A Patrícia é uma colaboradora com deficiência visual que tem vindo a utilizar a sua experiência tanto pessoal como profissional na Critical Software para aprofundar os temas do recrutamento inclusivo e desmistificar alguns preconceitos e “medos” existentes em relação aos profissionais com deficiência. Apesar de ser um tema cada vez mais debatido nas empresas, faltam exemplos de boas práticas mais focadas no talento dos profissionais e na vontade de diversificar equipas de forma genuína e não para preencher quotas, uma temática que é muitas vezes confundida com responsabilidade social.

O SAPO falou com a Patrícia no âmbito do Dia Mundial da Pessoa com Deficiência.

Como é que ser cega influenciou positiva ou negativamente os seus estudos?
Fiquei cega aos 14 anos, o que me obrigou a reaprender competências básicas a meio do meu percurso escolar, como a leitura e escrita em braille, informática, orientação e mobilidade. Na escola regular, eu diria que não foi a minha condição que influenciou negativamente os meus estudos, mas sim o sistema, que nem sempre respondia em tempo útil. Por esse motivo, e apesar de ter tido reabilitação nestes domínios, muitas vezes, tive de estudar com um ritmo mais lento com manuais diferentes dos meus colegas e mesmo sem estes por não chegarem a tempo dos exames, arriscar trajetos sozinha e contar com o apoio de amigos e conhecidos na informática.

Por outro lado, essa necessidade fez com que eu desenvolvesse mais cedo um grande sentido de resiliência, autonomia e independência. Descobri uma capacidade de adaptação e de olhar para dentro de mim que desconhecia ter. Além disso, houve um processo de luto pela perda da visão que foi preciso enfrentar. Não é suficiente ter uma bengala na mão e manuais em braille na mochila, ou alguém que te diz: “Vamos, pessoa x também cegou e conseguiu”. Essa pressão não ajuda, pelo contrário. É preciso tempo, e cada um terá o seu ritmo, contexto pessoal e familiar para encarar uma nova realidade.

Na faculdade foi diferente?
No ensino superior, os desafios foram ainda mais evidentes. Não existe a obrigatoriedade de apoios para pessoas com deficiência, mas algumas instituições incluem no seu regulamento apoios para alunos com necessidades específicas, como foi o meu caso. Fui a primeira pessoa cega a entrar no curso de Psicologia da minha  universidade, e havia muito por fazer. Entrei no curso numa altura em que essas respostas estavam a ser desenhadas numa estrutura de apoio. Desde a falta de preparação para a adaptação de materiais pelos professores, até à adaptação das metodologias de ensino em sala de aula, os desafios foram muitos. Naturalmente, isso exigiu um esforço adicional da minha parte para garantir, com cada professor: comunicava as minhas necessidades e depois acompanhava a matéria como qualquer outro colega. Também recorri a outras instituições com gabinetes de apoio ao aluno mais consolidados, que me apoiaram com a impressão em braille e a adaptação de documentos em formato digital. Contudo, por não ser aluna interna dessas entidades, muitas dessas digitalizações também tinham de ser feitas em casa ou numa papelaria, a meu cargo. Como se pode calcular, todos estes passos consomem tempo, recursos financeiros e cognitivos que, em outras condições, seriam canalizados para os processos normais da vida. A parte boa é que muitos desses docentes estavam dispostos a aprender e dialogar, o que fez toda a diferença para ambas as partes!

O que a levou à Psicologia e porque optou pela via das empresas?
Desde que me lembro, sempre tive um desejo espontâneo de ajudar os outros e ser útil. A curiosidade em estudar o comportamento humano, objeto da ciência psicológica, foi um passo natural na escolha da minha carreira. Inicialmente, estava muito focada na prática clínica, mas o facto de ter seguido um percurso que me preparava melhor para a área organizacional e para o acesso a este ciclo de estudos fez com que desse uma oportunidade à Psicologia Social e das Organizações. Acabei por me especializar nessa área e apaixonar-me por ela, onde também há muito por fazer.

Patrícia Soares
Patrícia Soares Departamento de People da Critical Software

As organizações, tal como as pessoas, podem adoecer e precisam de desenvolvimento e renovação. Atividades como recrutamento e seleção, avaliação de competências comportamentais, avaliação psicológica, formação comportamental e desenvolvimento profissional dos trabalhadores, bem como o bem-estar organizacional, são algumas das áreas em que nós, psicólogos deste ramo, podemos atuar de forma mais eficaz. A importância da saúde das organizações e dos indivíduos que as compõem, tornando-as bem-sucedidas, levou-me a querer permanecer nesta área. O coaching psicológico, por exemplo, uma especialidade da Psicologia, é o cruzamento perfeito entre a clínica e as organizações, sendo um ótimo promotor de saúde mental. Recentemente, especializei-me nesta área e descobri-a como quem descobre um novo amor. Por todas estas razões, não tenho dúvidas de que este é o meu lugar, onde quero estar.

"Enquanto pessoa com deficiência visual, sentia que o esforço era multiplicado duas a três vezes em comparação com os meus colegas, para conseguir cumprir tanto com as minhas expectativas como com as dos outros."

E onde sentiu mais dificuldades relativamente a colegas que não tinham deficiência?
Quando falamos de estudos, a necessidade de nos adaptarmos ao meio, a novas metodologias de ensino e a novos métodos de estudo é um desafio que tanto pessoas com ou sem deficiência enfrentam. Contudo, para mim, enquanto pessoa com deficiência visual, sentia que esse esforço era multiplicado duas a três vezes em comparação com os meus colegas, para conseguir cumprir tanto com as minhas expectativas como com as dos outros.

Nomeadamente no dia-a-dia, acessibilidades e necessidade de material específico, viver com uma deficiência ainda é muito limitativo?
Na minha opinião, viver com uma limitação sensorial é hoje muito mais fácil do que no passado, a vários níveis: estudos, emprego, lazer, atividades da vida diária. A evolução da tecnologia veio tornar o nosso dia-a-dia muito mais fácil. Hoje em dia, tenho acesso a uma biblioteca na palma da minha mão, uma descrição pormenorizada de uma fotografia, num ecrã completamente tátil. A inteligência artificial veio melhorar ainda mais este aspeto. Se me dissessem naquela altura que isso seria possível, não acreditaria. Contudo, ainda existe muito caminho por fazer em matéria de legislação que não é cumprida, e que, de repente, pode fazer com que esta tecnologia, que tanto nos ajuda no presente, se torne um obstáculo. Se existem bons exemplos de empresas que desenvolvem produtos acessíveis, também existem várias que continuam a não investir neste sentido. Há muita desinformação sobre a cegueira e a baixa visão. Não raras vezes esta falta de conhecimento leva a comportamentos de condescendência e de discriminação.

"A evolução da tecnologia veio tornar o nosso dia-a-dia muito mais fácil."

Basta fazer o exercício de tentar comprar um eletrodoméstico para casa com botões físicos ou táteis que sejam possíveis de utilizar por uma pessoa cega, já nem digo acessíveis. É uma dificuldade muito grande, existem apenas dois ou três modelos nas grandes superfícies. Isto é verídico.  Pode parecer um paradoxo, porque, em princípio, à medida que a tecnologia evolui, estas questões deveriam ser ultrapassadas. Infelizmente, ainda não é o que acontece. Continuamos também com muito por evoluir num aspeto muito importante e que, na minha opinião, poderia ter um impacto transformador em todas as áreas das nossas vidas: as barreiras de atitude. Como diria um conhecido meu: “São sobretudo elas que nos mostram que a razão de ser da deficiência não está em não ver, está em não viver numa sociedade que tem em conta que nem todas as pessoas veem, e nem todas veem da mesma forma.”.

Concorda com a discriminação positiva no recrutamento de pessoas com deficiência?
O recrutamento e seleção baseiam-se na procura e avaliação das competências de um candidato a uma função, numa organização. No entanto, se continuamos com uma taxa de desemprego duas a três vezes superior à da restante população e se grande parte da literatura sobre o tema indica que um dos principais aspetos negativos na contratação de pessoas com deficiência é a falta de informação correta sobre as mesmas por parte dos empregadores, é natural que isso se reflita na avaliação dessas capacidades e na sua colocação. Isto não significa que não existam bons exemplos de empresas que já o fazem, e muitas sem terem recorrido ao sistema de quotas.

Mas ainda é residual...
Infelizmente, apesar de a diversidade estar mais presente nas agendas das empresas, os indicadores de desemprego continuam elevados. Por esse motivo, não existindo um ponto de partida igual para todos, na minha opinião, essa desvantagem ainda deve ser compensada. Mecanismos como as quotas no setor público e privado, bem como outros apoios à contratação, são exemplos disso. É o ideal? De todo que não, e espero que no futuro deixem de ser necessárias, para todos os que mereçam uma oportunidade. Até lá, teremos que continuar a fazer esse caminho de sensibilização.

"Sentia que, na maior parte das vezes, avaliavam a minha deficiência e não as minhas capacidades para desempenhar a função."

Se tivesse uma empresa, como garantiria que a deficiência não seria um entrave à contratação?
Se eu tivesse uma empresa, começaria por algo muito básico: olhar para a minha missão e valores organizacionais para perceber, em primeiro lugar, como posso criar uma estratégia de inclusão que abrace a diversidade. A formação seria essencial para todas as lideranças e colaboradores. Acredito que é através do conhecimento fundamentado e especializado que podemos fazer um trabalho de excelência, seja sobre este ou qualquer outro aspeto. Garantiria também que o processo de recrutamento e seleção fosse um apenas, independentemente das características de cada candidato. Para mim, isso é o que chamo de recrutamento inclusivo, que não se deve confundir com responsabilidade social. Além disso, implementaria políticas claras de inclusão e diversidade, assegurando que todos os funcionários, independentemente de terem ou não uma deficiência, se sentem valorizados e apoiados. Todos os departamentos seriam igualmente formados e conheceriam a estratégia de diversidade da empresa.  Adaptaria o ambiente de trabalho de raiz para ser acessível a todos nos vários níveis de acesso, comunicação, web e físico.

No fundo, procuraria, de forma contínua, e em várias vertentes que não só a deficiência, desenvolver uma cultura organizacional de valorização da diversidade e da inclusão, incentivando a comunicação aberta e o respeito mútuo. Por fim, acompanharia continuamente as práticas de inclusão e recrutamento para garantir que estamos sempre a melhorar e a adaptar as nossas abordagens, de modo a criar um ambiente verdadeiramente inclusivo e equitativo para todos.

Como surgiu a oportunidade de trabalhar na Critical Software?
A Critical Software foi-me referenciada por um conhecido como uma boa empresa para se trabalhar, numa altura em que já tinha batido a muitas portas. Tinha feito a licenciatura, o mestrado e o estágio curricular com uma boa média, mas não era selecionada. Sentia que, na maior parte das vezes, avaliavam a minha deficiência e não as minhas capacidades para desempenhar a função. E se indicasse que tinha uma deficiência antes desse passo, muitas vezes nem recebia feedback ou diziam que não tinham como adaptar parte do processo de recrutamento ou as condições na empresa, ou que simplesmente não iria dar. Foi uma altura muito difícil para mim. Sabia o meu valor, precisava de um estágio profissional para a Ordem dos Psicólogos Portugueses para exercer psicologia e queria muito começar a trabalhar, mas o medo de arriscar e o preconceito pareciam ser superiores a qualquer mais-valia que pudesse partilhar.

E aqui foi diferente?
Com a Critical Software foi diferente. Desde o primeiro minuto, senti-me acolhida. Deram-me espaço para mostrar o meu valor. Na altura, precisavam de alargar a equipa de recrutamento com um perfil como o meu, e eu arrisquei. Recordo-me até hoje da conversa, interessada e natural, sobre o meu percurso académico e conhecimentos, e dos primeiros dias na empresa. O estágio correu muito bem e estou lá até hoje.

Gosta do que faz?
Se gosto do que faço? Adoro o que faço. Estou na equipa de PEOPLE, na área de recrutamento, bem como em atividades de engagement e felicidade dos trabalhadores. Tenho o melhor dos dois mundos!

E sempre sentiu apoio dos seus colegas?
A minha relação com os colegas é muito natural e espontânea. Há quem seja mais próximo, há quem seja mais formal ou informal, como em qualquer relação entre pares. Verem-me a deslocar-me para uma sala, a pedir a minha refeição na copa ou a participar em algum evento interno ou externo, é normal para eles. Sempre quis que assim fosse e acredito que essa é a melhor forma de sensibilizar os outros. Afinal, somos todos diferentes, mesmo que com a mesma condição. Não existe uma fórmula mágica nem diferenciação no tratamento. Sei que posso contar com eles como sabem que podem contar comigo, em caso de necessidade.

"Ainda existem preconceitos que precisam ser trabalhados e ultrapassados."

Considera que ainda existem preconceitos relacionado com os profissionais com deficiência?
Apesar de termos assistido, nos últimos anos, a grandes avanços, acredito que ainda existem preconceitos que precisam ser trabalhados e ultrapassados. Tal como já mencionei anteriormente, continuamos com um caminho muito longo por fazer nesta área, e momentos de partilha como estes continuam a ser importantes para ajudar à reflexão de quem veja na diversidade um aspecto criativo e de competitividade nas suas empresas, mas que não saiba por onde começar ou deseje apoio na melhoria dos seus processos.

E como é que as empresas poderiam melhorar esta situação?
A contratação de pessoas com deficiência deve ser tratada com a mesma naturalidade que em qualquer outro processo seletivo. De um lado, temos uma oportunidade; do outro, um perfil. Se as competências pessoais e técnicas foram desenvolvidas, elas podem e devem ser avaliadas. As técnicas de entrevista, simulações e adaptações nas dinâmicas, continuam perfeitamente aplicáveis e podem ser adaptadas a cada caso. Em caso de dúvidas, as associações especializadas em cada tipo de deficiência podem ser consultadas como principais fontes de conhecimento. Muitas dessas associações ajudam a avaliar a acessibilidade de sites, anúncios de emprego, softwares, assessments, entre outros. Além disso, oferecem sensibilizações e acompanhamento contínuo, se necessário. Se o processo não for bem-sucedido, devemos encarar isso como um resultado comum a qualquer recrutamento.

Na sua opinião, deveria existir mais recrutamento inclusivo?
Sem dúvida. Profissionais com deficiência são, antes de tudo, pessoas com ambição e que veem no trabalho uma forma de realização pessoal e profissional, assim como qualquer outra pessoa. Investiram nos seus estudos e carreiras, e também precisam de espaço para acertar e falhar. Precisam de oportunidades não só para ingressar no mercado de trabalho, mas também para progredir, um tópico que ainda é pouco discutido. Além disso, muitas vezes é mencionado, e eu concordo, que por vezes, e tendo em conta alguns ambientes produtivos, a existência de uma deficiência pode até ser uma característica positiva, permitindo, por exemplo, um trabalho mais focado ou menos avesso a resposta de outros estímulos externos. Naturalmente, não podemos generalizar, porque somos todos únicos na nossa forma de estar, mas este também é um ponto favorável.

E o Estado devia apoiar mais o emprego a pessoas com deficiência?
O emprego de pessoas com deficiência tem sido apoiado há vários anos com a introdução de mecanismos como as quotas no setor público e, mais recentemente, no setor privado. Existem também incentivos fiscais para as empresas, como a redução da TSU (Taxa Social Única), bem como estágios de inserção específicos. As empresas podem ainda adaptar os postos de trabalho, sem custos, através do financiamento a 100% de produtos de apoio. No caso das pessoas cegas, por exemplo, esses produtos de apoio podem incluir leitores de ecrã, linhas braille e OCR (Optical Character Recognition). No meu posto de trabalho, conto com um computador fornecido pela empresa, como qualquer colega, mas equipado com um leitor de ecrã gratuito e um OCR instalado, bem como uma linha braille para leitura e escrita. Além disso, todas as salas estão etiquetadas em braille para garantir a identificação em iguais circunstâncias de qualquer sala de reunião no espaço.

O Dia Internacional das Pessoas com Deficiência

A data foi proclamada em 1992 pela Assembleia Geral da ONU, para promover uma compreensão mais profunda das questões da deficiência e mobilizar apoio para a dignificação, direitos e bem-estar das pessoas com deficiência. Procura também aumentar a tomada de consciência sobre os benefícios decorrentes da integração de pessoas com deficiência em todos os aspetos da vida política, social, económica e cultural.
De acordo com a ONU, aproximadamente 15% da população mundial vive com algum tipo de deficiência. A data é, portanto, relevante para uma parcela significativa da população mundial. A celebração anual é um alerta para a importância de construir uma sociedade mais inclusiva e igualitária.