Domina a linguagem, as subtilezas e a malandrice; características necessárias na arte de fazer humor. Em 2021, ao lado do amigo Ricardo Araújo Pereira, trouxe a Portugal “Um Português e um Brasileiro entram num bar”, uma conversa sobre a língua portuguesa e outros assuntos que unem e afastam Portugal do Brasil. No Humor À Primeira Vista, com Gustavo Carvalho, contou como passou a encarar o que escreve depois de ter reconhecido o seu erro no sketch “Travesti”, da “Porta dos Fundos". Mostrou-se totalmente contra a proibição de certos assuntos no humor, mas ressalvando que não se deve confundir a liberdade com a falta de cuidado. Defendeu, ainda com Bolsonaro na presidência, que como o Brasil “tende tão claramente para o fascismo”, quem faz humor tem uma “obrigação em falar de política”.

João Pedro Morais

Achas que a "Porta dos Fundos" consegue chegar tanto ao público brasileiro que ainda consome mais televisão como a um público mais de nicho?

Acho que esse é o grande objetivo. Você conseguir fazer rir pessoas de idades, campos, mundos e classes diferentes. Mas no Brasil é um pouco mais difícil porque vivemos num país realmente fraturado. Por ideologias diferentes, por todo o tipo de fraturas, sobretudo políticas, mas também sociais. E isso reflete-se no humor. As pessoas não consomem o mesmo. Portugal inteiro vê o programa do Ricardo [Araújo Pereira]. O "Isto é gozar com quem trabalha" é o programa mais assistido de Portugal. E não estou a fazer merchandising da SIC, não é por estar aqui. O programa mais assistido do Brasil não vou saber qual é, mas certamente não é um programa de humor político, progressista, de esquerda. Essa é uma grande diferença. Eu não comunico com a população brasileira. Quem comunica de verdade com o Brasil profundo são os comediantes mais despolitizados. Não são nem “bolsonaristas”, eles não falam de política. Têm medo de perder contratos milionários, ou medo de perder o público que apoio Bolsonaro. Tendem a não ser politizados por uma questão de mercado. 

Achas que eles deviam tentar abordar mais esses assuntos?

Claro. Eu acho que é uma obrigação falar de política quando se mora num país que está a tender tão claramente para o fascismo. Não é uma questão de preferência. "Eu gosto de verde, o outro gosta de amarelo." Alguns falam isso, não é? "O que seria do azul se não gostassem do amarelo?" Se o azul for um fascista genocida é melhor que ninguém goste dele, é melhor que se fale disso. Comparar um sujeito com uma cor tão inofensiva quanto o azul ou o amarelo é uma coisa muito estúpida. Muito falsa sobretudo. Não tem a ver com isso. Sabem que ele é abjeto, mas acreditam que podem perder dinheiro, ou público, ou que os vão xingar nas redes sociais. As pessoas morrem de medo de ser xingadas nas redes sociais.

Li recentemente numa entrevista à revista Sábado que achas fascinante a questão dos limites do humor. Também vi que disseste à GQ que antes achavas que o politicamente correto era um entrave e que podia ser um gesto de coragem fazer certas piadas. Mas que viste que a coragem não é isso. Dizes: "A coragem não é ser racista. Não tem coragem nenhuma em perpetuar opressões milenares". Achas que uma piada só é racista na sua essência se for levada a sério e não for entendida como uma piada?

Eu acho que não existe nada a princípio obrigatoriamente racista na essência. Sempre se tem de colocar em contexto. O Dave Chappelle quando faz piadas sobre negros está a ser racista? Eu acho que não, não só por ser negro, mas porque ali tem obviamente uma ironia por trás. É ótima a sua pergunta. Eu acho que o racismo e a homofobia têm muito a ver como a maneira como é percebida na sociedade. Acho que tem uma coisa especialmente perigosa no Brasil, que é diferente de Portugal. Aqui vive-se numa sociedade em que as coisas estão mais conquistadas, o estado de direito e a democracia estão mais conquistados. Mesmo a direita vai falar nos valores de abril. Em 1974 Portugal parou e disse assim: "Aquilo ali era uma merda. Vamos concordar que aquilo é muito ruim? Vamos seguir em frente?" Tem uma velha piada de um rabino que foi parar numa ilha deserta e que construiu duas sinagogas, cada uma de um lado da praia. Trinta anos depois foram buscá-lo e estava lá sozinho com duas sinagogas. "Só uma pergunta, em trinta anos, porque é que você fez duas sinagogas?" Ele falou: "Porque naquela lá eu não vou.” Tem algo sobre isto em Portugal em relação ao regime salazarista. Vocês não sabem o que são nem o que querem ser como país, mas a imensa maioria da população concorda que naquele lado vocês não vão. O Brasil não chegou a esse consenso, não houve esse consenso de que a ditadura militar era ruim. Não há um consenso de que tortura é ruim. Então, você fazer uma piada onde há consenso é uma coisa, fazer onde não há é outra. Eu acho que no Brasil o racismo é uma chaga e uma ferida muito aberta ainda. O racismo existe talvez igual ou mais forte que em Portugal, mas o essencial é que lá mata milhares de pessoas por ano e encarcera. Quinhentas mil pessoas negras estão presas. Você vai fazer piada com isso? Boa sorte, vai ser muito difícil você conseguir ser engraçado sobretudo. Independentemente de ser crime ou não, acho que você não vai conseguir ter graça. 

João Pedro Morais

O simples facto de fazer uma piada sobre isso já causa algum confrangimento, é isso? Basta mencionar?

Não, aí é que está. Eu sou completamente contra a proibição de assuntos, acho que não existe nada que seja tabu, não existe palavras que sejam tabus. Não existe nada que deva ser proibido, só que tem temas que são muito difíceis. Se você vai fazer uma piada sobre o holocausto... é dificílima, não é impossível. Tem uma piada judaica famosa maravilhosa sobre isso. O judeu morre, vai para o céu e Deus fala para ele: "Você ficou contando piadas sobre o holocausto? Você vai para o inferno.” E o judeu fala: "Claro que eu contei, elas são engraçadas." Deus diz: "Não têm a menor graça. Quer ver? Conte aí para mim." O judeu conta a piada sobre o holocausto e Deus não acha graça. Aí o judeu fala: "É, eu acho que você tinha que estar lá." Tem terrenos que tornam as piadas muito difíceis, não significa que elas sejam proibidas. Significa que são muito difíceis. O "Porta dos Fundos" tem sketches muito bons sobre racismo. Mas muito difíceis porque volta e meia a gente esbarra...

E geram normalmente muita discussão quando estão a escrever esse guião, suponho...

Muita discussão. A gente briga, tem de ter muito cuidado mesmo. Porque às vezes as pessoas confundem a liberdade com a falta de cuidado. É o contrário inclusive.

Em 2015 foste criticado por um sketch da "Porta dos Fundos" chamado "Travesti". Reconheceste o erro e pediste desculpa. Depois de se dar um caso em que te apercebes de que o outro lado está certo, como é que passaste a percecionar o teu trabalho?

Eu tento não me policiar muito, porque acho que no humor é melhor pedir desculpas do que pedir licença. O humor não tem de ficar pedindo licença: "Com licença, agora vou fazer uma piada sobre travesti. Gente, alerta de gatilho"

Até porque quebrava completamente os ritmos.

Não ia ter graça para ninguém. Acho que o humorista não pode pedir licença. Agora o ideal é que você interiorize esse conhecimento de autoridade das pessoas, a ponto de não precisar de se censurar. Apenas não fazer mais essa piada. Essa piada sobre travesti me levou a ler mais sobre o assunto, me levou a conversar, a ver entrevistas. E essas piadas não viriam mais porque não seriam mais verdadeiras para mim. Eu acho que isso é o essencial. Você não tem de chegar num ponto em que você se censura, mas tem de chegar num ponto em que entende melhor as realidades.

Fotografia de José Fernandes; Design de Tiago Pereira Santos

Gustavo Carvalho entrevista pessoas para quem a comédia é paixão e profissão. Por vezes abre a porta a conversas sobre outros temas culturais que o entusiasmam, seja sobre teatro, música, digital, televisão ou cinema. A comédia, a arte e a cultura que estão para acontecer, todas as terças-feiras no Humor À Primeira Vista. Oiça aqui mais episódios: