É provável que me julgue incoerente. O respeito pela decisão informada do doente não pode nunca ser questionado. O Médico pode aconselhar o melhor caminho para lutar contra a doença, mas só o doente conhece os meandros da sua mente e as circunstâncias da sua vida. Ás vezes batalha com todas as armas, anos seguidos, até se esquecer daquilo que era no início da jornada. Noutros casos, a pessoa sabe que não suportaria ver-se diminuído, fraco e escanzelado, pelo que quer acabar com tudo, quando a esperança de cura já se perdeu, antes que a degradação se instale. Talvez por isso tenha vindo a ser tão difícil regulamentar a Lei da Eutanásia, aprovada pela Assembleia da República a 31/3/23.

É difícil garantir em absoluto que a decisão do doente é tomada na posse de todo o conhecimento, sem influência de quaisquer fatores estranhos, como o desejo de não ser um estorvo para os outros. Depois, o condicionamento que a mente vai sofrendo, pela evolução da doença ou pelo efeito das drogas, deve determinar um tempo limite para a validade da decisão de pôr termo à vida. Como o saber? Também me perturba o negócio apetecível das clínicas da morte. É fácil imaginar que se disseminariam por este País de velhos, porque os meios necessários para morrer são poucos e a disponibilidade da bolsa dos clientes seria total.

O filme de Pedro Almodóvar “O Quarto do Lado”, que retrata a decisão consciente de uma mulher inteligente e culta de pôr termo à vida, antes que o cancro galopante lhe retirasse o discernimento ou beliscasse a figura, é uma inspiração. Podem ir ver, mesmo sendo o tema aparentemente pesado, porque não tem nada de deprimente.

A Jornalista de guerra, habituada a ter a vida presa por um fio, foi apanhada por uma doença neoplásica maligna metastática. Faz o primeiro tratamento de quimioterapia, ainda cheia de esperança, mas não há qualquer resultado. A doença progride e propõem-lhe um tratamento experimental, que lhe poderá prolongar a vida possível. Sem o dizer, decide não o fazer. Não quer estar viva, longe dos padrões a que se habituou. Encontra na “dark web” uma pílula da morte. Não quer nenhuma ajuda para morrer. Fá-lo-á quando quiser. Aluga uma casa de sonho, rodeada de árvores frondosas e belas, onde os pássaros cantam desde o alvorecer. O que lhe foi difícil foi encontrar uma amiga, que sabendo da sua intenção determinada, aceda em estar no quarto ao lado. A amiga, não sabe o dia em que vai acontecer. Só há os sinais combinados. A amiga terá morrido, quando encontrar a porta fechada. Então, saberá o que fazer.

De facto, a morte não assusta assim tanto. O que custa, é morrer sozinho!

Autor: João Araújo Correia,

Especialista em Medicina Interna na ULSSA-Porto

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