Em exposição pela primeira vez vai estar uma carta em que parece reconhecer a homossexualidade de uma das suas personagens, Miss Wade em "Little Dorrit", e outra missiva onde pede apoio a uma adolescente prestes a entrar para um refúgio para mulheres sem-abrigo que ajudou a fundar.

Os responsáveis do museu acreditam que a primeira missiva, em resposta a uma sugestão de semelhanças entre Miss Wade e uma das personagens da autora Amelia Opie, contém uma referência à comunidade LGBTQ+. 

Em "Little Dorrit", Miss Wade forma uma forte amizade com Harriet Beadle e a sua relação pode ser considerada romântica, contrariando as leis e restrições sociais da época.

"Observei Miss Wade na vida real (como me atrevo a dizer que a senhora Opie observou o seu cavalheiro) e sei que a personagem é verdadeira em todos os aspectos", responde Dickens ao interlocutor, sugerindo que estava consciente da situação. 

A biógrafa e tetraneta do autor, Lucinda Dickens Hawksley, admite que o comentário é bastante indireto, "devido ao tipo de leis e costumes sociais da época, mas parece-nos que estão a falar de uma personagem LGBTQ+, e que Dickens garante que a sua personagem é real". 

"Uma coisa que eu penso ser fascinante no trabalho de Dickens, e a razão pela qual continua a ser tão apreciado ainda hoje, é que ele mostra [no seu trabalho] pessoas de todos os quadrantes, personagens de diferentes classes sociais, e Dickens estava claramente consciente do mundo LGBT+, mesmo que não o expressasse dessa forma e fosse um pouco circunspecto por causa dos costumes da época", afirmou à Agência Lusa.

Noutra carta também inédita, Dickens pede, à diretora, roupas para uma rapariga de 16 anos que estava prestes a ingressar em Urania Cottage, um refúgio para mulheres sem abrigo, incluindo prostitutas, que fundou com amiga filantropa Angela Burdett-Coutts em 1847.

Ambas as cartas refletem o caráter de ativista social, que escrevia ou falava frequentemente em apoio a causas e instituições como o Hospital para Crianças Doentes ou legislação que pretendia proibir atividades de lazer ao domingo, afetando sobretudo os mais pobres. 

As cartas, adquiridas em 2019, contribuem para "confirmar coisas de que pensávamos já precisar, mas para as quais talvez não tínhamos muitas provas", vincou Hawksley.

Entre as 100 peças simbolicamente escolhidas para esta exposição, que permanecerá até 29 de junho, encontra-se também um delicado retrato de Dickens enquanto escrevia "Um Conto de Natal" redescoberto coberto de bolor na liquidação de uma casa na África do Sul em 2017, depois de ter estado perdido durante 174 anos.

A pequena pintura, da autoria de Margaret Gillies, estava desaparecida desde 1886 e foi readquirida há seis anos após uma campanha de angariação de fundos. 

A casa-museu, situada no número 48 da rua Doughty Street, foi onde o escritor (1812-1870) viveu em Londres de 1837 a 1839, período durante o qual terminou "Os Cadernos de Pickwick" e redigiu "Nicholas Nickleby" e "Oliver Twist". 

Perante o sucesso literário e crescimento da família, Dickens mudou-se, mas em 1923, já depois da morte do autor, a propriedade foi adquirida por um grupo de admiradores e reaberta em 1925 como museu. 

O edifício de cinco andares mantém as mesmas divisões, a maior parte das lareiras, portas, fechaduras, portadas de janelas, acessórios e até o lavadouro da época vitoriana onde, durante o Natal, era cozinhado um bolo tradicional. 

O interior está decorado com mobília, quadros, documentos, objetos pessoais e milhares de outros artefactos, incluindo uma cópia do livro "David Copperfield" levado para a Antártida pela expedição do Capitão Robert Scott, em 1910. 

Abrigada numa caverna de gelo, a tripulação leu um capítulo durante sessenta noites, deixando o livro enegrecido com as impressões digitais devido ao manuseio de lâmpadas de gordura de foca na época.

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Lusa/fim