
Entre a bruma que se ergue das águas ao amanhecer e os últimos raios dourados que se deitam sobre as margens ao fim da tarde, a Pateira de Óis da Ribeira revela-se mais do que um lugar. É um ser vivo, um espelho líquido onde se refletem séculos de história, lutas de sobrevivência, silêncio sagrado e memória coletiva. É uma geografia emocional. Um ventre aquático que dá e tira, que guarda e expõe, que alimenta e resiste.
Situada no coração do concelho de Águeda, no distrito de Aveiro, a pateira estende-se como uma planície de água doce que toca várias freguesias — mas é em Óis da Ribeira que o seu pulsar mais se sente. Aqui, a natureza encontra uma expressão rara de harmonia, e a comunidade um reflexo profundo da sua identidade.
Uma geografia da água e da alma
A origem da pateira, embora geologicamente explicável, é envolta em um mistério que só os locais compreendem com o coração. Formada pela junção das águas dos rios Águeda, Cértima e por múltiplas linhas de água que serpenteiam as terras baixas da região, a pateira é um organismo vivo de pulsações irregulares — alarga-se com as chuvas, retrai-se nas secas, adapta-se ao tempo como quem sabe esperar.
Nos dias de céu limpo, a sua superfície espelhada parece absorver o azul infinito e devolver em troca o sussurro das aves. Nos dias nublados, assume um tom cinzento e austero, como se quisesse lembrar que a sua beleza é também feita de sombras e silêncio.
História escrita em margens e moliço
Desde há séculos que a pateira molda o quotidiano das comunidades que a rodeiam. Os homens que nela pescavam, de madrugada, nas frágeis barcas de fundo chato, sabiam ler os sinais da água como outros leem cartas ou escrituras. A pesca artesanal foi, durante décadas, o sustento de centenas de famílias, e a apanha do moliço — aquela vegetação aquática recolhida com varas e redes — serviu de adubo natural aos campos agrícolas, muito antes de se falar em sustentabilidade.
Na memória popular ainda ressoam os cânticos das mulheres que lavavam roupa nas margens, o som seco dos remos a cortar a água, o riso das crianças que ali aprendiam a nadar com a liberdade própria dos verões antigos. Em Óis da Ribeira, essas tradições sobreviveram no tempo, tecendo-se com a história local.
Refúgio da vida, palco da contemplação
Classificada como Zona de Proteção Especial (ZPE) no âmbito da Rede Natura 2000, a pateira é santuário para mais de uma centena de espécies de aves. Garças-reais, galeirões, mergulhões, patos-reais, milhafres e cegonhas convivem num ecossistema em permanente mutação. Os juncais, as ilhas flutuantes de vegetação, os canaviais e os amieiros são muito mais que cenário: são abrigo, alimento, berço e muralha.
Quem percorre os passadiços de madeira em Óis da Ribeira, com o olhar atento e o coração sereno, percebe que há ali uma ordem silenciosa, um equilíbrio frágil entre o visível e o invisível. O som do vento entre os salgueiros, o bater das asas por cima do espelho de água, o murmúrio do tempo que passa sem pressa.
Lugar de encontros entre o homem e o sagrado
A pateira é também território simbólico. Para os que nasceram e cresceram com ela à vista, é quase uma entidade. A ela se atribuem poderes — há quem diga que cura, que guarda segredos, que ouve orações. Na literatura local, na arte popular, nos azulejos que decoram as casas antigas ou nos brasões municipais, a pateira surge como metáfora da fertilidade, da abundância e da resistência.
A barca da pateira, com a sua silhueta inconfundível, é ícone de identidade. É a embarcação da memória, da lida diária, da travessia interior.
Desafios de um paraíso ferido
Mas nem tudo é contemplação. Como todos os paraísos terrenos, a pateira não está imune às ameaças do mundo moderno. A pressão agrícola, as descargas poluentes, a proliferação de espécies invasoras como o jacinto-de-água, a erosão das margens e a sedimentação constante constituem riscos reais à integridade deste ecossistema.
Apesar dos esforços do Município de Águeda, em especial através da valorização de Óis da Ribeira como polo ambiental e turístico, os desafios persistem. O equilíbrio é frágil, e a sua defesa exige mais do que medidas técnicas: exige um compromisso ético com a paisagem, com a história e com as gerações vindouras.
Lugar de memória e de futuro
Hoje, a Pateira de Óis da Ribeira é também espaço de descoberta e lazer. Os trilhos pedestres, as zonas de observação de aves, os passadiços, as áreas de descanso, as iniciativas culturais e desportivas que ali acontecem são expressões de um novo olhar: um olhar que reconhece na natureza não apenas um recurso, mas um valor absoluto.
É cada vez mais um destino procurado por quem busca autenticidade — e encontra ali um território onde a água guarda a memória dos que nela viveram e ainda vivem, como se cada onda fosse uma sílaba de uma história interminável.
Epílogo aquático
A pateira não se visita — contempla-se. Não se consome — respeita-se. É um espelho que nos devolve o que somos: frágeis, passageiros, mas também profundamente ligados à terra e à água.
Num tempo em que tudo parece acelerar, a Pateira de Óis da Ribeira ensina a abrandar, a escutar, a estar. A reconhecer no simples ato de observar uma ave, no reflexo das nuvens, ou no silêncio das margens ao fim da tarde, uma forma de reencontro com o que temos de mais essencial.
Porque ali, entre o céu e a água, o tempo tem outro ritmo. E a alma, finalmente, encontra espaço para respirar.
Fotos: Ryan Rubi (TVC/Notícias de Águeda)