiro toque após mais uma de tantas recuperações altas da Dinamarca, Eriksen lateralizou para Skov Olsen, que viu Hojlund na área. O jogador treinado por Ruben Amorim fechou a combinação com um toque para junto do poste de Diogo Costa, que desta vez, e depois de tantas defesas, ficou de mãos atadas. Os jogadores portugueses limitaram-se a seguir a jogada, presos ao chão.

Talvez também seja arrogância não procurar outras soluções, outros caminhos. Como de costume, do banco saltaram Nelson Semedo e Rúben Neves. Não estivéssemos nós no espaço único europeu e Geovanny Quenda tinha mais um inconsequente carimbo no passaporte, neste seu interrail de zero minutos pela seleção. Trincão, a subir de forma novamente no Sporting, também ficou pelo banco. E Gonçalo Ramos nem sequer da bancada saiu.

Chegar à final four da Liga das Nações parece, neste momento, um objetivo segundo para o jogo da 2.ª mão. O primeiro tem de ser lavar a face, limpar a ignomínia de uma exibição vexante para uma equipa que devia estar a bater-se pelos canecos das grandes competições e não a humilhar-se perante uma seleção que não ganhava a Portugal desde 2011. Entre a imensa modéstia e a arrogância da inação tem de haver um caminho. E Portugal tem de o encontrar rapidamente.