Em Xi’an mora o tectónico peso da história, ainda é respirável no ar mesmo com o bafo da modernidade dos mamarrachos de betão que desafiam as alturas. Bem no seu centro, protegida por muralhas, perdura a fortificação da antiga cidade imperial erguida durante a dinastia Ming, de onde se diz brotava a Rota da Seda. Hoje um lugar de milhões de tudo, pessoas e carros e prédios e partículas de poluição, não há muito tempo uma criança chegou aos 12 anos, longe da idade de realmente já ser gente, foi ter com o pai médico e a mãe enfermeira e informou-os de uma certeza incomum na China: queria ser jogador de snooker.

Na terra afável com uma modalidade virada para o indivíduo, posta sobre uma mesa e baseada em bolas, os progenitores fizeram a vontade a Zhao Xintong. Já nem iriam a tempo de contrariá-lo, culpa deles. Aos nove anos puseram-lhe uma mesa em casa, não do querido ténis de mesa no país, mas uma com pano verde a revesti-la e seis buracos à espera do que o jeito do filho, canhoto de mão, faria com um taco. Tanta era a aptidão que contrataram um treinador para lhe dar lições e estimular o talento com a prática intensiva. Dos seus primórdios pouco mais se sabe até viajar, em 2016, para Inglaterra, onde fixou as bases e se começou a conhecer-lhe os contornos austeros.

Cada qual com o seu feitio, mas, na segunda-feira à noite, olhando para Zhao Xintong no centro da Cruciable, a arena do snooker inglês, difícil seria captar um laivo de felicidade nas suas feições: ao falhar, quase à bruta, a última bola preta que pôs a tabelar nas bordas até o ricochete a afastar do buraco, cumprimentou a árbitra, caminhou na direção de Mark Williams, o finalista que derrotou, deu-lhe um passou-bem, afagou timidamente o dorso do adversário na breve imitação de um abraço e levantou o punho direito, quase contrariado, esticando o polegar. Um estranho sinal de fixe para o ruidoso público, que aplaudia e gritava.

Aí como mais tarde, já com o troféu de campeão do mundo de snooker, confettis coloridos a choverem-lhe em cima, não se avistou a dentição de Zhao Xintong. Nenhum sorriso branco. Nem na entrevista em estúdio à TNT Sports, serenados os ânimos e a grande medalha do triunfo sustida pelo seu pescoço. Fora o ocasional desenho nos lábios, sem excessos, de algo remotamente parecido à expressão facial, apenas mostrou os dentes quando o entrevistador escavou pelas suas origens. “Naquela idade nenhum rapaz gosta de estudar”, admitiu, rindo durante um par de segundos com a questão que sondou o momento em que informou os pais da sua intenção de ser profissional. “Nessa altura gostava muito de snooker” acrescentou de pronto, retornando à postura contida.

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Tudo em Zhao sugere contrição. “Estou muito feliz”, respondeu, só isso, quando o entrevistador lembrou os 50 milhões de praticantes de snooker da China e lhe perguntou como logrou ser ele, aos 28 anos, o primeiro a ganhar o título mundial. “É muito bom para o snooker chinês. Isto é inacreditável, é como um sonho”, disse, cheio do ar lacónico, ao ter de se pronunciar sobre o feito, ciente de que estaria a falar para dentro de 150 milhões de lares no seu país a confiar nas estimativas da World Snooker. Antes dos Mundiais, mais de 50% das audiências televisivas das suas provas já vinham da China, a nação estridente na idolatração de atletas que brilhem além-fronteiras.

Zhao Xintong será o alvo predileto das histerias. Foi o primeiro de entre os 59 jogadores profissionais chineses a ser o melhor da modalidade britânica, por tradição recheada, sobretudo, de jogadores das suas ilhas. Durante largo tempo pensou-se que seria Ding Junhui a arrombar a porta. Em 2005 foi quem venceu o UK Championship, uma das provas do circuito mundial, em plena sala de estar do snooker. Aconteceu no dia do oitavo aniversário de Xintong, pregou-lhe o feitiço. Quando Junhui perdeu na final dos Mundiais contra Mark Shelby, em 2016, o agora campeão mudou-se para Inglaterra, escolhendo Sheffield como nova casa.

Zhao Xintong será o alvo predileto das histerias. Foi o primeiro de entre os 59 jogadores profissionais chineses a ser o melhor da modalidade britânica, por tradição recheada, sobretudo, de jogadores das suas ilhas. Durante largo tempo pensou-se que seria Ding Junhui a arrombar esta porta. Em 2005 foi quem venceu o UK Championship, uma das provas do circuito mundial, em plena sala de estar do snooker. Aconteceu no dia do oitavo aniversário de Xintong, criança permeável a encantos. Pregou-lhe o feitiço. Quando Junhui perdeu na final dos Mundiais contra Mark Shelby, em 2016, o agora campeão deixou Xi’an rumo a Inglaterra. Quis imiscuir-se na terra do snooker, ser profissional no berço da prática. E escolheu Sheffield como residência.

Já então se ponderava não se, mas quando um chinês imperaria na modalidade. Na segunda-feira, depois de se enrolar na bandeira da China para celebrar a conquista no centro da Cruciable, palco bienal da decisão do título mundial desde 1977, Zhao só demorou uns 10 minutos a chegar a casa. É o quão próximo do templo da modalidade quis assentar os arraiais. O maior talento da nação emergente do snooker - são hoje 10 os jogadores no top 16 do ranking - fez-se vizinho geográfico do lugar mais querido da modalidade. Mas, 227 dias antes da sua vitória, poucos o teriam em conta para, na prática, escalar tão alto, tão cedo, tão pouco tempo após a sua promessa sucumbir à ilegalidade.

George Wood

Zhao esteve 20 meses sem competir ou poder sequer treinar com profissionais desde janeiro de 2023, quando foi um de dez jogadores chineses suspensos por esquemas de manipulação de resultados. Sem ter, diretamente, orquestrado o resultado de uma partida, Xintong confessou o auxílio prestado a quem o fez e colocou apostas online em si próprio. O snooker chinês ainda estava caído no descrédito e o jogador, vencedor do UK Championship, em 2021, e do Masters da Alemanha, em 2022, cercado pelas dúvidas quando regressou à competição, em Sófia, capital da Bulgária, na primeira das provas do circuito mundial amador por onde foi obrigado a reentrar em atividade.

Perdido o estatuto de profissional, partilhou mesa com adversários estranhos ao seu nível durante meses, confortável na pouca adversidade até largar a catacumba da modalidade para tentar entrar nos Mundiais. Na Sheffield que também é sua, pôde constar no quadro principal dos Mundiais após ultrapassar quatro rondas de apuramento e a conquista do título tornou-o apenas no terceiro elevador do snooker a ser campeão vindo do qualifying (os outros foram Terry Griffiths e Shaun Murphy. Na final, venceu o 47.º dos 49 jogos que teve desde que o seu regresso da suspensão.

O derrotado, por 18-12, foi Mark Williams, careca no cocuruto e grisalho no pouco cabelo que lhe resta no telhado das orelhas, vivo há 50 anos e o mais velho da história a disputar uma decisão do título. Prevendo o que se aproxima, o tricampeão mundial galês contentou-se por a idade que tem o livrar de uma penitência. “Estou feliz porque serei demasiado velho quando ele estiver a dominar o jogo”, disse após a partida. “Ele não jogava [no circuito profissional] há dois anos e deu cabo de toda a gente. É a nova super estrela do snooker”, opinou o um dos cinquentões, ou quase, ainda no topo da modalidade que tem mais de 300 mil clubes na China.

Outra dessas lendas, Ronnie O’Sullivan, sentiu a ventania do ‘Ciclone’, alcunha de Zhao Xintong, nas meias-finais. Ele próprio afastado das mesas desde janeiro, um exílio auto-imposto por ansiedades e receios, perdeu por 17-7 contra o chinês, seu confesso admirador. “É o meu ídolo”, resumiria timidamente. O inglês que há um par de anos lhe chamou “o Federer do snooker” já devolvera o troco em generosidade ainda antes de se defrontarem nos Mundiais: “Este miúdo tem tudo. Creio que em três anos será o líder do ranking. É o nosso Luke Littler.” A alusão comparou-o ao prodígio de 17 anos, o mais recente campeão mundial de dardos, outra costela desportiva inventada pelos britânicos para ser jogada entre paredes e debaixo de um teto.

George Wood

Antes da coroação de Zhao, o sete vezes campeão do mundo augurava que se tal seria “incrível para a snooker”. Na China há dinheiro, o entusiasmo pelo sucesso dos seus desportistas no estrangeiro roça o descontrolo e estes Mundiais já foram transmitidos num dos vários canais públicos da televisão estatal do país. A BBC pintou a vitória como “um momento sísmico” para snooker chinês e o todo da modalidade. E ouviu quem já por lá andou em trabalho, Matt Huart, diretor de comunicação da Associação Profissional de Profissionais de Snooker e Bilhar, a soltar as estribeiras às réplicas do abalo desta vitória na terra com quase 1,5 biliões de pessoas.

Não na dimensão do ténis de mesa, a China já integra academias de snooker em escolas para nos incutir o gosto nos mais pequenos e disseminar o hábito. “Já vi, em primeira mão, crianças a chegarem ao edifício, entregarem o telemóvel e passarem horas a jogar snooker”, relatou o dirigente da entidade que governa a modalidade, dado a um certo exagero em nome do reforço de uma ideia: “Já é mainstream na China, é vista como tão boa quanto uma modalidade olímpica. Já organizamos eventos em cidades que têm metade do tamanho do Reino Unido.”

Agora também já teve Zhao Xintong a triunfar sendo, na prática, um jogador amador, erguendo o troféu de campeão mundial com um enorme penduricalho ao pescoço. E a quase sorrir. Daqui até mais crianças chineses irem dizer aos pais que querem viver do snooker quando forem grandes será um pequeno pulo.