
A Europa da União Europeia não foi feita para se defender da guerra. Nem para se armar. E menos ainda para combater. Pelo contrário. Até ganhou um Prémio Nobel por isso. Mas aquilo para que a Europa foi feita precisa agora de ser protegido de uma maneira que nunca pensámos ser necessário. Sobretudo depois de 1989.
Tudo na Europa, das prioridades ao dinheiro que há, tem de ser repensado. Não se responde ao que está a mudar no Mundo, e no nosso principal aliado das últimas oito décadas, com os mesmos instrumentos, as mesmas políticas, ou sequer as mesmas instituições ou alianças. O que temos e o que pensámos recentemente, como o Compasso Estratégico, está desactualizado. E, no entanto, não há tempo para fazer outras instituições. Será preciso fazer diferente com a Europa que há.
A Europa, feita para garantir a paz entre os inimigos da Segunda Guerra Mundial através da prosperidade, foi sendo alterada para cumprir as funções que os Estados membros iam achando útil, necessário ou inevitável passar da soberania nacional para a soberania partilhada e limitada. E foi ganhando poderes próprios, num processo de quase profecia autorealizável. Agricultura, comércio internacional, moeda única, fundos para a coesão e para a inovação. Integração. Mas nada a preparou para isto. E não serão umas quantas reuniões de Chefes de Estado e de Governo e alguma reorientação de milhares de milhões de Euros, como Von der Leyen anunciou a semana passada, que resolvem o problema. Mesmo que, para já, as duas coisas sejam necessárias.
Há poucas décadas seria impensável escrever que a Europa conta com a protecção nuclear francesa, deseja o rearmamento alemão, espera que os britânicos se aproximem, deseja que Itália se mantenha firme e que os turcos não se afastem. Tudo isto é praticamente o contrário daquilo que a Europa desejou, pediu ou esperou nas últimas décadas.
É verdade que os europeus foram displicentes, que se convenceram de que o seu softpower e os seus valores bastavam e lhes davam superioridade moral, e que a guerra não viria. E é verdade que essas convicções são parte da razão porque estamos onde e como estamos. Mas também é verdade que em parte essa escolha foi absolutamente consciente e desejada. Armar alemães e franceses, sob a ameaça russa e sem os Estados Unidos por perto não deu exactamente bom resultado das últimas vezes que se tentou. E, no entanto, é para onde caminhamos, sem fazer muitas contas aos riscos que podemos estar a correr.
Por estes dias, em Bruxelas e noutras capitais europeias, conta-se com grandes expectativas no investimento alemão em armas, confia-se que o desejo francês de liderar a Europa nos dê a sua protecção nuclear, e acredita-se que o Reino Unido, tendo as mesmas ameaças e assistindo ao mesmo abandono americano, de alguma forma regressará ao mundo europeu, como tem estado a acontecer.
Tudo isto é inevitável e indispensável, por agora. Mas os livros de História aconselham que tudo isto aconteça com cautelas.
Neste momento, as decisões que importam à Europa têm de ser tomadas pelos governos nacionais e pelos Estados membros. Não é à Comissão Europeia que cabe decidir quem tem que armas ao dispor de quem ou quem põe botas em que terreno, quando ou se for necessário. A transformação em curso põe em causa factores existenciais para os países membros da União Europeia. São os Estados e os seus cidadãos que têm de estar decididos. Pergunte-se aos países bálticos. Ou aos portugueses, com a sua cedência da base das Lajes aos americanos, numa lógica de aliança e confiança que o tempo pode vir a pôr à prova. O que está em causa é existencial e ninguém transferiu esse nível de soberania para a União Europeia. E, no entanto, a História diz que é agora que devemos evitar os riscos futuros.
As decisões transformadoras têm de ser tomadas pelos Estados membros. Mas as instituições criadas pelo processo de integração e o método de negociação e compromisso são parte das garantias da nossa paz. As lideranças europeias terão de descobrir como equilibrar este momento profundamente nacional com a necessidade de uma estrutura europeia, estável, aceitável e à prova das próximas crises. Será necessário reinventar a Europa, sem perder o que temos nem correr riscos que a História ensina serem perigosos. Caminhamos com pressa sob gelo demasiado fino.