Há pessoas que se confundem com batráquios e Gretchen Walsh cedo emanou ares de fenómeno. Aos 13 anos, precoce como tudo, foi a atleta mais nova de sempre a competir numa edição dos trials olímpicos dos EUA, de onde sairiam os nadadores para os Jogos do Rio de Janeiro e, em 2019, nadou até aos Mundiais juniores para de lá regressar com seis medalhas de ouro, justificando mais uma volta no carrossel aquático nunca vulgar, mas algo costumeiro no seu país, pródigo em germinar talentos que parecem nascer com guelras. As águas com cloro tinham de se preparar, vinha aí mais um prodígio.

Nada parecia destoar nas suas proezas adolescentes. Dona de um corpo com invulgar flexibilidade para tanto comprimento, Gretchen dominava as provas em piscinas de 50 metros. Era absurdamente rápida, tinha envergadura na braçada, o seu corpo ideal para a natação. Porém, uma das suas qualidades prematuras acabaria por lhe moldar uma dependência: quando submersa, ao mascarar-se de golfinho, Walsh ondulava o corpo cujas articulações têm mobilidade anormal e mostrava-se ainda mais invulgar pela velocidade que era capaz de ganhar.

Esse quase dom cedo conspirou para virar um problema.

Quando chegou ao liceu e depois à universidade, a sua natureza anfíbia começou a incliná-la para a piscina curta, de 25 metros, onde as proezas subaquáticas são mais apropriadas - ao mergulharem ou após baterem numa parede, os nadadores podem percorrer 15 metros debaixo de água, o equivalente a 60% da distância. Empolada nas suas qualidades, Gretchen Walsh especializou-se na submersão, tanto que do fundo das piscinas começou a regressar com dúvidas que eram acentuadas ao medir-se contra outras nadadoras nos 50 metros.

“O que se passa de errado comigo?”, admitiu questionar, à “Yahoo Sports”, ao recordar os bichos mentais que a atormentavam quando não se qualificou para os Jogos de Tóquio, acabando os trials norte-americanos no 5.º lugar dos 50 metros e no 28.º dos 100, nem sequer indo à final. No ano seguinte, tão pouco se apurou para os Mundiais, por uma centésima de segundo. A promessa que tanto augurava cedo motivou a que de fora lhe chamassem ‘nadadora de banheira’, inclusive ouvia gritarem essa depreciativa alcunha das bancadas.

Nas palavras de Christen Schefchunas, a coach motivacional com quem começou a trabalhar nesse período, “ela comprou essa ideia” de apenas saber nadar em piscinas curtas e não olímpicas: “Assim que teve um par de más provas nos 50 metros, esse medo cresceu. Passou a nadar sempre com medo.”

Dean Mouhtaropoulos

A descrição soa hoje a fantasmagórica por algum dia ter servido à Gretchen Walsh que este domingo, do interior de uma arena em Budapeste, confessou estar “incrédula” e desconhecedora se “alguma vez alguém ganhou tantos recordes” e depois “bateu os seus próprios recordes” na natação. Porque, quatro meses após provar que é possível sermos o nosso próprio caça-fantasmas e sair dos Jogos Olímpicos, em Paris, com um par de medalhas de ouro e duas de prata, a norte-americana fixou nove marcas planetários individuais nos Mundiais de piscina curta. Como se nada fosse, acrescentou ser “muito cool” tê-lo feito.

Aos 21 anos, a anfíbia nata levou as suas águas a píncaros nunca visitados pela natação norte-americana, crónica dominadora da modalidade. O escultural Mark Spitz posou, em 1972, com as suas sete medalhas de ouro penduradas ao pescoço vindas de um igual número de recordes do mundo deixados nos Jogos Olímpicos para ainda mais icónica ser a fotografia em que apareceu de braços nas ancas, cueca decorada com as stars and stripes dos EUA e lá no alto o seu bigode; o fenomenal Michael Phelps, com quem o mundo delirava pelos milhares de calorias que ingeria na dieta que lhe sustinha as braçadas, tinha fixado em cinco o anterior máximo para marcas individuais mundiais batidas numa só prova, nos Mundiais de 2005.

A outrora duvidosa Walsh, insegura nas suas aptidões por em certos momentos ter os ouvidos maiores do que as braçadas para escutar o que se dizia sobre ela, logrou nove em Budapeste, além do par de recordes nas duas corridas de estafetas em que participou. Fica mais fácil de acompanhar se listarmos o que a norte-americana acumulou a nadar:

50 metros livres: 🥇 (dois recordes);
100 metros livres: 🥇 (com o segundo e o terceiro tempos mais rápidos da história);
50 metros mariposa: 🥇 (dois recordes);
100 metros mariposa: 🥇 (três recordes);
100 metros estilos: 🥇 (dois recordes);
4x100 metros livres: 🥇 (um recorde);
4x100 metros estilos: 🥇 (um recorde).

O medo de ‘morrer’

A vida recente de Gretchen poderia confundir-se com um jogo de sombras. Chegada à faculdade, não demorou a ter estrondoso sucesso nas provas curtas da NCAA, o circuito universitário, colecionando recordes e vitórias, mas as não qualificações para Tóquio e os Mundiais do ano seguinte, a nadar em piscinas longas, entreabriram os portões à dúvida. “Ela não usava a sua velocidade porque tinha muito receio de se cansar”, explicou Christen Schefchunas, a sua mental coach, também à “Yahoo Sports”.

Tinha “medo de ‘morrer’ no final das provas” e virou uma sombra dela própria.

Na piscina de 50 metros onde as proezas submersas só equivalem a 30% da distância, quem trabalha com Walsh quis esculpir-lhe os recantos da mente mais do que as arestas técnicas da sua natação. Constantemente preocupada com as suas dúvidas, a remoer a ideia de apenas ser capaz de ganhar em piscina curta, Schefchunas quis ensiná-la a “estar confortável no desconforto”, aceitar a dor vindoura que o cansaço lhe traria nas provas mais longas. O treinador, Todd DeSorbo, fê-la concentrar nas primeiras seis braçadas - ou nos 25 metros iniciais -, mas com incremento no treino de força para cada braçada lhe dar mais distância. Em vez de mergulhar já arreliada com a parte final das tiradas, o foco passou a estar no arranque.

Se Gretchen era uma overthinker por natureza, quiseram apontar esse foco para a estratégia, direcionado a “algo que facilmente conseguia compreender”, disse a própria. “Tinha de se livrar do macaco que tinha às costas”, resumiu o seu treinador.

A reação de Gretchen Walsh quando bateu o recorde mundial dos 100 metros mariposa nos trials olímpicos dos EUA, antes dos Jogos de Paris.
A reação de Gretchen Walsh quando bateu o recorde mundial dos 100 metros mariposa nos trials olímpicos dos EUA, antes dos Jogos de Paris. Sarah Stier

E o ano passado virou uma sombra da sua versão sombreada. Esteve nos Mundiais de Fukuoka, no Japão, onde ganhou um bronze individual nos 50 metros mariposa a juntar à prata e ao ouro em provas de estafetas. Na qualificação rumo a Paris, com os julgadores olhos norte-americanos prontos a darem ordem às bocas para recordarem a alcunha maldita, Walsh garantiu a presença nos Jogos, mas cheia de estilo - bateu o recorde do mundo dos 100 metros mariposa.

Antes de Paris, já encarava os fantasmas sem rodeios: “Todos dizem que sou uma nadadora de banheira, mas acho que finalmente provei a mim própria que posso ter sucesso nas duas piscinas.” Torneada a tormenta, a filha de uma nadadora e irmã de Alexandra, um ano e meio mais velha e outra nadadora, que em Tóquio venceu uma medalha de prata, regressaria de Paris com quatro penduricalhos ao pescoço, as suas guelras já não alérgicas à piscina que lhe espantava a confiança. “Demorou algum tempo até aceitar que poderia ser capaz de fazer coisas destas”, disse à “The Athletic”, ainda antes dos Jogos.

O tsunami de feitos em Budapeste terá sido a aceitação suprema da alcunha com que a quiseram menorizar - ou a adaptação do seu significado.

Não haverá como negar que Gretchen Walsh é uma nadadora de banheira, responsável por 11 dos 30 recordes batidos nestes Mundiais (nunca se tinham quebrado tantos). Mas em boa conotação, no sentido de quem é de ouro olímpico na piscina longa e agora dourada como nunca nas curtas, que por hábito não são muito visitadas por quem reina nas de 50 metros. Nos 50 e 100 metros livres, por exemplo, não estiveram as campeãs olímpicas e o maior peixe alguma vez visto no lago, Michael Phelps, apenas competiu numa edição destes Campeonatos do Mundo. Katie Ledecky, dona de 36 medalhas entre Jogos e Mundiais, jamais o fez.

Caso decida experimentar, entrará nas piscinas de quem já vive nelas tão harmoniosamente quanto nas outras. Antes de cada prova, hoje a cabeça de Gretchen Walsh foge dos medos antigos, concentra-se em “apenas executar - nem mais, nem menos do que isso”, como a própria pregou. A sua cabeça agora também perdeu outra preocupação: por cada recorde batido, a organização do evento retribuía os atletas com 25 mil dólares. Feitas as contas, a nadadora da banheira saiu 225 mil dólares mais rica de Budapeste.