Selma Uamusse é uma artista maior, versátil, múltipla, inteira e autêntica que nos faz mexer o corpo e cantar com ela temas belos, autênticos hinos humanistas, que nos aproximam mais uns dos outros, e que nos alertam para o valor do amor, da união, da solidariedade, da paz ou da igualdade entre todas as pessoas.
Os seus predicados não se ficam pelo seu inquestionável talento, pela qualidade artística e poderoso aparelho vocal, mas pela mulher que é, atenta aos outros, aos mais vulneráveis, que canta a visão do mundo em que acredita e sonha e que através da sua voz dá lugar e visibilidade aos que não a têm.
E isso é tão precioso num tempo de tanto egoísmo, individualismo, ódio e trincheiras em que por um lado chegamos ao Japão num só clique - através das redes sociais - mas por outro lado estamos desligados dos outros ao nosso lado ou à nossa frente, e parece haver menos tempo, vontade e capacidade de escutar e de partilhar. Poderá a música salvar-nos desta perdição?
É por aqui que arranca a primeira parte desta conversa em podcast, que segue para os protestos da população e violência policial que se vive atualmente em Moçambique, o país onde nasceu.
“Acredito que esses protestos em Moçambique possam ser a nossa primavera, uma mudança de paradigma em prol do povo moçambicano”, chega a afirmar.
E mais diz: “Os protestos em Moçambique são mais profundos do que o resultado das eleições. São o resultado de uma saturação de muitos anos em que as pessoas não se sentem vistas, tidas ou achadas. Vejo com preocupação o facto de se procurar silenciar as pessoas e que num estado democrático as pessoas não tenham liberdade para se manifestar e dizer que as coisas não estão bem”.
É recordado a dado momento que, antes de cantora, Selma foi engenheira e tinha o sonho de regressar ao seu país, e à sua cidade, Maputo, de onde veio com apenas sete anos, para ajudar a reconstruir a sua terra. Mas através da música anda a reconstruir corações e horizontes para tanta gente.
Selma acredita no poder da arte, para acordar os espíritos mais adormecidos ou alienados, e vive a música como uma missão de vida. Ou, como ela diz, tem costurado a sua fé com a música.
Com um percurso de mais de duas décadas, já cantou com os Gospel Collective, Cacique' 97, ou os Wraygunn até se lançar em nome próprio, reconectando-se com as suas raízes moçambicanas, autora de 2 discos em nome próprio, “Mati” (2018) e “Liwoningo” (2020), aqui revela um pouco sobre o que está a preparar para o próximo disco. Um álbum intimista, sobre a sua vida e que conta com a participação de “A Garota Não”, entre outros artistas.
Entretanto, Selma tem dado também corpo e voz noutros palcos, como no teatro, cinema e nas artes visuais. E agora até na rádio no programa “Cinco à Quinta”, na Antena 1.
Recentemente atuou em nome próprio no espetáculo “Carta Branca a Selma Uamusse”, no grande auditório do CCB.
No ano em que se comemoram 50 anos de Liberdade e de fim da ditadura, em Portugal - e que se celebram os movimentos de libertação dos países africanos de expressão portuguesa - este concerto em forma de carta ao Futuro, propôs exaltar também os jovens, as gerações do pós-guerra, proporcionando-lhes um futuro menos desigual, com oportunidades partilhadas e mais distribuídas.
Uma carta musical ao futuro de um país capaz de reconhecer as injustiças ou as desigualdades que ainda se perpetuam. E que maravilha foi ver Selma a acolher nessa noite a Orquestra Geração, com jovens músicos da Amadora.
E igualmente marcante foi vê-la a cantar naquele sua atitude muito rock n roll - a trepar literalmente as cadeiras do auditório - procurando amor e ligação com aquelas pessoas todas presentes - como se fossemos todos da mesma família ou amigos íntimos - enquanto cantava sobre a sua Àfrica que lhe corre no sangue. Este momento especial foi abordado no podcast.
A cantora não sabe se a música nasceu com ela ou foi ganhando dimensão em si. A sua avó conta que, no dia em que Selma nasceu, teve um sonho. Um anjo apareceu-lhe, avisou-a do nascimento da sua neta e que ela iria ter a missão de ser “sal” e “luz” no mundo através da sua voz!
E Selma é mesmo isso. Bem condimentada de sal, e muito iluminada, com uma luz poderosa, dirigida muitas vezes aos invisíveis, remetidos à sombra, aos bairros do desamor.
E, a dado momento, são abordados os vieses e preconceitos sobre esses territórios tratados de forma desigual pelas autoridades.
Quem é atualmente Selma Uamusse na fila do pão? Ou, até, na fila do trânsito? (Porque bem sabemos como as pessoas se transformam nesses momentos…)
Estas são as primeiras questões lançadas a Selma nesta primeira parte da conversa.
Como sabem, o genérico é assinado por Márcia e conta com a colaboração de Tomara. Os retratos são da autoria de José Fernandes. E a sonoplastia deste podcast é de João Ribeiro.
A segunda parte deste episódio será lançada na manhã deste sábado. Boas escutas!