Josué começou a revelar muito cedo uma invulgar capacidade de aprendizagem e uma sede infinita de conhecimento. Com 11 anos afirma, com convicção, que quer seguir a carreira de astrofísico.

“Eu quero descobrir planetas, quero descobrir astros, quero fazer descobertas chocantes para a astronomia. Gostava de quebrar as leis da termodinâmica. E porque leis da termodinâmica? Porque não me deixam fazer o que eu quero! Eu quero meter um humano a voar sem asas, ser um jetpack, sem um avião. Voar naturalmente como um pássaro voa, só que sem asas. O que é que a termodinâmica me diz? Não, isso é contra as leis da física. Como sou um homem de ciência, eu não acredito que será que isso seja possível. Eu quero, quero quebrá-las!"

Josué tinha 8 anos quando recebeu o diagnóstico de sobredotação. A mãe recorda um dos primeiros sinais de alerta: “Ele começou a praticar futebol e parava a meio do jogo, parava literalmente, para analisar os lances e as consequências que podia ter com todos os movimentos que pudesse fazer naquele momento. Éramos nós lá fora a dizer: ‘Anda Josué!’ E ele dizia ‘Calma!’.”

Apesar de reconhecer o privilégio do filho ter altas capacidades cognitivas, Helena Pinto confessa que há não é fácil ver que Josué sofre por, muitas vezes, se sentir incompreendido e diferente.

“É como se tivesse duas pessoas: o adulto e a criança. E às vezes colidem. Ninguém sabe o que nós passamos quando ele tem uma crise de hipersensibilidade e temos aqui a chorar e ele a argumentar e nós a contra-argumentarmos. É difícil ouvimos um filho dizer que não quer ser diferente: Ele dizia muitas vezes ‘Mãe, eu não quero ser diferente, quero ser igual aos outros meninos’. E, no entanto, olham para nós: Ah, é tão inteligente, sabe sempre tanto!"

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Com 2 anos, Leonor Lopes já sabia ler e fazia contas de multiplicar e dividir. Hoje, adolescente, não esquece as dificuldades que teve de enfrentar nos primeiros anos de escola. “Viam-me como se não fosse normal, como se eu fosse literalmente uma anormal e tratavam-me dessa forma mesmo. Eu pensei isso de mim durante muito tempo. Foi mesmo muito difícil”, refere Leonor.

“Ela teve uma crise de pânico na porta do colégio. Telefonei ao pai e lembro-me perfeitamente das palavras: “A nossa filha acabou de ter uma crise de pânico aos dois anos”. Como deve imaginar, como mãe, tão frustrada comigo própria que eu só queria saber o que é que se passava com ela."

O pedido de antecipação escolar que os pais de Leonor apresentaram ao Ministério da Educação foi concedido, mas a entrada da filha no 1º ano representou “um choque”, diz a mãe , porque a minha filha com quatro anos, vestia roupa de dois. Os amigos dela eram o triplo dela.” E lembra que a filha não tinha amigos “Aconteceu certa vez, numa festa de anos, ela ter convidado a turma inteira e ninguém aparecer.”

Mesmo tendo antecipado a entrada no 1º ano, Leonor atingiu rapidamente um nível de conhecimento mais avançado em comparação com o resto da turma e esse desfasamento refletiu-se na saúde. “Cada vez que me começava a sentir saturada na escola, eu ficava doente, mas doente mesmo. Eu deixava mesmo de conseguir respirar”, diz Leonor.

A psicóloga clínica Cláudia Falco explica estas reações: “É como se o corpo estivesse a mostrar ansiedade que eles não estão a conseguir verbalizar. É muito frequente o vómito, dores de cabeça, podem ser febres também. Sentem-se muito desconfortáveis com a escola, muito ansiosos e desenvolvem mesmo uma fobia.”

"Eu queria aprender, não queria aprender como a escola me ensina. Começamos por aí. A escola tem o método da repetição, que é massacrar os alunos com matéria até entrar na cabeça deles. E eu não preciso disso. A partir do momento que me começam a repetir a matéria, eu desligo completamente e pode ter a certeza que vou errar tudo. Durante muito tempo foi: ‘Leonor, olha para ficha, está cheia de erros, tu não sabes isto, vais voltar a fazer’.”

Ana Almeida, psicóloga da ANEIS, a Associação Nacional para o Estudo e Intervenção na Sobredotação, refere que “os alunos com desenvolvimento típico precisam de sete a oito repetições para acomodar a informação, enquanto que os alunos sobredotados necessitam de apenas uma a duas.”

A vontade voraz de Margarida de saber mais tem vindo a abrandar ao mesmo ritmo que cresce a preocupação da mãe.

“A Margarida ainda não tinha completado dois anos, e sabia o abecedário completo. Quando eu percebi que ela estava a estagnar e até regredir, isso alertou -me muito."

“Eles chegam ao ponto em que se anulam para se sentirem quase iguais aos colegas”, diz a psicóloga clínica Ana Almeida, e alerta: “Se os filhos procuram mais conhecimento, não deixem de dar. É diferente de não estarmos a forçar o estímulo. Nestas crianças, eles procuram o estímulo.”

O neurocientista Miguel Castelo Branco alerta: “nós podemos nascer com um dom, mas se não o cultivarmos ele vai-se esbatendo.”

“A inteligência vem de um cocktail de condições, genéticas mas também do ambiente. O QI não vai prever o desempenho, o grau de sucesso que a pessoa vai ter na sociedade. Há pessoas que têm um potencial enorme para ter grande desempenho académico, mas se não tiverem o ambiente certo, esse desempenho não vai ocorrer.”

Hugo
Hugo SIC

Hugo Palma reconhece que teve muita sorte em ter sido bem acompanhado desde cedo: “Cresci numa família muito que me deu muita liberdade. Depois, pelo facto de ter frequentado escolas mais pequenas, sempre tive um acompanhamento muito próximo e muita compreensão.” Hoje, com 41 anos, dois filhos e formado em engenharia aeronáutica, divide-se pela mão cheia de empresas que fundou e gere. Ser guia de montanha, mais do que um dos muitos trabalhos que faz, é, para Hugo Palma, uma garantia de equilíbrio. “Sempre tive e sempre tive a minha mente a mil. Vivia num grande frenesim, muito ansioso. Ir para a natureza fazer coisas, fazer coisas simples, acaba por nos trazer paz”, refere o empresário.

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É na música que Guilherme encontra um refúgio para a ansiedade que enfrenta na escola. “Faz-me sentir muito bem quando estou a tocar.”

Os pais lamentam a dificuldade dos professores em reconhecer casos de sobredotação e a falta de acompanhamento adequado. Recordam que foram chamados à escola porque o filho não conseguia estar concentrado e quieto. Levaram-no a uma consulta de pedopsiquiatra e diagnóstico que receberam foi o de perturbação de hiperatividade e défice de atenção. Mas a avaliação psicológica que Guilherme fez a seguir acabou por revelar sinais de altas capacidades cognitivas.

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Em Portugal, não existem dados oficiais sobre o número de alunos com diagnóstico de sobredotação. Restam as estimativas europeias, que apontam para 3 a 10 % da população escolar, mas maioria não está identificada ou está mal diagnosticada. Outros não encontram a resposta que precisam, apesar da lei garantir uma educação inclusiva que visa assegurar um ensino ajustado às necessidades e potencialidades de cada aluno.

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“Quando obtivemos este diagnóstico, procuramos ajuda na parte escolar, e a resposta que obtivemos foi que não tinham capacidade de resposta para situações como o caso do Gui, de sobredotação, que já às vezes os recursos eram poucos para poder dar resposta mesmo às crianças com algumas dificuldades, portanto se não conseguimos dar resposta às crianças que têm mais dificuldades, muito menos este tipo de crianças.”

As famílias exigem que a lei passe da teoria à prática e que seja mais flexível na progressão escolar, como acontece, por exemplo, na Bélgica ou nos Estados Unidos. Em Portugal, um aluno que revele uma capacidade de aprendizagem excecional e um adequado grau de maturidade pode saltar de ano duas vezes, mas a legislação impõe como limite o final do ensino básico.

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Para o presidente da ANEIS, esta limitação até ao terceiro ciclo, não faz sentido. “Os alunos podem e devem fazer acelerar o percurso escolar no ensino secundário e há casos que era importantíssimo para eles fazer este avanço de ano escolar!”, refere Alberto Rocha.

Na Escola Básica Vallis Longus, em Valongo, Josué saltou do 4º para o 6º ano amparado pela família, pela psicóloga e pelos professores. É a prova do tanto que é possível alcançar quando tudo se alinha na direção certa.

“A direção da escola está a agir muito bem”, elogia Josué, “porque é a primeira vez que um aluno como eu é diagnosticado e eles estão a ser muito bons a tratar deste progresso que eu tenho.”

“Não podemos deixar, só porque é acima, deixar cair, para depois até desmotivar e ser um aluno com dificuldades. Quando se fez os horários e a alocação de salas às turmas, houve a preocupação de este 6º e este 5º ficassem no mesmo pavilhão, o que permite que ele neste momento tanto brinque nos intervalos com os de 6º como como os de 5º, portanto, permite-lhe continuar esta ligação às duas turmas em termos emocionais.”

“Ele conseguiu concluir o primeiro ciclo com sucesso e emocionalmente estabilizado, feliz e a acreditar que valia a pena ser como era. Ele nunca perdeu a essência dele!”, exclama, com satisfação, a mãe de Josué. E incentiva as famílias com crianças sobredotadas a não desistirem de procurar ajuda.

Ficha técnica

Jornalista: Catarina Marques
Imagem: Hugo Neves
Edição de Imagem: Rui Félix
Grafismo: Isabel Cruz
Drone: 4kfly
Arquivo: AP; Reuters
Produção Editorial: Diana Matias
Colorista: Jorge Carmo
Pós-produção áudio: Octaviano Rodrigues
Coordenação: Miriam Alves
Direção: Marta Brito dos Reis; Bernardo Ferrão