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Renato Ferreira
Professor do ensino básico e secundário. Poeta e fotógrafo amador nos tempos livres. Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas pela FLUP e Pós-graduado em Supervisão pedagógica e formação de formadores.

Ou de como vamos sendo suavemente enganados pelas aparências e pela banalização do que não devia ser tolerado.

O conceito de democracia tem a sua primeira manifestação na Grécia clássica, em Atenas. Aí, os homens, cidadãos livres, atenienses de segunda geração, pelo menos, tinham o direito de manifestar a sua posição em assuntos públicos. Deste poder estavam excluídas as mulheres, os escravos e os metecos (estrangeiros). Aos nossos olhos, aos olhos da nossa época, podemos considerar que a democracia helénica era deficiente, mas passados mais de 2500 anos, pode-se considerar que constituiu uma enorme evolução face aos sistemas predominantes na época, como a tirania.

Certo! E depois disso?

Depois, podemos relembrar a história de praticamente todo o século XX. Os países sob a tradição cultural e social ocidental foram alargando as fronteiras do voto. As sufragistas, as mulheres que reclamavam o direito de voto, foram ganhando exposição pública nos países anglo-saxónicos e francófonos, através de uma luta, por vezes sangrenta. Elas foram abrindo o inevitável percurso que demorou a alcançar, como foi o caso de Portugal.

Já quanto aos estrangeiros (migrantes ou refugiados), é uma situação ainda mais problemática. Se na União Europeia, por exemplo, até se pode ser eleito sem se ter nascido nesse país, em muitos outros casos tal é completamente impensável. Veja-se o que se passa recentemente na Nova Caledónia: apesar de ser uma Comunidade ultramarina francesa, os correntes tumultos nasceram da recusa por parte dos nativos Kanak da proposta de alteração legislativa para que os habitantes que, não tendo nascido lá, aí residam há mais de dez anos pudessem votar. Meia dúzia de mortes (no momento em que escrevo estas linhas) e prejuízos avaliados na ordem dos dez dígitos é o balanço. Paradoxalmente, de todas as vezes que a independência foi referendada no território, os mesmos nativos recusaram-na.

Atribui-se a Voltaire, mas é na realidade da sua biógrafa, Evelyn Beatrice Hall, a seguinte frase, aproximadamente, estandarte da noção de liberdade de expressão (logo de espírito democrático): Posso não concordar com nenhuma das palavras que dizes, mas bater-me-ei até à morte para que as possas dizer

Ao aproximarmo-nos do final do primeiro quartel do século XXI, assiste-se a uma clivagem cada vez mais profunda e inultrapassável entre noções (ou melhor, interpretações) do que é a democracia e do que ela suporta: a liberdade tout court e a liberdade de expressão.

Por um lado, temos os que querem impor fronteiras ao que se pode dizer ou fazer (a deriva perigosa é a que só tolera aquilo com que se está de acordo e se interdita tudo o que é divergente); pelo outro lado, temos os paladinos do absoluto (a deriva perigosa é a que não encontra limites, nem pela ofensa, nem pela violência).

Sem soluções ou conclusões fechadas, mas com um sincero pavor aos extremismos, termino com a questão do título: se a tua liberdade começa onde acaba a minha, onde é que acaba a tua para começar a minha? É um velho chavão do senso comum, eu sei. Mas talvez seja exactamente isso que está a faltar ao debate: bom senso.