
Apareça Carlo Ancelotti a 5 de junho, para o Brasil-Equador, todo janota como costuma - o sapato a brilhar, as calças a condizer, o colete a suster a barriga e uma gravata a aperaltá-la na fatiota -, que o seu estilo senhorial nem um milímetro moverá a lupa pela qual será julgado por 200 milhões de pessoas: se consegue, ou não, fazer a seleção com mais títulos mundiais, cinco, ganhar o sexto, exigência omnipresente sejam quais forem os jogadores selecionáveis para compor uma equipa.
Não era preciso sequer um tremelique da sobrancelha mais famosa do futebol, no caso, a que se ergue, por reflexo inadvertido, acima do olho esquerdo do treinador italiano em qualquer aparição sua diante das câmaras, para ele saber o que implica aceitar ser selecionador do Brasil. “Trazer Ancelotti é mais do que um movimento estratégico. É uma declaração ao mundo de que estamos determinados a recuperar o lugar mais alto do pódio”, leu-se na declaração publicada pela Confederação Brasileira de Futebol (CBF), enquanto foi possível lê-la antes de o seu site ir abaixo.
O frenesim dos brasileiros em torno da sua seleção pode estar dormente, mesmo adormecido por vezes, algo desligado das pulsações fortes, mas nunca morto. A CBF consumou um namoro que já vem de trás para alimentar o imaginário do povo que tem de tudo na história, do poço de perder uma final no seu templo, em 1930, aquando do traumatizante ‘Maracanaço’, ao império dos Mundiais de 1958, 1962, 1970, 1994 e 2002, desbravando ao mundo, na primeira conquista, o génio do adolescente Pelé que o médico da seleção famosamente avisou contra a sua chamada, por ficar aquém num teste de QI. “O maior técnico da história”, apresentou a CBF, está agora “à frente da maior seleção do planeta”.
A aura é justificada: o Brasil é o único país pentacampeão do mundo e perdeu outras duas finais (1930 e 1998) e logo atrás, empatadas, estão a Itália (1934, 1938, 1982 e 2006) e a Alemanha (1954, 1974, 1990 e 2002), com quatro títulos cada. Os motivos a justificar a atualidade da vaidade já não tanto. A canarinha está virtualmente qualificada para o próximo Mundial, de 2026, mas cheia de solavancos recentes não só nessa campanha, onde é 4.ª classificada entre as 10 seleções sul-americanas, com seis vitórias, três empates e cinco derrotas, como nos anteriores Campeonatos do Mundo: desde o seu último título, em 2002, que apenas sobreviveu para lá dos quartos de final na sua edição caseira, em 2014.
E todos sabemos o que aconteceu a seguir.
Nas gerações de êxito que teve em Campeonatos do Mundo, o Brasil dispunha de não um, mas vários aspirantes a constar numa vitrine que expusesse os melhores jogadores do mundo por essas alturas da história. Pelé e Garrincha na Suécia. Vavá e Nilton Santos (e um Pelé magoado) no Chile. Pelé e Jairzinho e Tostão no México. Romário e Bebeto nos EUA. Ronaldo e Ronaldinho no Japão e na Coreia do Sul. Com o espreguiçar deste século, o país da ginga a jogar na rua com o pé descalço perdeu a transposição dessa samba para o futebol. Algures na modernização do futebol o Brasil deixou o filtro ser apertado e na seleção começaram a escassear os talentos divergentes.
Houve um Neymar que as mazelas e a errância de vida debilitaram e hoje há Vinícius Júnior, o nome que mais se aproxima de algo parecido a um líder por capacidade desta geração de jogadores, mas o Brasil não tem em cada posição, menos ainda em cada setor, futebolistas que constem entre os melhores do planeta. “Juntos, escreveremos novos capítulos gloriosos do futebol brasileiro”, defendeu Ednaldo Rodrigues, o contestado presidente da CBF, ao confirmar a chegada de Carlo Ancelotti.
O italiano, de 65 anos, nem terá tempo para descansar entre o Real Madrid e a seleção brasileira. Iniciará os seus trabalhos a 26 de maio, segundo o The Athletic. Será a primeira vez do homem que tudo ganhou a tentar transpor o seu sucesso com clubes para uma equipa nacional. Vencedor de cinco Ligas dos Campeões (três com os merengues) e foi campeão em Espanha, Inglaterra, Itália e França, único a encadear tal feito. Elogiado pelo estilo de liderança próximo dos jogadores, pedindo-lhes opiniões e incluindo-os nas decisões, ‘Carletto’ assinou um contrato com duração até ao fim do Mundial de 2026.
Depois de muitos meses de vai-não-vai, em que Ancelotti chegou a rejeitar o primeiro convite da CBF, em 2023, é desta que o italiano irrompe por dentro de quase tabu do futebol: será apenas o segundo estrangeiro a treinar o Brasil, outrora fiel devoto a privilegiar técnicos nacionais. Sucede assim a Jorge Gomes de Lima, lisboeta alcunhado de Joreca, que orientou a seleção em dois jogos no longínquo 1944. Acabou a versão de 'Carletto' a sambar na cara da seleção, em breve começará a tentar sambar com ela.