
(Ainda) é preciso ser-se muito claro quando se aborda este conflito, dizendo o que parece quase patético de tão óbvio que é: a guerra russo-ucraniana é uma guerra de agressão, no contexto da qual só há um agressor, a Rússia, e uma potência a lutar pela sua sobrevivência, a Ucrânia. Qualquer discussão em torno da paz deve partir deste pressuposto básico, mas muito relevante legal, política e moralmente.
Volvidos mais de três anos, a guerra não oferece sinais de conclusão. Nenhuma das partes beligerantes está perto de uma vitória clara e decisiva. E, embora a Ucrânia continue a defender-se com extraordinária coragem e o Ocidente continue a prestar-lhe apoio – dentro dos limites do que são os seus próprios constrangimentos políticos, sociais e eleitorais – a situação militar atingiu o estatuto de impasse. Isto tem vindo a contribuir para uma pressão – e, para alguns, tentação – cada vez mais forte para considerar negociações de paz com a Rússia de Putin.
O problema que se impõe é: que tipo de paz pode e deve a Ucrânia aceitar?
Nos últimos dois anos, várias propostas foram avançadas: desde as primeiras conversações em Istambul, em 2022, ao plano de 12 pontos da China, até à fórmula de 10 pontos do Presidente Zelensky para uma paz justa e duradoura. Cada uma destas propostas reflete, naturalmente, diferentes prioridades: algumas enfatizam a questão da soberania, outras focam-se especialmente em cessar-fogos, corredores humanitários ou estabilidade regional. O que importa, porém, é que nenhuma conduziu a resultados concretos. A problemática fundamental é que as posições básicas dos dois lados, ou os dois pontos de partida, permanecem quase opostos: a Ucrânia exige a restauração total da sua integridade territorial e a Rússia, por seu turno, procura consolidar os seus ganhos territoriais.
Qualquer acordo de paz que termine a guerra sem devolver todos os territórios ocupados seria, objetivamente, injusto. Mas ainda não é igualmente objetiva a possibilidade de evitar com certeza um acordo desse cariz. É aqui que enfrentamos um difícil dilema moral e político: deverá a comunidade internacional aceitar uma paz imperfeita e injusta para cessar os combates no terreno? Ou deverá continuar a apoiar a Ucrânia até que uma paz justa se torne militarmente atingível, por mais tempo que isso possa demorar?
Alguns analistas acreditam que podemos estar a caminhar para uma situação onde o melhor que podemos esperar é a paz menos injusta (o menor dos males) — portanto, um acordo que impeça mais derramamento de sangue, mas que fique aquém de restaurar a justiça plena. Outros, porém, defendem que é preciso ter cautela, não permitindo que a necessidade urgente de alcançar alguma forma de paz se torne uma desculpa para um relativismo moral e para uma certa amnésia histórica.
Paralelamente, não é necessária uma pesquisa exaustiva para encontrar teses e narrativas que começam a desviar a culpa da Rússia para a Ucrânia ou para o Ocidente, porventura por fadiga da guerra ou por cegueira ideológica. Chegámos mesmo ao ponto em que até algumas figuras e personalidades políticas relevantes no Mundo Ocidental estão disponíveis para desenterrar a velha retórica acerca da expansão da NATO, que terá provocado a pequenina Rússia (contém ironia), ou para criticar as deficiências democráticas da Ucrânia. Mas estes argumentos missed the point! As fraquezas internas da Ucrânia – porque existem, como em qualquer outro Estado – não justificam uma invasão não provocada. E a expansão da NATO mais não é do que um produto das escolhas e da autodeterminação dos povos de Leste no pós-sovietismo.
Dito isto, a paz não é apenas sobre princípios. É também sobre poder, interesses e compromisso. Se as negociações de paz acontecerem, elas envolverão quase certamente concessões difíceis — possivelmente cedências territoriais, alguma forma de neutralidade para a Ucrânia ou garantias de segurança limitadas. Estes seriam sapos difíceis de engolir, sobretudo para os ucranianos, e, em última análise, seriam facilmente percecionadas, sobretudo pelos russos, como uma recompensa pela agressão.
É por isto e mais que um acordo de paz não deve resultar da fraqueza ou da exaustão do país invadido. Um acordo de paz deve ser negociado a partir da força — política, militar e diplomática. E isso significa que o Ocidente tem um papel crucial a desempenhar. Se o objetivo é uma paz sustentável e minimamente justa, então o apoio à Ucrânia deve ser aumentado, não reduzido. Isto inclui armas, ajuda económica e amparo político a longo prazo.
De outro modo, as consequências podem ser muito perigosas — não só para a Ucrânia, mas para todo o sistema internacional, a começar pela Europa. Uma vitória russa, ou mesmo a perceção de uma, encorajaria regimes autoritários em todo o mundo. Sugeriria, ao mesmo tempo, que as fronteiras que hoje conhecemos como legais podem ser alteradas por via da força e que as democracias carecem da vontade de se defender ou de defender os seus aliados. Não estamos apenas a assistir a uma guerra na Europa — estamos a assistir a um teste às normas globais.
Neste sentido, qualquer plano de paz deve, portanto, equilibrar o realismo com a responsabilidade. Podemos não conseguir tudo o que queremos — refiro-me a uma vitória completa para a Ucrânia, justiça por crimes de guerra, uma mudança de regime no Kremlin — mas não devemos perder de vista o que é essencial: a soberania da Ucrânia, a proteção do direito internacional e a rejeição da impunidade.
É evidente que a paz é necessária, mais do que nunca até. Mas não uma paz que custe a verdade, que ignore as origens e as motivações desta guerra. Porque uma paz que perde de vista a justiça não é paz, é rendição disfarçada.