
Nos últimos dias, multiplicaram-se as notícias com agressões motivadas por crimes de ódio. Só neste mês: o ataque ao ator Adérito Lopes em frente à Barraca em Lisboa, os insultos racistas à vereadora de Cascais e à sua filha, as agressões às voluntárias que ajudavam pessoas sem-abrigo e migrantes no Porto e a perseguição e agressão ao jovem antifascista em Guimarães. De norte a sul do país, a violência está a escalar, os dados são das Estatísticas da Justiça, da responsabilidade da Direção-Geral da Política de Justiça, que congrega os dados de todas as polícias, e mostram que o crime por discriminação e incitamento ao ódio e à violência tem vindo a aumentar de ano para ano desde 2000.
Nas redes sociais, é raro apanhar uma notícia partilhada por um órgão de comunicação social em que nos comentários não exista incitamento ao ódio e à violência, mensagens racistas, xenófobas ou que discriminam religião, género ou sexo. Também nas redes sociais circulam petições para criminalizar o racismo e endereços de email para se fazer queixas e o artigo 240.º do Código Penal talvez nunca tenha sido tão escrutinado como nos últimos tempos. Afinal o que diz a lei que penaliza a discriminação e o incitamento ao ódio e à violência? E como se traçam os limites entre o que pode ser uma opinião ressalvada pela liberdade de expressão e um discurso punível por lei?
Sabe-se também que a maior parte das vítimas de discriminação racial, religiosa ou sexual não apresenta queixa. Onde se pode apresentar queixa e de que forma é mais eficaz fazê-lo? E por que razão tão poucos casos resultam em condenações ou consequências concretas? O que se passa nos tribunais e quais os desafios para os juízes e procuradores?
A União Europeia pode ter uma palavra a dizer para garantir que há dignidade entre os cidadãos dos seus Estados-membros e assegurar essa dignidade como um direito humano fundamental?
Entre o Código Penal, a Constituição Portuguesa, a Convenção de Direitos Humanos, há inúmeras leis, artigos, alíneas a cruzarem-se num quebra-cabeças jurídico que não é fácil de resolver. O SAPO falou com Mário Monte, professor catedrático, especialista em Direito Penal, coordenador do Grupo de Justiça Criminal e Criminologia e membro do Centro de Justiça e Governação da Universidade do Minho.
Antes de entrarmos a fundo nas leis, o penalista deixa duas adendas: a primeira, que o Direito Penal “é um direito de última linha”, por ser um direito punitivo. E a segunda, a importância da Constituição, que “protege os vários direitos fundamentais, desde o direito à igualdade, à não discriminação, ao bom nome, à integridade pessoal e até mesmo o princípio da dignidade da pessoa humana”.
Recorda ainda que as leis são dinâmicas e que é natural que assim seja, já que se vão adaptando e evoluindo conforme a realidade o exige. Agora, o fenómeno redes sociais pode fazer que seja necessário revisitar a norma sobre discriminação e incitamento ao ódio e à violência.
Em que consiste um crime de ódio e qual é a definição mais clara que podemos ter, tendo em conta o artigo 240.º do Código Penal?
Esta norma considera que estamos perante discurso de ódio quando alguém funda ou constitui uma organização para discriminar ou para incitar ao ódio, à violência contra uma pessoa, contra um grupo, seja por causa da raça, cor, origem étnica ou nacional, ascendência, religião, sexo, orientação sexual, identidade de género, deficiência física, psíquica, etc. Quem fundar um grupo ou constituir uma organização para este fim, então está claramente a cometer este crime.
Onde há mais dúvidas é numa segunda dimensão desta norma que diz respeito à propaganda organizada que incite à discriminação, ao ódio e à violência.
Já li muitas coisas de penalistas e não é consensual o que se entende por isto. Eu creio que, como está redigido o artigo 240.º, não é suficiente uma pessoa proferir uma opinião sobre um assunto e que essa opinião seja considerada pelas outras pessoas como sendo uma opinião discriminatória. Temos o direito a ter gostos e a poder proferi-los.
É diferente quando alguém faz insistentemente campanha com a intenção de atingir determinado tipo de pessoas, com determinadas características.
Se uma pessoa publica num jornal artigos de opinião que reiteradamente vão num sentido de discriminação contra alguém ou contra certo tipo de pessoas, pode-se considerar, porque a jurisprudência já considerou, que há discriminação.
Mas podemos concluir que o que distingue uma opinião considerada discriminatória de um crime de ódio pode ser a insistência e intenção?
Penso que a emissão de uma simples opinião que pode até ter um certo sentido discriminatório não está abrangida pelo artigo 240.º. Um discurso orientado para um tipo de objetivo que é claramente discriminatório – seja em redes sociais, conferências, salas de aulas, entrevistas – já pode ser considerado crime.
Há ainda uma questão de natureza ética: e se é legítimo uma pessoa manifestar um tipo de opinião que é ofensiva e de forma leviana. Na minha opinião, não é eticamente legítimo proferir opiniões discriminatórias em público porque tem que ver com um princípio que está salvaguardado na Constituição, o princípio da dignidade humana.
A Constituição é muito clara na defesa da igualdade e é intransigente na proteção contra discriminações.
Contudo, o discurso de associação dos imigrantes ao aumento da criminalidade ou dos imigrantes como um fardo para o sistema social português tem sido constante no discurso público e político. É um discurso sem qualquer relação com a realidade e é organizado e sistemático contra alguns grupos e etnias...
Talvez seja uma atividade de propaganda organizada e entre nesta norma do Código Penal. Embora reconheça que a norma está feita de uma maneira que não é muito clara e que deixa alguma margem de discussão.
A linha de fronteira está entre aquilo que é uma opinião livre, mesmo que seja absurda, ou descabida, desde que não seja uma injúria ou não seja uma difamação, que já são outros dois crimes que não têm nada que ver com este.
Um crime de injúria ou difamação é agravado se for por motivos discriminatórios?
Sim, pode ser. Na medida em que o juiz, quando vai aplicar a pena, tem de a calcular e para isso está previsto que se analise a motivação do crime. Um crime motivado por ódio pode resultar numa pena mais pesada.
Os políticos podem sistematicamente falar de forma depreciativa sobre um determinado grupo de pessoas?
É um problema muito sério. Os deputados têm prerrogativas próprias, têm de ter liberdade para poder exprimir as suas opiniões, para poderem representar convenientemente um setor da população e têm imunidade. Há quem diga que tudo tem limites e eu acompanho essa ideia, principalmente quando se usa uma função para intencionalmente ofender alguém.
E como se luta contra o ódio sem o risco de limitar a liberdade de expressão?
Os penalistas costumam dizer que a fronteira está no ponto em que se deixa de expressar uma opinião e se passa a ofender intencionalmente o bem jurídico ou interesses protegidos pelo Direito Penal. Aqui está a fronteira. O desafio é saber quando é que se passou essa fronteira.
Porque quem o faz pode sempre dizer que não teve como intenção ofender ninguém. Expressar ideias é também um valor que está protegido na Constituição e tem de ser garantido.
A dificuldade nos tribunais é conseguir verificar se numa determinada atuação, num determinado discurso, houve uma intenção de ofender ou foi apenas a expressão de ideias.
A prova nem sempre é fácil porque é necessário comprovar qual foi a intenção da pessoa. Há critérios, mas o problema é na prática verificar esses critérios.
Anda uma petição a circular nas redes sociais para criminalizar todas as práticas discriminatórias, racistas, xenófobas, etc. Considera que há lacunas na legislação atual face à realidade?
A lei penal não é uma coisa perfeita, acabada ou intocável. Uma lei está sujeita à evolução. Não considero que sejam lacunas, porque quando a norma foi feita considerou-se que ela respondia aos problemas que se colocavam.
Talvez agora seja tempo de revisitar a norma, tendo em conta algumas situações que têm ocorrido ultimamente.
Em 1995 ou 2007, quando foram feitas grandes alterações no Código Penal, não tínhamos a realidade que temos hoje, nomeadamente o fenómeno das redes sociais. Estes crimes com mais efeito público aconteciam através da comunicação social. Como os jornalistas têm um código ético e deontológico, as coisas funcionavam bem e o risco de haver infrações deste tipo era mais ou menos contido.
Agora, as redes sociais tornaram isto completamente diferente. Qualquer pessoa ou grupo pode usar estas redes e ter um discurso público, o que amplia o seu alcance. Faz sentido revisitar algumas destas normas e atualizar algumas delas.
Os meios que são utilizados hoje têm efeitos muito diferentes do que acontecia na altura em estas normas foram feitas.
A lei que existe aplica-se de igual forma online? Um comentário a incitar ódio numa paragem do autocarro ou num comentário de uma rede social, para a lei é igual?
Eu penso que sim. Uma coisa é uma conversa que temos num grupo privado, mas se começamos a usar o mesmo tipo de linguagem nas redes sociais, que são abertas, e que podem ser lidas por várias pessoas, aí as coisas são muito diferentes.
Apesar de estes crimes de ódio terem aumentado e haver mais queixas, sabe-se também que uma grande parte das vítimas não apresenta queixa. Quais são os meios mais adequados para se fazer uma denúncia?
Quando uma pessoa tem conhecimento de um crime ou acha que é um crime – não é necessário ter a certeza de que se trata de um crime, não somos todos formados em Direito Penal –, a primeira coisa que devemos fazer é dirigirmo-nos a um posto mais próximo da polícia. É o local mais comunitário, mais acessível e provavelmente mais próximo. Pode ser da GNR ou da PSP.
Tanto GNR como PSP como os tribunais podem receber uma queixa, denúncia ou uma manifestação de conhecimento.
Se estiver próximo de um tribunal, pode entrar no tribunal e ir ao serviço do Ministério Público e dizer o que aconteceu, vivenciou ou testemunhou. E até poderá recorrer a um advogado, se puder, que encaminhará a denúncia.
Qual é o processo que se segue?
Depois, cabe às autoridades verificar se isso se enquadra em alguma norma e se pode ser julgado ou não.
Nas redes sociais há publicações a circular com vários emails para os tribunais, para a PGR, para o governo no sentido de as pessoas escreverem denúncias sobre coisas que estão publicadas nas redes sociais. Vale a pena mandar estes emails? Têm efeito prático?
Sim, deve adiantar alguma coisa, mas na minha opinião os meios tradicionais acabam por ser os melhores, porque tanto PSP como GNR ou Ministério Público estão mais habituados tecnicamente a tratar destas coisas. Se um cidadão entrar nestes serviços, estes são obrigados a receber aquela denúncia.
Depois, podem achar que não tem fundamento e que não se enquadra em nenhuma norma penal e manda-se arquivar. Mas também pode considerar-se que há matéria para abrir um inquérito, manda-se investigar e pode seguir para acusação.
As pessoas não devem sentir-se inibidas de se dirigir a uma dessas instituições públicas, têm o direito de lá ir e cabe às autoridades fazer a análise.
Dado que muitas vítimas não apresentam queixa por sentirem que a polícia e outras instituições desvalorizam os seus relatos, que medidas pode tomar uma vítima quando sente que a sua queixa está a ser desvalorizada?
Pode recorrer a outras instâncias maiores, como a Procuradoria-Geral da República. Aliás, as próprias polícias quando têm dúvidas recorrem ao Ministério Público, para ser este a fazer a qualificação jurídica do tema. Nem tudo o que parece ser crime pode ser crime, mas as pessoas não devem sentir-se inibidas e devem fazer denúncias. É completamente gratuito e acessível a qualquer cidadão.
A União Europeia tem alguma palavra a dizer sobre o Direito Penal em Portugal?
Portugal está vinculado às instituições europeias, mas a União Europeia não produz normais penais. O que a UE faz é emitir linhas orientadoras ou diretivas que os Estados podem transpor para a lei nacional, passando sempre pelo crivo da Assembleia da República.
Em matéria criminal, tem havido sucessivamente uma maior abrangência de situações em que a UE tem mais competências, sobretudo depois do Tratado de Lisboa. Portugal não está em falta relativamente a nenhuma norma europeia. Há competências que são da UE e outras que são dos Estados-membros.
Como pode a UE garantir que os seus cidadãos têm os mesmos direitos nos diferentes Estados-membros?
Uma das coisas que pode fazer é emitir um conjunto de indicações aos Estados para que legislem em determinado sentido. A UE não formula os tipos de penas nem as sanções a aplicar, continua a ser da responsabilidade de cada país concretizar essas indicações tendo em conta o seu próprio direito.
A UE tem o poder de influenciar e até de tentar promover a aproximação dos direitos dos vários Estados. Ao fazer isso está a dar um enorme passo e a contribuir para que os cidadãos, que podem circular livremente pelos diversos Estados-membros, possam ter o mesmo nível de garantias nos diferentes países.
Além da recomendações na UE, da nossa Constituição e de chegarmos ao Direito Penal, considera que há outros instrumentos para colmatar o discurso de ódio e discriminatório?
A Constituição é o instrumento mais importante, mas também existem programas pedagógicos nas escolas ou universidades que ajudam as pessoas a não discriminar.
É importante haver formação cívica para formar as pessoas como cidadãos que respeitam os outros.
Isso previne muito mais do que o próprio Direito Penal. Mesmo sendo penalista, tenho a ideia de que o Direito Penal resolve muito pouco quando as coisas já aconteceram. Tem de haver uma formação cívica. Começa logo em casa, nas famílias, nos núcleos familiares, na comunicação social também, no desporto, nas escolas, nos serviços públicos, etc.
Discurso de ódio e racismo motivam alerta europeu sobre Portugal
Nesta semana, assinalou-se o Dia Internacional de Combate ao Discurso de Ódio, e o Conselho da Europa alertou Portugal para o aumento preocupante do discurso racista, xenófobo e discriminatório, tanto no espaço público como político.
Os números são alarmantes e as conclusões apontam para falhas persistentes na resposta judicial e policial, recomendando medidas urgentes, como a formação obrigatória para agentes da autoridade e professores.
Como sublinha Mário Monte, o penalista ouvido pelo SAPO, o reforço da legislação é importante, mas a chave pode estar numa formação cívica mais sólida, que começa em casa e se prolonga pela escola, pela comunicação social e pelos serviços públicos, de forma a garantir o respeito por um princípio simples, mas também consagrado na lei: o da dignidade humana.