A nova moda do exercício do comentário, pela direita que não gosta da esquerda mas ainda não gosta de Trump, é construir a narrativa de que o Partido Democrata, e a esquerda global, se afastou dos trabalhadores para se entregar unicamente a causas identitárias. De repente, Trump foi eleito como uma consequência do alegado wokismo. Aqui no Expresso, o Bernardo Mendonça já disse tudo o que havia a dizer sobre esta narrativa alternativa, sobre esta contaminação da pós-verdade na análise política.
A história da esquerda é coerente e cumulativa. Das mulheres sufragistas (de quem alguma esquerda não gostava, talvez semelhante à mesma esquerda que foge hoje de determinadas causas) às lutas de trabalhadores, passando por movimentos de fim à segregação racial, podemos sempre encontrar grupos privados de direitos para que a esquerda foi olhando e pelos quais foi lutando à revelia das vontades da direita. Que hoje haja uma atenção redobrada a grupos e pessoas que ainda tinham e têm privação de direitos, seja pela sua condição de género, seja pela sua condição étnica, seja por serem imigrantes ou refugiados, não é uma novidade. É apenas a continuidade de uma procura de chegar mais longe na obtenção de liberdade e justiça para todos. Sobre isto, não há muito mais a dizer, já que é óbvio que um olhar de classe não é incompatível com um olhar alegadamente identitário. Se é verdade que ser negro e rico é melhor que ser pobre, é ainda mais verdade que ser pobre e negro é incomparavelmente pior do que ser pobre e branco, porque há mais portas fechadas. Se é verdade que ser mulher qualificada é melhor do que ser homem com baixas qualificações, também é verdade que as mulheres com baixas qualificações encontram dificuldades muito acrescidas para a sua sobrevivência. E é por isso que não há desvio de agendas, há continuidade e coerência. Também é uma luta identitária a da extrema-direita que quer reservar o mundo ocidental e alguns direitos apenas aos homens brancos, preferencialmente cristãos.
Talvez as causas do crescimento do populismo não se possam encontrar em movimentos e preocupações dos últimos 5 anos, mas sim num acumular de processos, tendências e circunstâncias das últimas décadas, nas relações de trabalho, nas expectativas sobre educação, na cultura e espetacularização da política, que em conjunto conduziram a maioria da população a um salve-se quem puder muito coerente com a ideologia trumpista.
No início deste século, causou estranheza e indignação que nos entrasse pelas televisões um tipo de programas em que pessoas ficavam fechadas em casa com uma câmara a registar todos os seus movimentos e falas, cabendo ao público e aos concorrentes votar expulsões. Era o começo dos absurdos reality-shows, hoje normalizados nas suas vastas variantes. Para além da violação da privacidade, do convite à competitividade desregrada entre indivíduos em função do seu caráter, iniciou-se um processo de nivelamento por baixo da qualidade da programação no meio que, mais rapidamente, chegava a toda a população – a televisão. Lembro-me que, aqui em Portugal, se começou a discutir a legitimidade da agressão física em direto, numa banalização da violência num contexto de um “concurso” em que ganharia o melhor. O Big Brother será o mais legítimo antecessor do X, do TikTok, do Telegram, onde tudo é legítimo e válido, sobretudo o insulto boçal e a mensagem rápida e sem fundamentação.
Na política, a onda cor-de-rosa das famílias reais contaminou a atuação dos eleitos em democracia. Os líderes partidários têm de ser bonitos, bem vestidos, apresentar as suas famílias felizes, deixar-se fotografar nas suas férias, como se as suas vidas privadas valessem mais do que as suas ideias. Afastou-se o debate ideológico em detrimento de uma cultura da superficialidade e do imediatismo, que leva a que personalidades como Trump e outros populistas digam o que vão fazer, mas nunca se preocupem em mostrar como o vão conseguir, porque o que interessa é o “tchan” do momento e o soundbite da hora.
Na educação estimula-se a competitividade individual, convidando os jovens a ser o melhor da turma, vendendo ilusões com rankings que criam ideias de que as instituições públicas não servem bem os alunos, criando-se bolhas de populações escolares em que os benefícios da convivência entre perfis diferentes são perdidos. Constrói-se uma escola de falsas meritocracias em detrimento de comunidades de aprendizagem em que todos são responsáveis por todos. Que estes rankings, cá dentro e lá fora, tenham sido começados por órgãos de comunicação social sob lideranças neoliberais não surpreende. Na criança inscreve-se a mensagem subtil: isto é apenas sobre ti e sobre tu seres melhor do que todos os outros.
A desregulação do mundo do trabalho promovida pela direita, sem contratação coletiva, com um discurso de flexibilização das relações laborais, em que horários, estabilidade, conciliação entre vida pessoal, familiar e profissional se tornaram uma quimera, levou a uma normalização da precariedade, geradora de descontentamento, mas silenciadora da negociação. A década das políticas de austeridade – de direita – esmagou a classe média, fazendo disparar as desigualdades a partir da crise financeira da primeira década deste século. A mão invisível do mercado a gerir a habitação por todo o mundo gentrificou as cidades, retirou autonomia e realização aos jovens.
Em conjunto, estas marcas da direita neoliberal, associadas a horas e horas de comentário enviesado, em que a banalização da desigualdade chegou, aqui em Portugal, ao ponto incrível em que uma jornalista como Ângela Silva considera que os filhos e as mulheres de criminosos são responsáveis por terem pais e maridos criminosos, trouxeram-nos aos Trumps desta vida.
Vota-se em populistas porque se cultivou o cada um por si, a resposta fácil aos problemas complexos, a imagem em detrimento da palavra, o quê em vez do como, a superficialidade em vez da profundidade.
Não, não é por a esquerda continuar a sua linha de luta por mais justiça e direitos humanos que Trump ganha. É pela alienação do sentido de solidariedade e de corresponsabilidade comunitária que foi promovida pela direita ao longo de várias décadas. A direita cultivou o individualismo, que tem de se alimentar da identificação de inimigos comuns. Ontem as mulheres, os negros, os gay, hoje os imigrantes, os muçulmanos, os estrangeiros, os trans, amanhã seja quem for o escolhido para novas polarizações.
Woke é um termo que o populismo adora, para assustar e polarizar. É surreal que se aplique a um espectro que vai de Kamala Harris a Lula da Silva, passando por Ursula van der Leyen e pelas Nações Unidas, ou por qualquer pessoa que se situe a partir do centro-esquerda ou que, mesmo sendo de direita moderada, não tenha no seu discurso e nas suas práticas o horror à igualdade para todos.
Posso estar errado, mas falta muito pouco para estes comentadores começarem a dizer que o misógino, racista e radical Trump afinal não é assim tão mau.