Pedro Nuno Santos (PNS) deu, na passada semana, uma entrevista ao Expresso em que, sem calculismos, afirmou duas coisas simples a propósito da forma como Portugal recebe as pessoas de outros países que aqui se querem fixar e trabalhar.
A primeira, que irritou muitos dos anteriores governantes, diz respeito ao fim do que se convencionou chamar de “manifestação de interesses”; a segunda, a que diz mais aos portugueses de todas as idades e todas as classes – quem vive em Portugal tem de respeitar o nosso modo de vida.
Claro está, não foram poucos os que vieram sovar PNS. Uns, por terem culpas no cartório; outros, por não estarem a ver bem a realidade.
Não teria usado este espaço se não tivessem sido publicados dois textos relevantes de Eurico Brilhante Dias e de Rui Pena Pires nos quais estes meus camaradas parecem confundir os campos de análise e trazem para o debate um argumento que eu rejeito à cabeça – o Chega está a contagiar o PS.
Antes de entrarmos na análise do que disse PNS e das reações provocadas, importa ter bem ciente a nossa realidade enquanto povo.
Portugal é, ainda hoje, um país amplamente racista e xenófobo. Não vale a pena iludir as palavras, é mesmo assim. Esta circunstância resulta de muitos fatores, mas há dois que são centrais: 1º sempre estivemos num canto da Europa, encostados a um grande país de onde achávamos que não vinha bom vento nem bom casamento; 2º a nossa ida pelos mares criou uma História enormizada que consagrou uma espécie de bom branco (o luso-tropicalismo e o que está na base da nossa leitura sobre os “Descobrimentos”, ajudou a construir o português racista de hoje) que se considera em escala menor de “culpa” quando comparado com, por exemplo, os colonialistas ingleses ou holandeses.
As últimas cinco décadas não fizeram tudo o que importava fazer. Se realizarmos uma pesquisa de opinião sobre a diáspora humana, não chegaremos aos dois dígitos de respostas positivas quanto ao início da caminhada se ter situado em territórios africanos; se perguntarmos sobre o nosso império ultramarino, continuaremos a ter uma visão estapafúrdia que vai até à negação da nossa responsabilidade no comércio internacional de escravos, por exemplo. Os outros terão sido, sempre, piores do que nós.
Para esta realidade tão anacrónica contribuiu a esquerda portuguesa que pouco fez para mudar os programas das ciências sociais, ou pouco acertou na formação dos portugueses maiores que foram marcados pelo salazarismo.
Há um outro grande erro que é motivo de passagens nos grandes discursos de Estado - nós somos um povo do mundo.
Os portugueses de quinhentos, poucos, foram pelo mundo. Essa ida era decorrência da nossa impossibilidade de sobrevivência, mais do que qualquer outra circunstância. Com exceção da língua, fruto da influência da Igreja Católica, nada mais se fixou nos territórios onde estivemos. Mesmo o Brasil, que muitos dizem ser a nossa grande obra, não recebeu de nós um qualquer alforge de estruturas burocráticas que fosse decente. E não me venham com o legado de João VI porque isso é tudo visto pela pequenez dos nossos olhos.
A nossa emigração das décadas de 1960 e 1970 fez pouco pelo nosso empoderamento coletivo. Centenas de milhar de portugueses saíram, melhoraram muito a sua condição económica, colocaram os filhos na escola, garantiram uma reforma digna, mas não cresceram culturalmente, não ganharam asas no pensamento.
Tudo isto é demonstrado pelo facto de termos assistido a um crescimento extraordinário dos neossalazaristas nos círculos da emigração. Os filhos dos caseiros, se não lhes dermos um sentido para a vida coletiva, serão sempre piores que os antigos patrões.
Sobre esta realidade não se pode acusar o “venturismo” que é coisa recente. Mas deve apontar-se o dedo ao próprio PS por nas últimas três décadas, em que foi hegemónico na governação, ter mantido, por vezes até sustentado, as construções mentais do Estado Novo inventadas por António Ferro.
Durante muitos decénios, Portugal não foi um país atrativo para a imigração. Tal se revelava pelo facto de termos ainda muita mão de obra para fazermos face aos empregos menos qualificados que sempre foram, continuam a ser, muito mal pagos. Para acrescentar às necessidades, como foi o caso da Expo 98, vieram dezenas de milhar de cidadãos das antigas colónias portuguesas.
O século XXI veio mudar tudo. A aposta na formação dos jovens e a teimosia de muitos empresários em manter o salário mínimo como matriz, levou à saída, à procura de oportunidades no exterior. Tenho para mim que isso não é um problema em si mesmo, que os portugueses se devem lançar no mundo, cada vez mais pequeno, em que vivemos.
A crise, que atacou o nosso país entre 2008 e 2015, teve um efeito muito significativo em setores tão importantes como o turismo, a agricultura ou a construção civil. E logo a seguir veio a pandemia de Covid-19.
Vencida essa pandemia, a economia mundial acelerou, as injeções de recursos públicos na economia obrigaram à chamada de gente de fora, o nosso país apresentou, e apresenta, carências de mão de obra significativas.
Entraram centenas de milhar de pessoas que criaram novas realidades sociais e económicas e implicaram, sobremaneira, na vida dos que cá estavam, os tais que sempre tiveram medo do outro e a quem a democracia não abriu completamente os olhos.
Os diversos agentes políticos assistiram impávidos a esta chegada, não trataram de deixar claro que há uma obrigação de respeito mútuo. É aqui que PNS tem toda a razão – os portugueses não podem deixar de integrar e respeitar a cultura, a identidade, a vida de quem chega a Portugal, mas a reciprocidade é obrigatória. Quando se exige aos portugueses que tenham as suas filhas na escola até aos 18 anos, não se pode aceitar que haja em Portugal quem, fruto de uma determinada visão do mundo, rejeite tais obrigações.
Quem nega a existência de identidades fortes, quem afirma que a única coisa que importa é o respeito pela lei, demonstra uma profunda desconsideração pela antropologia, pela sociologia e até pela psicologia. A lei é muito menos do que as práticas e as tradições ancestrais de um povo. Os valores, as ideias, os mitos, as festas populares, as danças, o modo de vestir, a alimentação, não são determinados a régua e esquadro.
Pena Pires é arrojado quando refere que PNS terá reivindicado que os imigrantes têm de ser como os portugueses. Pires deveria saber que no PS nunca se reivindicou que os transmontanos fossem como os alentejanos, nem que os madeirenses fossem como os minhotos, quanto mais agora que os que vêm sejam como os que cá estão.
Mas tivemos mais.
Brilhante Dias foi desatento porque não quero dizer que foi ardiloso. Em vez de separar as coisas, misturou-as. PNS não identificou um problema no SNS provocado pelos imigrantes; não referiu qualquer problema na segurança pública provocado pelos imigrantes; não indicou qualquer problema na falta de emprego provocado pelos imigrantes. Falar da manifestação de 11 de janeiro, em que o que estava em causa era mesmo o ato insano de desumanidade provocado pela PSP, é mesmo misturar imigração com segurança e isso não é aceitável num socialista.
A esquerda, em especial a esquerda democrática, cansou-se de ter um papel pedagógico sobre a imigração. Isso decorre do facto de muitas das pessoas que tratam do tema se limitarem à análise das estatísticas e sem qualquer visão da realidade.
Pessoalmente rejeito, desde a nossa adesão à CEE, que os portugueses sejam emigrantes em qualquer país da Europa integrada, como também rejeito que os cidadãos do espaço da União, e residentes em território português, sejam imigrantes.
Olhando para os mais recentes indicadores, tínhamos em Portugal 1.044.238 cidadãos de outros países, sendo que destes números devem sair os 21,7% de cidadãos de pleno direito da União Europeia. A estes até podemos somar 8,3% do Reino Unido e 5,7% da Ucrânia, perfazendo 35,7%
Mas o tal Portugal universal de (e)imigrantes que muitos reclamam, também deveria ponderar a nossa realidade de falantes da língua de Camões. Os países que proferem em português não deveriam ser sujeitos a uma leitura tão tosca e desumana das estatísticas e deveriam ser tratados, em todos os estudos, de forma mais delicada. O Brasil (28,9%), com Cabo Verde, Angola, Guiné e S. Tomé e Príncipe somavam, em 2023, 41,7% dos cidadãos registados que não tinham a nacionalidade portuguesa.
Temos assim, da Europa e dos países de língua portuguesa, mais de dois terços na estatística da imigração em Portugal, circunstância que é em tudo diferente da maior parte dos países da Europa.
Olhando agora para a imigração do subcontinente indiano, podemos concluir que esta representa um pouco mais de 9%, cerca de 75 mil pessoas. Mas há aqui uma realidade que deveria levar muita gente, que fala no tema, a refletir – os cidadãos provenientes da Índia, Nepal e Bangladesh, a desempenham os trabalhos menos visíveis, foram responsáveis, em 2023, por 270 milhões de euros em contribuições para a Segurança Social, logo a seguir ao Brasil. Os europeus são mais, mas os “orientais” pagam, em impostos e contribuições, incomensuravelmente mais.
Os discursos inflamados não tocam estes números simples e cristalinos e a esquerda democrática perde por não os usar, deixando o debate à guerrilha dos extremos.
Troquemos agora por miúdos o impacto da “manifestação de interesses”. A lei nasceu em 2007 e teve quinze alterações até hoje. Em 2008 e 2009 iniciou-se a grande crise nos Estados Unidos que alastrou por todo o mundo. Em 2010, Portugal aceita intervenção externa e entra numa profunda crise. Entre 2013 e 2017 quase não há entradas de novos imigrantes. Em 2018 há um crescimento de cerca de 80 mil registos.
Entre 2019 e 2022, durante o período da pandemia, verifica-se uma entrada anual menor, uma média de 64 mil cidadãos por ano. Mas é o número que se apresenta imediatamente que deve colocar os poderes públicos em alerta – entre 2022 e 2023, só num ano, entraram 262.991 imigrantes com “ficha aberta” no SEF.
Será fácil antecipar que há aqui um problema. A este ritmo tudo se descontrolará.
Há quem diga que a “manifestação de interesses” não teve “efeito de chamada”. Quem faça o caminho entre o bairro da classe média alta e o gabinete de uma universidade talvez não o sinta, mas quem vive em vilas ou cidades médias sabe que há um nítido efeito de chamada e quem vive nas empresas sabe, ainda melhor, pela abordagem que é feita pelos que chegam sem qualquer ideia do que aqui estão a fazer. E que tal uma conversa com os autarcas do Algarve?
A somar à falência do regime que vigorou até há pouco, há ainda a realidade a que não podemos fugir. A forma como foi extinto o SEF e como nasceu a AIMA arrumaram com o já residual valor da “manifestação de interesse”.
Em 27 de outubro de 2023, José Luis Carneiro,na altura Ministro da Administração Interna, dizia ao Observador que havia 300 mil manifestações de interesse pendentes no SEF. E dizia ainda: “As manifestações de interesse não concedem, nem conferem qualquer direito. São cidadãos que se encontram, por vezes, em vários países da Europa ou em outra parte do mundo e que vão e dizem que têm a intenção de vir para Portugal e querem obter uma autorização de residência.”
Nada melhor do que uma afirmação de Carneiro para contrariar Carneiro que, na sequência das afirmações de PNS, traçou vestes a favor da “manifestação de interesses.” Na voz de Carneiro o mecanismo era usado de forma astuciosa, como tentativa de entrar em Portugal, como elemento para driblar as autoridades de um país de Schengen.
Retorno a Pena Pires. Diz ele: “Se o secretário-geral queria muito criticar os governos de António Costa, tinha bom remédio: apontava a crítica à persistência do problema dos vistos, o qual teve como efeito transformar o que devia ser um mecanismo supletivo, a “manifestação de interesse”, no mecanismo principal de regulação da imigração. Ou seja, defendia a necessidade de oferecer aos imigrantes um sistema de entrada e fixação legal em Portugal. Escolhendo, em vez disso, apontar à “manifestação de interesse”, o único mecanismo que funcionava, confundiu a sua posição com a tese da direita sobre a “imigração a mais”.
Pires não consegue entender que podemos desenhar o melhor regime do mundo, mas que, se a sua operacionalização não funcionar, este deixa de ter valia. Mas também não consegue entender que a “manifestação de interesse” foi sempre, desde 2007, o mecanismo principal de regulação da imigração e não um mecanismo supletivo. Passaram dezoito anos… E não consegue ainda entender que o líder do PS é estruturalmente socialista e a acusação de que ele considera que temos imigração a mais é mesmo uma provocação.
Depois de todas estas vindas a público só importa rejeitar a consideração de que PNS se deixou contagiar pelo discurso à sua direita sobre imigração. Há camaradas que ainda não viram o filme todo. Quando o virem, irão pedir absolvições ao líder do PS pela impertinência como o estão a tratar nesta matéria. Já o critiquei muitas vezes, mas nesta só o posso elogiar.