
O improvável acontece, mas ir repetindo o improvável vai sendo cada vez mais improvável. A campanha do Manchester United na FA Cup era uma sucessão de pequenos milagres, de triunfos in extremis. Eliminar o Arsenal em Londres estando uma hora com 10, bater o Leicester com um golo aos 93' (com ajuda da inexistência do VAR, verdade seja dita).
Acabaram os milagres, voltou o pesadelo. A crise não é um momento, a crise é a vida desta equipa. O mais cruel parecem ser as inúmeras maneiras de cair, a variabilidade de sofrimentos possíveis. Pode-se cair de forma inapelável, sendo batido por equipas claramente melhores, como o Brighton; pode-se ser batido em partidas renhidas entre grandes em problemas, como diante do Tottenham.
Contra o Fulham, houve nova experiência traumática. A eliminação num fim de tarde longo, eterno, de 90 minutos mais prolongamento mais penálti mais pausas e longos tempos de compensação, como alguém que está num quarto cuja temperatura vai aquecendo até se tornar insuportável. A queda foi como os milagres anteriores, in extremis. É assim a vida quando se é incapaz de vencer com conforto.
Após um 1-1, o Fulham, o belo projeto de Marco Silva, ganhou nos penáltis por 4-3. Se para um treinador português o presente é um pesadelo, para outro é uma época de grande êxito. O Fulham está nos quartos de final da FA Cup, tentando repetir a única final do clube, em 1975, e leva 42 pontos em 27 jornadas na Premier League. Em toda a sua história na primeira divisão, o Fulham nunca fez mais do que 53 pontos. Há 11 jornadas para realizar a melhor pontuação de sempre do Fulham na elite.
A história e prestígio da competição de clubes mais antiga do mundo, com a primeira edição a ter-se disputado em 1871/72, visitou Old Trafford, onde mora a equipa que ergueu o troféu na época passada. Com 13 vitórias na FA Cup, o Manchester United é, por hábito histórico de ganhar, o oposto do Fulham, um emblema com tradição, mas sem títulos: nunca os londrinos ganharam uma das maiores provas do football, seja o campeonato principal, a Taça ou a Taça da Liga.
Mas uma coisa é o passado, esse fantasma pesado que levita em Manchester, essa carga que parece prender as pernas e toldar o discernimento, e outra é o duro e cruel presente. Old Trafford é, atualmente, um cenário amaldiçoado, desconfortável para o United, como um velho palácio de uma família decadente, cheia de dívidas e conflitos, só com o respeito de um nome que é cada vez menos respeitado.
Dentro desse clã em queda livre, o descontentamento direcionado para quem manda é a norma. A juntar ao ruído que os despedimentos de staff provocaram, há ainda os protestos de adeptos devido à subida do preço dos bilhetes, outra manobra da gestão do clube para endireitar umas contas que, tal como o futebol que se vê no campo, apresentam toques sombrios e preocupantes.
Os red devils até começaram com energia, pelo menos em comparação com alguns arranques do passado recente. Bruno Fernandes rapidamente se assumiu como uma espécie de homem que prega no deserto, um salvador solitário, tentando passar uma mensagem contra o mundo, uma luz de talento numa equipa, num clube, num estádio, num universo de mediocridade. Aos 11’, o português atirou para defesa de Leno, antes de, aos 14’, Højlund rematar sem direção após um cruzamento de Eriksen.
O ponta de lança dinamarquês voltou a ser um atacante ausente. A finalização aos 14’ foi o seu único toque na área, numa exibição indiferente: foi substituído depois de tocar apenas nove vezes na bola em todo o desafio, somando só dois passes com êxito. Não marca há 18 partidas consecutivas.
Pouco a pouco, o bem trabalhado Fulham de Marco Silva foi-se impondo na eliminatória. Os visitantes tinham mais a bola, dominavam a iniciativa, tinham longas posses de bola que tornavam o ar de Old Trafford numa massa gélida, entre o descontente e o conformado. Depois de um primeiro aviso de Lukic, o 1-0 chegou em cima do descanso, após um canto, um pecado recorrente do Manchester United. Muniz desviou ao primeiro poste, Bassey finalizou ao segundo.
A resposta dos locais esteve longe de ser uma reação feroz, uma corrida atrás do prejuízo. Havia poucos desequilíbrios, uma circulação estéril, o deserto. Até que a bola chegava ao tal profeta no nada, o salvador. Aos 71’, um cruzamento de Dalot encontrou Bruno Fernandes à entrada da área. O capitão, de pé esquerdo, fez uma finalização que ultrapassou uma floresta de pernas, uma floresta de problemas coletivos do United, um toque de brilhantismo pessoal. 1-1.
A partir da igualdade, a equipa de Amorim ganhou algum repentismo e velocidade a atacar os espaços, aproveitando um certo desbloquear tático do jogo, uma abertura de panorama que abriu caminhos para ambas as balizas. O Fulham foi tendo mais bola e poderia ter evitado o prolongamento aos 95’, mas Smith Rowe viu Onana negar-lhe o golo com uma boa defesa. Do outro lado, o jovem de 17 anos Chido Obi-Martin, um atacante esguio com nome de Jedi, poderia ter sido o herói aos 97’, mas atirou ao lado. Mesmo antes do prolongamento, Leno evitou o festejo de Garnacho.
O tempo extra acentuou esta tendência. Nos primeiros 10’, o Fulham chegou a ter perto de 70% de posse, numa tentativa de controlar as operações, mas os mancunianos começaram a criar mais perigo. Chido Obi-Martin, na sua velocidade e imprevisibilidade, incomodava os visitantes, mas Leno evitava o golo, tal como Onana, na baliza oposta, negou uma tentativa de Sessegnon.
Na decisão por castigos máximos chegou nova forma de tortura para o United. Depois de seis execuções impecáveis, Lindelof e Zirkzee falharam os dois últimos penáltis dos red devils. Zirkzee fora o autor do último castigo máximo na vitória em Londres contra o Arsenal, mas a moeda caiu, agora, do outro lado. Para o Manchester United, resta a Liga Europa para tentar salvar a temporada.