Ir ao cinema não é um tema: escolhe-se o filme, a sessão, a sala e assiste-se. Agora imagine que anda de cadeira de rodas ou que é cego e uma coisa simples torna-se bem mais complexa. A falta de acessibilidades é uma montanha no supostamente universal direito à cultura. E a AMPLA e a Fundação MEO estão a trabalhar ativamente para tirá-la do caminho de quem não consegue usufruir de algo tão simples quanto ver um filme no cinema.
Já na sua quarta edição — o arranque beneficiou dos fundos covid Garantir Cultura e do empenho de três jovens empreendedores que adotaram a causa —, a AMPLA é uma mostra de cinema premiado inclusiva, que recorre à "áudio descrição, legendas descritivas, interpretação em Língua Gestual Portuguesa, sessões descontraídas e espaços acessíveis para assegurar que ninguém fica de fora". Pelo menos no quadro temporal em que a Culturgest serve de palco a uma seleção de filmes premiados nos principais festivais de cinema nacionais, em que, além dos filmes, em workshops, conversas e sessões descontraídas, se faz por provar que abrir o cinema a pessoas com deficiência ou algum tipo de limitação não é um bicho de sete cabeças.
Em contagem decrescente para a mostra que se estreia dia 14 de fevereiro e se prolonga por esse fim de semana e pelo seguinte (veja aqui a programação), ao SAPO, Rita Gonzalez e Hugo Tornelo (Sofia Afonso é o terceiro elemento desta curta mas empenhada equipa) contam que a ideia original veio da forte convicção de que a oferta cultural, nomeadamente o cinema, é um direito de todas as pessoas. Essa ideia ganhou força com as valências de Rita, que traz no currículo o cinema, bem como muitas formações na área de acessibilidade, incluindo áudio descrição, e que se deu conta desta falha em conversa com a diretora da Acesso Cultura.
Depois de uma tentativa que não deu frutos com o Festival Play (de cinema infantil e juvenil), "pensei que trazer a acessibilidade ao cinema tinha de nascer de algo novo", conta. O apoio da Fundação MEO foi a chave que permitiu abrir a porta à solução chamada AMPLA.
"Sem a Fundação MEO, simplesmente não conseguimos, não era possível fazer a AMPLA", relata Hugo. "É a Fundação MEO que financia todas as acessibilidades e estamos a falar de recursos muito dispendiosos, são 80% do custo da AMPLA. E ainda mais neste ano, em que temos dez sessões na Culturgest" e mais uma grande inovação (lá iremos) nas Salas Castello Lopes, junta Rita.
Apesar de haver aqui uma forma de prestação de serviço público, os apoios do Estado limitam-se a cerca de 10 mil euros do ICA e mais 6 mil da Câmara Municipal de Lisboa. "Sem a Fundação, era impossível", repetem ambos.
Para a Fundação MEO, que já contava com os resultados muito positivos do projeto Música com Sentido, poder levar uma iniciativa que não só celebrava a inclusão como também a cultura mais longe, proporcionando experiências enriquecedoras para todos, era mais do que uma missão, uma vontade. E assim nasceu o Cinema com Sentido, que se aliou à AMPLA e lhe deu novos horizontes.
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O programa de cada mostra é decidido a partir de uma dúzia de festivais considerados pelo ICA como os principais festivais de cinema nacionais; dentre os premiados, a equipa da AMPLA faz uma curadoria de forma a chegar a uma lista dos que mais cumprem o objetivo de chegar ao máximo número de pessoas. "Não queremos filmes completamente independentes ou muito alternativos mas, dentro do cinema independente, os que sejam também mais abrangentes, incluindo curtas a longas metragens, géneros distintos (do terror à animação), portugueses e estrangeiros."
Feita a escolha, que neste ano conta com títulos como Percebes, Oddity, Echo of You, Sem Coração, Seu Nome Era Gisberta ou Blhec!, há que acessibilizar as películas com a tecnologia que já torna possível mostrar filmes a pessoas com as mais diversas deficiências. E porque o objetivo é mesmo chegar a todos, existem ainda algumas sessões descontraídas, vocacionadas para pessoas que têm algum tipo de autismo. "O próprio espaço que escolhemos para acolher a AMPLA desde o início, a Culturgest, já tem em conta a acessibilidade para pessoas com cadeira de rodas ou dificuldades de mobilidade. A ideia é que as pessoas tenham autonomia e possam escolher livremente, dentro da nossa programação, qual é a sessão que querem ver, sem estarem limitadas a um dia ou hora específica", explicam os promotores.
O grande objetivo, confessam, é conseguir ter na mesma sala, na mesma fila, pessoas com e sem deficiência: alguém numa cadeira de rodas, uma pessoa cega, uma surda, uma sem qualquer deficiência, todos a ver o mesmo filme. "Isto é o que achamos que o cinema devia de ser. Aberto a todos e para todos."
O pequeno auditório tem uma capacidade de 135 lugares, mais seis para cadeiras, e no ano passado recebeu 800 pessoas durante a mostra, sendo cerca de 10% pessoas com deficiência e surdas (que não se incluem dentro das pessoas com deficiência). E a onda de impacto vem-se alargando: "Em 2024 tivemos mais pessoas surdas, na primeira edição tivemos mais pessoas cegas, na segunda edição começámos a ter a participação de mais pessoas com paralisia cerebral, graças à parceria com a APCL. Mas é um caminho que se faz lentamente", assume Rita.
A principal dificuldade é chegar às pessoas: "É um trabalho de repetição, de relação, porque estas pessoas estiveram afastadas da oferta cultural durante muitos anos, não têm hábitos culturais, porque as programações não são feitas para elas", conclui Hugo.
Talvez por isso, a cada edição aumente o leque de pessoas que contactam a AMPLA para saber se já há data para a mostra, qual é o programa, como podem organizar-se para ir ver os filmes que quiserem, do início ao fim. "Infelizmente ainda não chegámos ao ponto de ser uma compra por impulso, porque estamos limitados naquela janela temporal, mas dentro deste calendário consegue-se alguma impulsividade; ainda mais neste ano, em que estamos distribuídos por dois fins de semana", entusiasma-se a cofundadora e produtora.
Uma novidade revolucionária
Neste ano, conseguiu-se ir ainda mais longe, graças ao empenho da Fundação MEO, "que está mesmo nisto connosco". Longe de ser apenas um mecenas generoso, a fundação envolveu-se na causa e percebeu que havia espaço para dar um salto, dentro da programação paralela, tentando levar a AMPLA também a salas de cinema regulares. Para isso, era necessário que as acessibilidades preparadas para a tela montada na Culturgest durante a AMPLA fossem transportadas para algumas pessoas que quisessem assistir a filmes em sala. A solução seria uma aplicação para dispositivos móveis. E a concretização acontece já nesta edição.
"Neste ano já vamos ter este braço dentro da programação paralela da AMPLA, com a exibição do filme Oh, Canada nas salas Castelo Lopes. Enquanto que, na Culturgest, a própria sala é preparada para esses desafios e tudo aparece na tela (exceto a áudio descrição, que se concretiza com um áudio guia), nas salas Castelo Lopes é o cinema normal que, graças a uma aplicação no smartphone, se torna acessível a pessoas com deficiência", explica Hugo. "Isto mostra bem que há formas de fazer, que as acessibilidades podem ser implementadas nas salas de cinema", ainda que seja necessário investimento e adaptação.
Precisamente para dar visibilidade a essa conquista que se concretiza por iniciativa da Fundação MEO — com recurso a uma aplicação alemã, a GRETA, que permite que pessoas com deficiência visual ou auditiva possam experienciar filmes de forma totalmente acessível, graças a recursos como áudio descrição e legendas descritivas, sincronizando-se automaticamente com o áudio do filme —, paralelamente à mostra, no dia 13 vai haver um debate na AMPLA para mostrar e debater case studies da Alemanha e de Espanha. Como se realizaram iniciativas deste tipo e que efeito tiveram são temas trazidos à mesa, "de forma a podermos aqui aprender com esses exemplos", junta Rita. "Isto é mesmo um passo histórico, porque nunca foi feito em Portugal, esta aplicação nunca foi usada nas nossas salas de cinema."
A aplicação foi negociada pela Fundação MEO numa iniciativa própria que pretendia alargar o âmbito de ação da AMPLA e levar as acessibilidades a uma sessão comercial, trazendo a tecnologia para sessões comercialmente viáveis. Outra novidade neste ano, além de todo o ecossistema, que inclui ainda programação paralela com masterclasses, workshops e debates para "agitar a indústria, para formar a indústria para a necessidade de trazer a acessibilidade ao cinema, passa por levar também o cinema a quem está em casa: os filmes acessibilizados nas edições anteriores da AMPLA vão ficar disponíveis no MEO Videoclube, com três a estrear no dia 14, em simultâneo com a abertura da mostra. Também estes beneficiam da tecnologia da aplicação GRETA, com a devida sincronização automática a funcionar também em casa.
"Isto mostra bem que a Fundação MEO está mesmo connosco, a ajudar-nos a agitar as águas", reflete Hugo, apontando o papel fundamental na contaminação positiva. E no fim do dia, as três pessoas que coordenam a AMPLA — "são seis meses do ano em que estamos quase 90% dedicados à mostra e nos outros seis estamos a compensar o trabalho que ficou atrasado por causa da AMPLA", contam Rita e Hugo — sentem que tudo compensa. Porque as pessoas a quem abrem as portas desta área cultural os contactam, partilham as suas impressões, procuram-nos já com alguma intimidade e familiaridade.
"No ano passado, tivemos um grupo de pessoas cegas que veio de Mafra; eram 15 pessoas que nunca tinham visto um filme com áudio descrição e deram-nos feedback muito positivo. Também no caso das pessoas com paralisia cerebral, há pessoas que vão sempre e na última edição fizeram vários comentários em relação ao Mal Viver, que foi o filme de abertura", revela Rita Gonzalez.
"Além das pessoas com deficiência, as pessoas também que não têm deficiência de alguma forma devem juntar-se a este movimento e exigir um direito que é de todos. Nós temos conseguido impactar também pessoas que de alguma forma estão longe um bocadinho do problema", junta Hugo Tornelo.