Para certos desportistas, o caminho parece ter um toque de inevitabilidade associado, como um destino a que não se pode escapar. Esqueçam isso com Hannah Hampton. Na verdade, está aqui em causa o paradigma inverso: era suposto que a inglesa tivesse uma vida totalmente oposta à que leva.

Aos 12 anos, os médicos foram claros com ela. A pequena Hannah não seria cirurgiã cerebral, pilota de aviões, nem jogadora de futebol. A razão estava nos olhos.

Hampton nascera com estrabismo. Fez, muito nova, três operações para tentar corrigir o problema, mas nenhuma delas teve especial êxito. Ainda assim, foi aprendendo a conviver com a situação.

Mais alarmente foi o diagnóstico que lhe fizeram já na pré-adolescência. Vinda ao mundo em Birmingham, Hannah foi viver com os pais para Espanha entre os 5 e os 11 anos. Voltou a Inglaterra e, uma volta ao sol passada, exames revelaram que, além do estrabismo, tinha um problema de perceção de profundidade. Não conseguia avaliar distâncias, a visão pregava-lhe partidas quando se tratava de perceber exatamente onde estava o quê.

Sendo guarda-redes na formação do Stoke City, a experiência foi particularmente dolorosa. Erros de cálculo sobre trajetórias levavam a bola a bater-lhe violentamente na face. As mãos iam para um lado, os remates para outro. Na escola, praticando outras modalidades, o trauma mantinha-se. "Ao jogar basquetebol, por exemplo, parti todos os dedos possíveis", contou à Sky Sports.

James Gill - Danehouse

Citando Mario Balotelli, mas não com o significado do provocador italiano, a criança Hampton pensava "Why always me?". Porquê sempre ela. "Não consigo, sequer, agarrar uma bola. Porquê"?, lamentava-se quem tinha o sonho de jogar por Inglaterra.

Mais de uma década depois, a pequena Hannah tornou-se adulta. E já consegue defender remates. É, aliás, a última barreira do seu país, a dona da baliza inglesa no Euro 2025. Bateu as previsões, chegou ao topo da pirâmide, tornou-se número 1 da equipa que defende o título na Suíça.

Numa conversa com Ben Foster, outro guardião que foi internacional inglês, Hampton explica que é incapaz de "medir distâncias". "Como é que isso funciona para uma guarda-redes", responde Foster. "Sinceramente, não sei. “Nem entendo como sou guarda-redes. Mas funciona."

A infância no Villarreal, a adaptação cerebral

Nos seis anos em que viveu em Espanha, a inglesa representou o Villarreal. Era avançada e isso tê-la-á ajudado a aprimorar o bom jogo de pés que agora apresenta. Ao voltar a casa, uma inesperada lesão de uma companheira empurrou-a para a baliza, iniciando uma muito improvável relação.

Quando serve um copo de água, Hannah tem dificuldades para não o entornar. Tem de segurá-lo, caso contrário transborda, confessa à "BBC". Mas qual a explicação científica para que a visão da futebolista a tenha permitido ser, para já, 19 vezes internacional inglesa, disputar 52 encontros pelo Chelsea, o seu clube, e ser bicampeã inglesa? A resposta parece estar na adaptação.

Ao "The Athletic", o doutor Daniel Laby, especialista em medicina ocular, diz que, quando o estrabismo sucede em idades muito precoces, o cérebro é capaz de "desligar" parte da visão que vem do olho afetado. "O termo médico é supressão. A visão vem para o cérebro vinda do olho, mas o cérebro diz: 'Isto não está alinhado, vou ignorá-lo'".

Quanto à dificuldade em medir a profundidade, Hampton indicou, em várias entrevistas, que foi desenvolvendo truques para medir trajetórias, para perceber de onde vem a bola, usando referências como o corpo das companheiras e adversárias. "É um trabalho de ajuste constante", resume à "Sky Sports".

James Gill - Danehouse

Ao longo dos últimos anos, Hampton viveu quase sempre à sombra de Mary Earps. A histórica guardiã, titular no triunfo inglês no Euro 2022 e na caminhada rumo à final do Mundial 2023, surpreendeu ao anunciar a retirada da seleção em maio. A sua suplente nos últimos torneios aproveitou, então, para, aos 24 anos, passar o estatuto que já tinha no clube para as lionesses.

Nas duas últimas épocas, Hannah defendeu com bastante êxito a baliza do Chelsea, ajudando as londrinas a vencer a liga em ambas as campanhas. Neste Europeu, atuou em todos os encontros da fase de grupos, preparando-se agora para os quartos de final diante da Suécia (quinta-feira, 20h, Sport TV1).

"Acho que provei que os médicos estavam errados", defende a campeã da Europa e vice-campeã mundial. Quando lhe disseram que não seria jogadora, os pais fugiram à tentação de a proibirem de jogar futebol. Muito tempo depois, também Hampton esquiva a opção de manter a sua especificidade anónima.

Em 2021, quando revelou as particularidades da sua visão, um antigo treinador disse-lhe que não o deveria ter feito. Estava a consolidar-se na primeira divisão, a ganhar espaço na seleção. Mas Hannah apresentou uma ideia oposta: "Não era suposto que eu tivesse certas profissões. Mas o futebol era a minha paixão, o meu sonho. Quero dizer às mais novas que, se não podem seguir os seus sonhos, então vão viver para quê?".