Entre as muitas decisões que Donald Trump já tomou sobre a sua próxima administração, uma das mais surpreendentes, mesmo entre os conservadores que o apoiam, é a opção de nomear o congressista e seguidor fiel Matt Gaetz, que está a ser investigado num caso de abuso de menores, para ser o procurador-geral dos Estados Unidos.

O Presidente-eleito fez saber, ao longo da sua campanha, que o Departamento de Justiça sob a sua liderança iria travar os processos contra si, que, argumentou, tiveram motivações políticas. E prometeu também que iria investigar os grupos que o afrontaram desde que perdeu as eleições de 2020, chegando a ameaçar a imprensa e alguns opositores políticos. Para muitos meios de comunicação norte-americanos, a escolha de Matt Gaetz, um devoto defensor de Trump, que concordou com a prometida retaliação contra os adversários, evidencia uma prioridade à lealdade sobre a competência.

Segundo o site “Politico”, dentro do Departamento de Justiça o clima é tenso, com os funcionários mais velhos “petrificados” com o potencial vingativo do nomeado de Trump. “Isto é de doidos, é simplesmente chocante. Ele está ali por um motivo: levar a cabo a vingança [de Trump]. Estou certo que ele não tem uma grande visão para o futuro do departamento. Não consigo imaginar como é que isto não vai assustar ainda mais as pessoas”, acrescentou também ao site um advogado que trabalha há décadas no Governo norte-americano e que pediu para manter o anonimato por receio de retaliação.

“Não há justificação plausível para nomear alguém tão bajulador e tão ofensivo para uma posição de tamanha importância nesta democracia, exceto para ter um fantoche e ter alguém, como Gaetz demonstrou, que está disposto a fazer tudo o que Trump pedir”, avaliou Ty Cobb, um antigo advogado durante a anterior administração de Trump, ao “Politico”.

Gaetz nunca foi procurador – é, contudo, um devoto defensor de Donald Trump e das suas políticas ultranacionalistas. Mas o congressista já é um conhecido do Departamento de Justiça, que o está a investigar por alegadamente fazer parte de um esquema de tráfico sexual de raparigas menores de idade, com Gaetz a ser o suposto responsável pelo tráfico de uma adolescente de 17 anos. O comité de ética da Câmara dos Representantes começou uma investigação em abril de 2021, que ainda estava a decorrer, mas a demissão de Gaetz do Congresso – poucos dias antes da divulgação do relatório – e a sua nomeação para o Departamento de Justiça ditaram praticamente o fim do processo.

“Normalmente, nomear traficantes sexuais de renome para o cargo de segurança mais importante do país não é uma boa ideia”, atirou ainda Marc Short, antigo chefe de gabinete de Mike Pence, o vice-presidente que foi vilipendiado pelo ex-Presidente depois de recusar reverter o resultado das eleições de 2020.

Outro antigo oficial de justiça do primeiro mandato de Trump, que também pediu que a sua identidade fosse protegida, considerou a nomeação “terrível”. “O procurador-geral não devia ser um provocador. O problema com uma pessoa assim é que ele retira demasiado proveito do caos, e essas são as últimas características que se quer em alguém responsável pela aplicação da lei”.

Tanto a Axios como a BBC apontam reações semelhantes à nomeação de Matt Gaetz, incluindo palavrões e reações chocadas de outros congressistas. Mas o congressista tem aliados no Capitólio, em particular nas alas mais conservadoras do Partido Republicano, e a sua lealdade, para todos os efeitos, é muito elogiada pelos colegas, defendendo o partido e o líder em todas as suas atividades.

Na quarta-feira, reagindo ao anúncio, o ‘speaker’ da Câmara dos Representantes, o republicano Mike Johnson, disse que Gaetz era um “advogado de sucesso” e um “reformador”, que “vai trazer muito” para o cargo de procurador-geral. Já Trump garantiu que o congressista “vai desenraizar a corrupção sistémica no Departamento de Justiça” e “combater o crime e garantir a nossa democracia e constituição”.

Aos 42 anos, o jovem republicano tem um curso de Direito e trabalhou num escritório na Flórida, antes de saltar para a Câmara dos Representantes, para representar o 1.º distrito do estado. Foi eleito pela primeira vez em 2016 e reeleito outras três vezes – a sua saída vai mesmo obrigar à realização de uma nova eleição.

Nomeação será desafio ao poder de Trump no Congresso

Nas listas de potenciais membros da equipa de Trump na Casa Branca, o nome de Matt Gaetz foi sendo repetido mas estava longe de ser o favorito ao cargo. Os homens que muitos republicanos mais tradicionais tinham apontado para a posição eram o senador Mike Lee (antigo procurador federal e assessor no Supremo Tribunal) e o procurador-geral do Texas, Ken Paxton, ambos com mais experiência do que Gaetz, apesar de serem igualmente apoiantes de Donald Trump.

“Pensei que o pior que teríamos seria o Paxton”, disse um dos funcionários ouvidos pelo “Politico”, esperando que o organismo operasse como no primeiro mandato de Trump, com Jeff Sessions e William Barr, em que o departamento foi gerido por procuradores próximos de Trump, mas com experiência na área. Merrick Garland, o atual procurador nomeado por Biden, chegou a ser nomeado por Barack Obama para ser juiz no Supremo Tribunal.

A nomeação de Gaetz, contudo, não é uma certeza absoluta. Como congressista pelo estado da Flórida, fez parte do grupo de republicanos mais extremistas, que levaram à queda em 2023 de Kevin McCarthy como ‘speaker’ da Câmara dos Representantes – um escândalo que, pelo caminho, quase levou a confrontos físicos envolvendo Matt Gaetz no plenário. E antagonizou também a esquerda ao ter ajudado a organizar o comício do dia 6 de janeiro de 2021, que resultou na invasão ao Capitólio.

Essa animosidade contra Gaetz e a sua fraca popularidade na Câmara dos Representantes pode fazer da nomeação do antigo congressista da Flórida um processo menos certo do que se esperaria. Em publicações na sua rede social, a Truth Social, Donald Trump tem feito questão de recordar que os republicanos no Congresso estão debaixo de olho, e que a aprovação quase automática dos nomeados do próximo Presidente será o primeiro teste de lealdade a um Partido Republicano que, graças a Trump, detém todas as chaves do poder na América.

As escolhas feitas pelo Presidente-eleito têm em regra de passar pela aprovação do Congresso, mas Trump tem feito pressão para que sejam aprovadas durante um período de pausa do órgão legislativo (as chamadas “recess appointments”, em vocabulário político norte-americana). Numa publicação nas redes sociais, explicou que, sem essa "via verde", não será capaz de “confirmar as pessoas em tempo útil”. O novo líder da maioria republicana no Senado, John Thune, concordou com a ideia, mesmo que isso implique menor transparência.

Resta saber se, no caso de Matt Gaetz, os senadores republicanos vão-se mostrar fiéis ao movimento MAGA (“Make America Great Again”) ou se vão ter em conta a falta de experiência do congressista ortodoxo e o seu passado manchado por casos criminais. “Se ainda sobrarem pessoas a insistir na ideia de que isto seria praticamente como o primeiro mandato de Trump, em que quem mandava no departamento eram republicanos da velha guardas, essas pessoas ficaram agora dececionadas”, sublinhou o antigo procurador Jonathan Kravis.