
Abraçados em rodinha e com os esqueletos encostados, os jogadores do FC Porto apertaram-se uns nos outros a segundos do apito parir o encontro. Quase todos com a cabeça a meia-haste, o pescoço inclinado à frente, olhar fixado na relva mas com margem para fitarem de soslaio quem falava, apenas um mirava de frente o capitão. Literalmente debaixo de ombros, na linha das axilas dos confrades, a atenção esbugalhada de Rodrigo Mora não largou Iván Marcano enquanto o espanhol dizia os seus quinhões motivadores. Pela cara do adolescente, meia espantada, meia atónita e um tempero de pasmo a abrir-lhe os olhos, parecia ouvir que havia vida em Marte e os extraterrestres iam visitar o Dragão dali por pouco tempo.
Nada se pode concluir de uma face e suas feições momentâneas, muito menos as de um catraio, mesmo um genial como ele. O jogo não tardaria a começar. Quem, de facto, prestava visita era o Moreirense, o 10.º classificado do campeonato. Meia-hora depois, Rodrigo Mora estava a fazer uma cara parecida.
Abeirado da área adversário, tinha-lhe sobrado para os pés a bola vinda de um corte, por sua vez motivado por um canto curto do FC Porto, por acaso ele estava no lugar correto que se diz ser sorte, mas não, e a essa bola deu uma gentil chapada, em jeito, com o pé direito, cortando-a num gesto com essa perna toda esticada para a rematar à trave da baliza de um impávido Caio Secco. O guarda-redes nem se mexeu. O pequeno grandote jogador do FC Porto, apressado a ser influente com idade que merecia paciência, punha uma cara a clamar aos céus, o espanto e o pasmo de novo a pintarem-no. Em trinta minutos, o seu gesto fora literalmente o único apontamento de registar nas tentativas atacantes dos dragões - e tinha vindo de estar no lugar certo, no momento certo.
No minuto seguinte, a mesma máscara pintou Rodrigo Mora, os pincéis perpetradores de tal a virem dos jogadores contrário tanto quanto dos do FC Porto: logo no pontapé de baliza originado do seu remate, o Moreirense saiu curto, Caio Secco deu em Marcelo, o central passou a Dinis Pinto, lateral que descobriu Alanzinho na meia-direita do ataque para o equivalente atacante e criativo de Moreira de Cónegos se virar para a baliza e lançar, na área, a corrida de Yan Maranhão, o avançado sem equiparação nos dragões. O brasileiro recebeu a bola, simulou a finalização, enganou o incauto Nehuén Pérez e lá rematou.
Em cinco simples passes, o incisivo Moreirense foi de uma baliza à outra na real primeira vez que se aventurou um pouco dentro da passividade do FC Porto, feito de jogadores a verem jogar, que viram um ponta de lança até recentemente proscrito a outros patamares: quando fevereiro despertou ainda estava no Anadia, da terceira divisão, onde deixou 14 golos. Perante as despidas bancadas do Dragão, marcava o primeiro golo da sua equipa neste estádio em cinco anos.
Até se estrear em remates à baliza de Cláudio Ramos, os visitantes tinham-se remetido, de certa maneira, ao conforto da espera. Aguardavam pelo FC Porto em bloco médio baixo, com os jogadores reunidos atrás, sem pressionarem por aí além e preocupados em cerrar espaços ao centro. Tiveram meia-hora a assistir ao pobre marasmo dos dragões, perdidos em hesitações e receios, a optarem pelo passe previsível, sem um rasgo de ousadia nas suas amorfas posses de bola. O remate de Mora fora a única notícia a destoar da paupérrima ausência de jogadas a ligar mais do que dois jogadores ou de esperar que os cruzamentos de João Mário descobrissem alguém na área.
Perdido numa equipa morosa a executar e lenta a pensar, Samu era um enorme corpo perdido lá na frente. Pepê corria pelo campo, longe de adversários, a tocar na bola perto dos centrais. Eustáquio ia pressionar sozinho, confiando que os outros o seguiram ou ciente de que estava por si. Só Rodrigo Mora se mostrava com a ratice de espreitar nas costas dos médios adversários, à espera de passes raros. O devaneio maior foi Fábio Vieira, às tantas, fugir da posição de médio centro a que a carência de matéria-prima o tem condenado a ser, encostar-se à direita, Marcano o descobrir num passe longo e ele depois cruzar uma oferenda que Francisco Moura cabeceou ao segundo poste.
Nove minutos demorou o FC Porto a empatar. Antes, nem cinco demorara o impaciente público do Dragão, desgostado das agruras desta época, a assobiar um passe feito para trás. Muitos silvos se ouviram após o golo do Moreirense: cada hesitação de algum jogador a levar a bola para a frente dava direito a sibilo, por vezes cada corrida mais lenta do que um sprint também. O pavio curto dos adeptos estava nas naifas agudas que cortavam o ar.
Quando Alanzinho, sozinho nas costas dos médios, disparou de longe, e depois Frimpong, de perto, respondeu a um cruzamento-banana para Cláudio Ramos voltar a salvar a baliza nos últimos suspiros da primeira parte, a lástima dos assobios agudizou-se. Era o gatilho reativo da plateia. Enquanto Martín Anselmi cirandava irrequieto diante do banco, abanando os braços e indicando ações, batendo palmas às raras bolas recuperadas logo após serem perdidas, o Dragão nunca tinha aplausos. O silêncio também pode gritar ao ponto do desconforto.
E cada assobio pareceu mais grave, cortante e impiedoso quando o Moreirense saiu dos balneários a querer jogar, mais do que isso a ousar mandar, com jogadas a desenvolverem-se na metade do FC Porto e Ivo Rodrigues, até ao Natal um extremo como sempre foi, a ser um médio a distribuir toques e passes sem ser perturbado. Havia um corpo mole e amorfo em exposição, sem um movimento coletivo no ataque que sugerisse inspiração. Os dragões eram um emaranhado de passes para o lado, incapazes de servir Mora ao centro, com Fábio Vieira a varrer o campo para tocar em todas as bolas e elas, invariavelmente, irem ter com João Mário, à direita, para a redundância de mais um cruzamento.
Um deles, picado à queima-roupa, bateu no braço de Frimpong para ser a injeção de adrenalina que acabou por resgatar o FC Porto. Não apenas pelo penálti aproveitado por Samu, o terceiro marcado pelo espanhol em 2025 para originar apenas o seu quinto golo desde a viragem do ano, sintoma das alergias que o espanhol ainda demonstra a habituar-se à forma de jogar de Anselmi. Sobretudo, a equipa como que ressuscitou uma energia, canalizou algo das suas entranhas para uns derradeiros 20 minutos diferentes.
Não bons, nem entusiasmantes, muito menos prometedores, apenas distintos do que se vira antes. Em vantagem no marcador, com a vibração de aplausos que desconheciam há duas semanas a abanar-lhes os tímpanos, os jogadores do FC Porto ligaram-se a outra corrente. A pressão funcionou mais adiante, os ataques tiveram outra genica, as chegadas à área já não eram só a cruzar a bola. Pareceu haver a miragem de um plano, algo remotamente parecido com uma intenção bem definida. Também da refundada esperança no resgate do talento individual da pobreza coletiva.
À esquerda da área a bola foi ter com Rodrigo Mora, a quem louvar os cinco golos feitos nos seis jogos anteriores é enganador, desonesto quase, porque na genuinidade da idade de quem olha com pasmo e admiração para um capitão que motiva os seus há esta inóspita aptidão para fazer o divergente, para ser arte quando sobra apenas indústria, peças ferrugentas a roçarem-se. Perante dois adversário, Mora balanceou as pernas, bailou sem se mexer, fingiu que ia passar a bola atrás e provocou o engano que aproveitou para se esgueirar área dentro, acelerar e dar a bola rasteira que o tanque Samu chutou, quase com o bico da chuteira, para o 3-1 final. Era a insustentável leveza de um flamingo a fundir-se com a brutalidade de um porta-aviões.
Do choque destes opostos o FC Porto extraiu o movimento mais vistoso da noite, o que falta à equipa a servir de bandeja um obelisco daquilo que tem a mais: jogadores fora do habitat, desajustados ao sistema e às ideias do treinador, dentro de uma equipa passiva, sem ideias, às vezes quase anti-competitiva face às falhas de concentração que a atraiçoam. Nos derradeiros instantes ainda se viram remates de Gonçalo Borges e Danny Namaso contra um Moreirense que murchou com o penálti, deixando por aí o arrojo que chegou a plantar no Dragão.
Seria sempre inferior à arcaica mania do futebol em não mudar o que é urgente: Caio Secco, nos descontos, sofreu uma pancada na cabeça, já não havia substituições disponíveis e teve que ser um jogador de campo a vestir as luvas por uns momentos. Os riscos e perigos das concussões ainda só merecem assobios para o lado, esses inaudíveis.
No final da partida, o estádio poupou-se a sibilos, afinal era tão-só a terceira vitória em casa dos dragões em meia dúzia de tentativas com Martín Anselmi, o contestado argentino que afirmou estar “comprometido a mil por cento” com o clube onde garante que ficará até 2027. A jogar assim, mesmo vencendo e melhor do que o desastre na Amadora, será um prazo sinuoso. “Aquilo não foi o FC Porto”, soltou o salvador Cláudio Ramos, único responsável por a equipa não se ter afundado numa tragédia pior antes do intervalo. Salvou-a igualmente, mais uma vez, a imberbe cara alegre de Rodrigo Mora, o talento tão em bruto que o poder das circunstâncias estão a limar.
Atolado na desesperança das mais variadas coisas que vão correndo mal no clube, esta época, é às cavalitas do pequeno génio, aqui e ali intocado pelas desventuras - perante a intepérie, a verdura da idade é uma bênção -, que o FC Porto deve prosseguir com os seus últimos esforços por resgatar, ao menos, uma qualificação para a pré-eliminatória da Liga dos Campeões. Nele podem confiar a 1000%.