Se a política fosse um salão automóvel, a visita de Friedrich Merz à Casa Branca seria o lançamento mundial de um novo modelo alemão, um híbrido de potência bélica e controlo tecnológico, pronto para enfrentar as curvas fechadas do mundo multipolar. Donald Trump, por sua vez, continua a preferir o muscle car americano: barulhento, dominador, pouco preocupado com as normas europeias. No circuito oval da geopolítica, o encontro entre os dois homens não é apenas um teste de tração, antes um embate entre dois estilos de condução. E ambos sabem que a estrada é perigosa, o asfalto instável, e o cronómetro já começou a contar.
A visita de Merz à Casa Branca, esta quinta-feira, marca o início formal de uma nova etapa nas relações transatlânticas. Não é um encontro cerimonial. É um momento de fricção estratégica entre uma América cada vez mais protecionista e uma Alemanha que decidiu, por fim, assumir o papel de motor político e militar da Europa. O chanceler chega a Washington não como suplicante, mas como co-condutor do Ocidente — pronto a acelerar, travar ou mudar de via quando e se necessário. E sabe que é necessário.
Desde o regresso de Trump à presidência, a tensão entre Washington e a Europa tem-se agravado. O Presidente voltou a aplicar tarifas punitivas a sectores-chave da indústria europeia — automóveis elétricos, aço, semicondutores —, sob o pretexto de proteger a soberania económica dos Estados Unidos. Além disso, temos a questão da NATO, que Trump voltou a colocar com toda a clareza.
Para a Alemanha, estas medidas são mais do que injustas: são um ataque frontal à espinha dorsal da sua economia exportadora. Merz sabe que o protecionismo americano não é capricho, mas estratégia coerente de relocalização industrial. Mas também sabe que aceitar este novo equilíbrio sem protesto seria o mesmo que travar a fundo numa autoestrada: um risco fatal.
Por isso, o chanceler traz consigo uma proposta arrojada: retomar a discussão de um acordo de comércio livre entre os Estados Unidos e a União Europeia. Um TTIP 2.0, reformulado, menos burocrático e mais adaptado aos desafios de 2025. Trump, que prefere negociações bilaterais onde possa impor as suas condições, receberá esta ideia com ceticismo, mas Merz não joga para agradar. Joga para afirmar uma posição, a de que a Europa não pode ser parque de estacionamento estratégico dos interesses americanos.
Este novo realismo alemão não se limita ao comércio. A dimensão militar é central. Com um orçamento de Defesa que se prepara para atingir os 5% do PIB, a Alemanha de Merz assume-se como potência armada, com ambição de tornar a Bundeswehr no maior exército da Europa e um dos mais sofisticados do mundo. A recente autorização concedida a Kiev para utilizar mísseis de longo alcance de fabrico alemão em território russo assinala uma mudança qualitativa no envolvimento europeu na guerra da Ucrânia. É um novo paradigma de dissuasão e um claro recado a Moscovo.
Ao mesmo tempo, Merz sabe que a guerra na Ucrânia deixou de ser apenas um conflito europeu e transformou-se num campo de testes para o equilíbrio de poder global. A resposta de Putin, cada vez mais agressiva, é acompanhada de uma diplomacia intensa no Sul Global, onde Moscovo e Pequim tentam apresentar-se como alternativas à hegemonia ocidental. Merz tentará convencer Trump de que abandonar a Ucrânia ou relativizar o conflito não só enfraqueceria a NATO como deixaria espaço livre para a penetração estratégica russa e chinesa em África, na América Latina e no Sueste Asiático. A guerra deixou de ser problema do leste europeu. É hoje uma questão de relevância ocidental.
Merz sabe que o conflito na Ucrânia não é a única frente de batalha. A crescente pressão americana para que os aliados se desvinculem economicamente da China será incontornável na reunião. Trump exige alinhamento total. Merz oferece convergência estratégica com pragmatismo. A Alemanha já começou a reduzir a sua exposição à China em sectores críticos, como baterias, semicondutores e telecomunicações, mas recusa uma Guerra Fria ideológica. O chanceler, com passado no sector financeiro americano e europeu, compreende que uma rutura abrupta seria não só contraproducente como perigosa.
Neste contexto, a visita a Washington é também um teste de nervos. Trump já demonstrou que gosta de transformar reuniões diplomáticas em reality shows com transmissão global. Foi assim com Volodymyr Zelensky, foi assim com Cyril Ramaphosa. Merz sabe que não pode cair na armadilha do espetáculo. Prepara-se com dossiês sólidos, mensagens calibradas e, sobretudo, a noção clara de que está em jogo muito mais do que a relação bilateral: está em causa a credibilidade de uma liderança europeia em construção.
Porque Merz não representa apenas a Alemanha. Representa uma nova geração de dirigentes europeus que se distancia tanto do federalismo lírico de Emmanuel Macron como da ambiguidade tecnocrática de Ursula von der Leyen. É um político da direita democrática, com visão estratégica clara e sem complexos em usar a linguagem da força. Um reformista com consciência geopolítica. Um pragmático com memória histórica.
A NATO, nesse novo quadro, deixa de ser uma associação de boa vontade para se tornar um consórcio militar funcional. A exigência americana de que cada membro invista 5% do PIB em Defesa já não é retórica, é o novo bilhete de entrada. E Merz, ao aceitá-la, não está a ceder à pressão de Trump. Está a preparar a Europa para sobreviver à sua ausência. Porque sabe que este segundo mandato de Trump pode, a qualquer momento, pôr em causa as garantias de segurança mais básicas. E que o relógio da autonomia estratégica europeia está a contar em tempo real.
Se esta visita correr bem, poderemos estar perante um novo eixo de entendimento transatlântico — mais duro, menos emocional, mas também mais eficaz. Se correr mal, será mais uma prova de que a Europa tem de aprender a conduzir sozinha. Com ou sem GPS americano.
No final, talvez possamos regressar à metáfora automóvel: Trump continua a preferir os motores em V8 e os atalhos. Merz aposta na engenharia de precisão, na autonomia elétrica e nos sensores de colisão. Um representa o passado glorioso do Ocidente industrial. O outro tenta desenhar o seu futuro. Que vença o melhor condutor. Porque o acidente já não é hipótese, antes cenário provável. E, neste jogo, não há airbag para o continente europeu.