Pouco mais de três meses depois da madrugada de 21 de outubro foi divulgada a acusação do Ministério Público (MP) sobre a morte de Odair Moniz no bairro da Cova da Moura, na Amadora. Além de acusar o agente da PSP de homícidio, o MP pede que seja suspenso de funções.
Na acusação do MP, a que a SIC teve acesso, é referido que o primeiro tiro atingiu a vítima no tórax e o segundo tiro na zona genital e perna direita. Mas há mais dados sobre aquela madrugada e até, "incongruências e inexatidões", que têm de ser investigadas.
Sabe-se agora que quando Odair caiu ao chão, o outro agente da PSP, com recurso a um bastão ”desferiu uma pancada no corpo", que “rolou e imobilizou-se na posição de decúbito dorsal”.
Mais: “Odair Patriky Moniz Moreno Fernandes morreu em consequência das lesões traumáticas toraco-abdominais, com atingimento do estômago e laceração aórtica, supra descritas e provocadas pelo primeiro projéctil disparado”.
Quantro ao arguido, o agente da PSP, o MP salienta que “sabia que a conduta de disparar, por duas vezes, a curta distância do corpo de Odaír Patriky Moniz Moreno Fernandes era apta a atingir o corpo deste".
"(…) sabia que se um dos projécteis atingisse zonas vitais do corpo de Odaír Patriky Moniz Moreno Fernandes tal acção era apta a provocar a sua morte e disparou o primeiro projéctil ciente da curta distância que os separava e consciente de que esse disparo podia atingir zonas vitais do corpo de Odaír Patriky Moniz Moreno Fernandes tendo em conta que apontou para o tórax e previu que pudesse daí resultar a sua morte”.
Ainda assim, prossegue o MP, e "admitindo a morte de Odaír Patriky Moniz Moreno Fernandes como possível, (…) o arguido quis desferir e desferiu disparos sobre aquele e conformou-se com a morte daquele".
Agressões antes de disparos fatais
Os dois policias tentaram prender as mãos de Odair para algemá-lo, mas conseguiu libertar-se. Foi atingido por um bastão e desferiu um pontapé nas costas de um dos polícias. Foi aí, de acordo com a acusação, que o arguido sacou da arma e efetuou dois disparos para o ar e ao tentarem imobilizar Odair envolveram-se num confronto fisico.
Odair atingiu polícia com um murro na cabeça e é aí que ocorrem os tiros fatais:
"Estando os corpos do arguido e de Odair próximos, a uma distância entre 20 cm. e 50 cm., o arguido, com o intuito de o afastar de si e poder imobilizá-lo de imediato, apontou em frente para a zona do tórax de Odair e disparou um tiro que atingiu este na zona anterior esquerda do tórax".
Punhal no local mas…
Quanto à arma branca que tanta discussão gerou, o MP confirma a existência de um punham no local mas não foi possível determinar se era ou não de Odair Moniz.
"Nas imediações do local onde o corpo de Odaír Patriky Moniz Moreno Fernandes caiu, próximo da viatura que ali estava estacionada, e cerca de dois (2) minutos após o corpo ter sido retirado encontrava-se e foi apreendido um (1) punhal com 25 cm de comprimento, 15 cm de lâmina serrilhada e cabo de 10 cm em plástico de cor preta, com as inscrições na lâmina "MACHO”.
Contudo, “o punhal (…) não revelou quaisquer cristas dermopapilares e não tinha vestígios biológicos em quantidade suficiente para obter um perfil de ADN”.
Investigue-se as “incongruências e inexatidões”
A acusação do MP, a que a SIC teve acesso, refere ainda que "no decurso das diligências de investigação realizadas, surgiu a suspeita de que o auto de notícia elaborado pela Polícia de Segurança Pública (PSP) padece de incongruências e de inexatidões".
"(…) uma das suspeitas que existe é, desde logo, quanto à autoria" do auto de notícia, porque "terá sido elaborado às 14:55 do dia 21 de outubro de 2024" pelo agente da PSP que disparou sobre a vítima. Acontece que, nessa “data e hora [o arguido] se encontrava a ser sujeito a interrogatório pela Polícia Judiciária, diligência que se iniciou pelas 14:40 e terminou pelas 18:00 do dia 21 de outubro de 2024 e teve lugar na DLVT [Diretoria de Lisboa e Vale do Tejo] -- PJ, em Lisboa”
Por isso, informa o MP, por despacho de 19 de dezembro de 2024, "foi extraída certidão para investigação autónoma destes factos".
A morte de Odair
Odair Moniz, cidadão cabo-verdiano de 43 anos e morador no Bairro do Zambujal, na Amadora, foi baleado por um agente da PSP na madrugada de 21 de outubro, no bairro da Cova da Moura, no mesmo concelho, distrito de Lisboa, e morreu pouco depois, no Hospital São Francisco Xavier, em Lisboa.
De acordo com a versão oficial da PSP, o homem pôs-se "em fuga" de carro depois de ver uma viatura policial e despistou-se na Cova da Moura, onde, ao ser abordado pelos agentes, "terá resistido à detenção e tentado agredi-los com recurso a arma branca".
A associação SOS Racismo e o movimento Vida Justa contestaram a versão policial e exigiram uma investigação "séria e isenta" para apurar responsabilidades, considerando que está em causa "uma cultura de impunidade" nas polícias.
Nessa semana registaram-se tumultos no Zambujal e noutros bairros da Área Metropolitana de Lisboa, onde foram queimados e vandalizados autocarros, automóveis e caixotes do lixo, somando-se cerca de duas dezenas de detidos e outros tantos suspeitos identificados.
Além do processo judicial, estão a decorrer na Inspeção-Geral da Administração Interna (IGAI) e na PSP processos de âmbito disciplinares.