No Estádio Monumental de Nuñez, em Buenos Aires, a seleção argentina viveu uma daquelas noites épicas e mágicas. Uma daquelas noites que todos os argentinos vão recordar para todo o sempre, e que todos os brasileiros também deveriam fazê-lo, por diferentes motivos.

O resultado final de 4-1, espelha bem o domínio avassalador da atual seleção campeã do mundo, que mesmo privada de Lautaro Martínez e do mago Leo Messi, conseguiu realizar uma exibição sublime, em que o resultado apenas peca por escasso.

Poderia haver-se repetido um humilhante 7-1 como aquela célebre goleada contra a Alemanha no Mundial 2014, que ainda hoje atormenta todos os adeptos do escrete? Sim, poderia. Bastava a Argentina ter forçado mais a nota e carregado mais no acelerador, e poderíamos estar a falar de um resultado ainda mais vexatório para a seleção canarinha.

E apesar do comportamento irrepreensível e da postura exemplar dos jogadores argentinos (muitos deles transfiguram-se e transcendem-se quando jogam pela seleção, como é o caso de De Paul), considero que a falta de noção e de timing do Raphinha numas declarações estapafúrdias antes do jogo, também contribuiu para este autêntico e doloroso banho de realidade que a seleção brasileira levou.

Numa entrevista ao podcast do ex-internacional brasileiro Romário (esse sim um verdadeiro craque e não como a generalidade daqueles que neste momento envergam a camisola canarinha), Raphinha decidiu incendiar os ânimos na antevisão de jogo, proferindo uma declaração bombástica e bastante polémica.

Raphinha disse o seguinte: “Porrada neles. Sem dúvida. Porrada neles. Dentro e fora de campo se tiver que ser. Vou fazer o golo. Vou com tudo”.

Em relação às últimas duas afirmações, considero que são totalmente plausíveis e ajustadas perante o excelente momento de forma que Raphinha vive no Barcelona (um sério candidato à Bola de Ouro), e ao seu mais recente estatuto de grande estrela e um dos grandes líderes desta seleção brasileira, órfã de grandes referentes. Faz sentido uma declaração destas para automotivar-se e para puxar a torcida brasileira para a causa.

A ausência de Neymar faz com que a seleção fique privada de um líder natural, e Raphinha quer assumir esse papel, já que o aclamado The Best Vinicius Júnior (que para mim não é de perto nem de longe o melhor jogador do mundo), continua a ter exibições para lá de sofríveis quando veste a camisola da seleção, e está muito longe de ser um líder e uma voz de comando.

A rivalidade faz parte do futebol e é um dos seus aliciantes, sempre e quando não ultrapasse os limites do aceitável e prevaleça o desportivismo e o fair-play.

Entendo que a intenção das palavras de Raphinha não tinham por objetivo incitar à violência fora do campo. Contudo, foram tudo menos inteligentes e eu considero as mesmas totalmente irresponsáveis, quer a nível desportivo, quer a nível social (devido a toda tensão que sempre existe entre os adeptos brasileiros e argentinos).

Scaloni é um verdadeiro senhor dentro e fora do campo e não quis dar grande importância a essas declarações, até porque ele é sabedor de que estas declarações foram um fator extra de motivação para os seus jogadores.

A nível desportivo, não é de todo inteligente quereres provocar uma seleção tão bem trabalhada e que respira confiança, como a seleção treinada por Lionel Scaloni. A Argentina é uma verdadeira equipa, com um espírito solidário absolutamente incrível, e onde todos os jogadores se “matam”, correm e lutam por cada bola quando jogam pela sua seleção.

O seu sentido patriota é algo que escasseia cada vez mais no futebol, e é outro dos traços distintivos desta seleção.

Raphinha deixou-se levar no engodo de Romário, cedeu perante o fato de estar em frente a um dos melhores jogadores brasileiros de todos os tempos (e provavelmente um dos seus ídolos), e entrou numa narrativa que tinha tudo para ser desfavorável, quer para ele, quer para a seleção brasileira.

Neste momento, é colossal a diferença de qualidade entre ambas as seleções. De um lado, temos uma equipa com uma identidade de jogo muito marcada, que faz da reação à perda uma das suas imagens de marca, aliada a uma grande intensidade e constantes movimentações dos seus jogadores no processo ofensivo.

Do outro lado, está um “verdadeiro manto de retalhos”, um amontoado de jogadores, treinado por um líder totalmente desnorteado e sem rumo, como é o caso de Dorival Júnior.

Dorival Júnior é um dos treinadores brasileiros mais queridos e bem sucedidos dos últimos anos (com bons trabalhos no Flamengo e no São Paulo), contudo para se treinar a seleção brasileira, são precisas outras qualidades que Dorival não possui.

A sua falta de liderança e leitura de jogo estão a arrastar a seleção brasileira para uma situação indigna do palmarés de um emblema tão representativo na história do futebol mundial.

Neste momento tão convulso da seleção brasileira, com Ednaldo Rodrigues, presidente da CBF (Confederação Brasileira de Futebol) reeleito por unanimidade devido a um processo no mínimo pouco transparente, a seleção brasileira precisava de um verdadeiro líder, de alguém que impusesse a sua posição e fosse uma referência junto dos seus jogadores.

E Dorival provou logo na última edição da Copa América que não é esse homem, por variadíssimas razões. Devo realçar o fato de Dorival ter que ter levantado a mão (gesto que foi ignorado pelos seus jogadores) para poder falar na tradicional roda dos jogadores que antecede a marcação das grandes penalidades contra a seleção do Uruguai.

Um treinador principal ficar fora de um momento tão solene que decidiria a passagem para as meias-finais (no qual o Brasil acabou por não conseguir avançar na prova) de uma Copa América, prova logo ali naquele momento que não está capacitado para treinar uma seleção tão importante como a seleção brasileira.

A sorte do Brasil é que se apuram as primeiras seis classificadas, e o sétimo lugar vai à repescagem. Com esta mudança de formato, a zona sul-americana passou a dispor de mais vagas diretas, caso contrário poderíamos estar a falar de um Mundial sem o Brasil, e isso seria algo impensável e ultrajante para uma seleção desta dimensão.

Nesta última dupla jornada de jogos das seleções, o Brasil fez mais duas exibições confrangedoras. Contra a Colômbia, arrancou uma vitória tangencial (e extremamente injusta, diga-se de passagem) no último minuto de descontos.

Os sinais eram preocupantes, mesmo com a obtenção dos três pontos. Mas apesar da Colômbia ser uma das melhores seleções do continente sul-americano repleta de boas individualidades, a Argentina é um “monstro” de outra dimensão.

Quando foi anunciada a escalação inicial da seleção brasileira contra a Argentina, percebeu-se logo a tal falta de leitura de jogo do técnico Dorival Júnior, que mencionei anteriormente.

É absolutamente kamikaze jogar em 4-2-4 contra a atual campeã do mundo, apoiada por 90 mil argentinos no seu estádio. Sim, era uma seleção que estava privada de Messi, mas tem provavelmente o melhor meio-campo de seleções do Mundo da atualidade.

Reforçando o meio-campo com Leandro Paredes, Scaloni povoou o meio-campo com mais quatro jogadores com muita intensidade e muita capacidade de retenção de bola e de chegada a zonas de finalização, como são os casos de Alexis MacAllister, Enzo Fernández, Rodrigo de Paul e Thiago Almada.

Dorival considerou por bem escalar a sua equipa com apenas dois jogadores no meio-campo (Joelinton e André), e a sua equipa foi completamente engolida pelo meio-campo argentino, que ainda beneficia do estado de forma absolutamente assombroso de Julián Álvarez, a sua grande referência ofensiva, que para além de contribuir muito para a excelência do jogo ofensivo da seleção argentina, ainda trabalha imenso defensivamente, sendo o primeiro jogador a sair na pressão da saída de bola das equipas adversárias.

Apesar de entrar em campo sabendo que já estava matematicamente qualificada para o próximo Mundial (e podendo dessa forma defender o seu título conquistado naquela final imprópria para cardíacos contra a França), os jogadores argentinos entraram com sangue nos olhos e sedentos de aplicar uma tareia monumental aos seus arqui-rivais. E foi exatamente isso que aconteceu.

Não foi de estranhar que a Argentina já ganhasse por 2-0 (golos de Álvarez e Enzo Fernández) antes do primeiro quarto-de-hora do jogo (!). Pressão asfixiante da equipa argentina, muita qualidade na troca de bola, uma cratera aberta pelos laterais brasileiros e pela sua dupla de centrais (nomeadamente de Murillo, que teve uma noite pavorosa ontem, não ficando isento de culpa nos três primeiros golos da Argentina).

No segundo golo argentino marcado pelo ex-jogador do Benfica, a Argentina trocou a bola durante quase dois minutos (!), com a seleção brasileira a ver jogar e a ter que escutar o sempre penoso “Olé” vindo das bancadas. Essa parcimónia é algo impensável e inadmissível no futebol de alta competição, muito mais quando teoricamente se tratam de seleções de valia tão semelhante.

Mas a questão é mesmo essa. Neste momento, não são e apesar de um golo oferecido pela Argentina num erro monumental de Cristian Romero, muito bem aproveitado por Matheus Cunha (o único que se salva de um jogo horroroso da seleção brasileira), a equipa argentina manteve a pressão, conseguiu marcar o terceiro golo por intermédio de MacAllister, e poderia ter saído para o intervalo com um marcador ainda mais dilatado.

Na segunda parte, a Argentina deu-se ao luxo de jogar quase em ritmo de treino, conseguiu dominar o jogo a seu bel-prazer mesmo com Scaloni refrescando a equipa, sendo que um desses jogadores saídos do banco, ainda conseguiu marcar o quarto golo e estrear-se a marcar pela seleção: Giuliano Simeone.

O seu apelido carrega um peso enorme (é filho do carismático Diego Simeone, que inclusive é atualmente o seu treinador no Atlético de Madrid), mas Giuliano joga como se tivesse no recreio de sua casa e não sente pressão absolutamente nenhuma. Golo muito consentido pela defesa brasileira (passividade incompreensível e desconcertante de Guilherme Arana), mas com grande mérito para o jovem argentino.

Com ou sem Messi (que estou em crer que irá jogar o Mundial 2026) e num processo consciente mas equilibrado de renovação da sua seleção, Scaloni está a tornar esta Argentina ainda mais sólida e eventualmente mais perigosa para o próximo Mundial.

Quanto ao Brasil, está a anos luz de poder competir pelo hexacampeonato e de lutar pela tão ansiada 6.ª estrela em 2026. No futebol, tudo é possível, mas o Brasil precisa de uma reestruturação profunda de todo o seu futebol, e esse processo vai levar o seu tempo.

Dorival Júnior não será o homem certo para levar a cabo esta reconstrução do futebol brasileiro por todos os motivos elencados anteriormente.

Mas também não faz qualquer sentido que o Brasil continue nesta sofreguidão para que Carlo Ancelotti aceite treinar a sua seleção. O treinador italiano é muito grande, mas a seleção brasileira também é, e não deve ficar refém das decisões de ninguém, independentemente do prestígio e reputação de que goza Ancelotti neste momento.

E até vou mais longe, não acho de todo que seja o perfil adequado e necessário para uma seleção brasileira que precisa de voltar às suas origens e àquilo que sempre a diferenciou das demais: a imprevisibilidade e o tecnicismo dos seus jogadores.

Um perfil como o do técnico português Jorge Jesus, esse sim considero que seria o ideal para uma seleção que necessita que o seu talento seja potenciado e que se pare com a “europeização” do seu futebol.

Vai ser necessária muita paciência, muita união e muita humildade, para que o Brasil consiga aceitar o seu atual momento e jogar de acordo com a sua atual valia, e com aquilo que pode realmente apresentar no terreno de jogo.

E já agora, que os seus jogadores aprendam a lição e deixem de falar fora de campo, porque como disse e bem o antigo internacional brasileiro Marcelinho Carioca: “Se falas antes do jogo, tens que te garantir dentro do campo”.

E a realidade é que neste momento, nem Raphinha nem Vinicius Júnior conseguem exibir-se ao mesmo nível na seleção como o fazem nos seus clubes, e a seleção grita pelo regresso do irregular, inconstante mas ainda seu melhor jogador Neymar, o mais diferenciado de todos.

Esse sim, pouco fala antes dos jogos, mas garante-se dentro do campo. Para evitar estas humilhações, e ter os jogadores argentinos a gritarem e entoarem o célebre cântico Um minuto de silêncio para o Brasil que está morto, é necessário falar menos e trabalhar mais.

A seleção argentina apenas fez uso de brilhantes argumentos futebolísticos para levar de vencida um Brasil, que deixou de ser uma das melhores seleções do mundo já há muito tempo.

Os comandados de Scaloni expressaram-se da melhor forma possível: jogando futebol. O campo falou mais do que a bazófia.