Espantou a distração de William Saliba, por estes dias um dos melhores e mais compostos defesas centrais que há para ver, aparecer em tal momento, naquelas circunstâncias: no limite da área, recebeu um passe do guarda-redes Raya e incauto, sem rodar a cabeça para perscrutar as redondezas, dominou a bola para dentro, a postura fechada. Nem reparou no doidivanas a aproximar-se de rompante, possuído pela pressa, que o roubou e aos trambolhões rematou para uma baliza deserta. O Arsenal marcara um golo dois minutos antes e Vinícius Júnior mal se concedeu a celebrar este. Correu logo para trás, vociferou umas coisas, agitou os braços, tentou incendiar os ânimos dos adeptos. Agora sim, o Real Madrid cria no despertar da sua fera.

Os canais do clube tinham recheado a semana a esculpir a crença, moldando as noções do relógio - “90 minutos é muito tempo no Bernabéu” -, empurrando para o imaginário público o histórico de remontadas, enfiando goela abaixo os feitos passados. “Se alguém o pode fazer, é o Madrid”, titulou a Marca no próprio dia. “Não é impossível, é o Madrid”, engrandeceu o AS. Partilhou-se até à exaustão um vídeo antigo de Emilio Butragueño a contar a história de como, em 1985, nos ‘oitavos’ da Liga Europa e após uma derrota por 3-0 em Bruxelas, José António Camacho andou, durante as duas semanas que faltavam para a 2.ª mão, a desenhar “4-0” em quadros no balneário, dizer o placard em voz alta ao pequeno-almoço e a cumprimentar a diário os outros jogadores com um insistente “vamos meter-lhes quatro”. O Real ganharia por 6-1 ao Anderlecht.

Mais do que na ressuscitação, acreditou-se que bastaria um golo para a reminiscência invadir os jogadores, o gatilho definitivo para um processo natural da alma adquirir os laivos de proezas passadas. O golo reforçou a fé na cantilena: as bancadas, por segundos, ficaram barulhentas, reverberaram no ambiente temível que se louva ao Santiago Bernabéu, rugiram como no uníssono do grito “Champions” berrado pelos adeptos a cada hino da Liga dos Campeões tocado no estádio onde moram 15 réplicas do troféu. Um golo, bastaria um, para a infestação de uma ideia: o Arsenal iria abaixo, tremer-lhe-iam as pernas, nada poderiam contra o sobrenatural a espreguiçar-se dentro dos seus nervos para implantar o medo cénico.

Mas o seu golo apareceu tarde, aos 67 minutos, sem qualquer poder de intervenção no tempo tal qual o conhecemos, ou no emaranhado amorfo, unidimensional, a representar o Real Madrid no campo. O restante que havia no relógio fez-se do mesmo que se desenrolara até então: havia uma equipa plena de serenidade, organizada a fazer tudo, coesa sem a bola e a aplicar procedimentos pré-cozinhados com ela, adulta na harmonia com que os seus jogadores atuavam dentro de saber comum em como fazer as coisas mesmo sem um verdadeiro ponta de lança disponível.

Apesar desta coincidência entre ambas, essa equipa era o Arsenal, cujo falso avançado, Mikel Merino, de raiz um médio de área a área, tem sido improvisado como atacante face às lesões e deu o passe para o golo de Bukayo Saka e o outro, de Gabriel Martinelli, já nos descontos, a decapitar de vez o corpo de lagartixa do adversário.

O espírito da remontada do Real Madrid canalizado até mais não antes da partida foi espremido em pouco. Na hora e meia de crença, teve a urgência em levar qualquer bola rapidamente para Vinícius, à esquerda, para rapidamente ir contra o lateral, forçar um duelo, tentar um finta que nele é tocar para o lado e arrancar, tirar um cruzamento, talvez um remate, alguma coisa que fosse, mas rápido, como Kylian Mbappé, a estrela acrescentada a eito no verão para reavivar as constelações do passado do clube, igualmente cheio de rapidez nas suas funções de tentar ser o declarado avançado que não é. Teve outro jogo a sair da área para acelerar qualquer jogada em direção à baliza de modo a tentar entrar nela, onde tocou apenas sete vezes na bola. Vini tentou 16 dribles e saíram-lhe bem 68%, maior percentagem do que a dos passes acertados: 57,1%, nas contas da Driblab.

Atrás do francês e do brasileiro e do seu conterrâneo Rodrygo, mais uma vez sacrificado com uma substituição para as estrelas perduraram em campo, esteve uma equipa sem cérebro, órfã das sinapses do reformado Toni Kroos ou do envelhecido Luka Modric. Antes do início da partida, uma tarja gigante fez-se cair de uma das bancadas, na qual se viu um tabuleiro de xadrez e um grande mestre a tombar peças. Foi curiosa a escolha de ilustração: o Real Madrid carece hoje de um crânio que meça e pense o seu jogo. Nunca seria Mbappé, não o são os médios que jogaram a titulares, Valverde, Tchouaméni ou Bellingham, o discreto inglês que perfez a noite a ser belicoso, dividindo-se em querelas, empurrões e discussões com os adversários, quase em modo bully.

Os centrais Rüdiger e Asencio imitaram-no, no final até o lesionado Dani Carvajal desceu ao relvado para confrontar Bukayo Saka, supostamente pelo seu imperdoável desplante de ousar bater um penálti à Panenka, saído tão que mais não foi do que um desmérito técnico ao próprio Antonín Panenka, o autor checo do gesto. Quiçá o lesionado capitão do Real Madrid preferisse que a bola tivesse entrado. Perante a falta de armas futebolísticas, o Real Madrid recorria à munição do psicológico.

Assim esperneou o seu corpo descabeçado nos 90 minutos que teve no Bernabéu antes de se confirmar a eliminação nos quartos de final da Liga dos Campeões. O primeiro dos três remates que acertou na baliza, uma mansa tentativa de Vini Jr., apareceu aos 58’, de entre o total de 18. Com uma hora de jogo, Thibaut Courtois já tivera que defender três. “Temos que fazer mais jogadas de equipa e não tudo no individual. Não podemos esperar que os quatro da frente vão fintar três e marcar um golaço”, diagnosticou o guarda-redes do Real Madrid.

Sem um plano que não o de se esperançar no misticismo das remontadas, tentar um golo matutino, pegar nesse embalo e levar a bola até ao velocista que segundo a apologia à crença merengue deveria ter em casa a última Bola de Ouro, o Real Madrid foi perecendo. “Falou-lhe jogo e sobrou-lhe ansiedade”, enlaçou o Jorge Valdano, filosófica porém certeira figura do clube, à Movistar.

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Precisamente o contrário do que fez o Arsenal, uma equipa calma, madura e sobretudo imune aos intangíveis que o universo madridista poluiu o ambiente em torno do jogo. O primeiro golo, de Saka, fechou um movimento coordenado de passes simples, toques precisos e contra-movimentos entre Ødegaard e Declan Rice para Merino lançar o extremo na área. A exibição deixada pelo médio com apelido de guarnição encapsula as diferenças entre as duas equipas: não sendo extraordinário a agarrar nos colarinhos de uma partida, o inglês joga num coletivo que lhe permite ser dominante através do melhor que tem. Rice esteve uma hora e meia a disputar duelos, cobrir o campo todo e a carregar a bola para a frente, em corrida. Não lhe pedem coisas nas quais não é exímio, nem é necessário que ele as tente.

No Real Madrid despido de referências que filtrem o jogo, tudo se pede às estrelas de um plantel desequilibrado. Elogiando a prestação dos seus, as palavras de Mikel Arteta após a partida exemplificaram por onde o jogo pendem para os ingleses. “Vens aqui e apercebes-te o quão difícil é, tudo pode acontecer. Eles podem levar-te para cenários muito complicados”, reconheceu, também o treinador tocando na aura das noites europeias desesperadas. “Mas conseguimos e conseguimo-lo de uma forma inteligente. Fomos claros.” Do outro lado, que clareza existe hoje no jogo merengue?

Perante essa ausência, abraçou-se o seu farto imaginário: tinham sido 25 remontadas em eliminatórias europeias depois de perdida a primeira mão, três em específico após uma derrota por três golos de diferença. Mas, como despertou esta quinta-feira a Marca, na sua primeira página, “sem jogar a nada, não há milagres”. Terá sido “só um sonho”, disseram as gordas do AS. Serão tempos de dúvidas os próximos que aí veem para o Real, com a final da Copa do Rey frente ao Barcelona a 26 de abril, ainda com Carlo Ancelotti, a quem dá “exatamente igual” se não renovar o contrato que finda esta época. Na orfandade de cérebros que pensem o futebol do Real no campo, diz-se que o seu sucessor será Xabi Alonso e os seus neurónios.

Por diante do Arsenal o trilho é outro. Quase uma década volvida da vitória no Bernabéu, também na Liga dos Campeões, nas asas de Thierry Henry, o clube regressará a Paris, onde nessa temporada de 2005/06 perdeu a decisão da prova. Espera-lhe uma meia-final contra o PSG, mais uma ocasião para espantar o peso de histórias passadas.