Em Brideshead Revisited, quando Charles Ryder descobre que irá regressar ao lugar da sua juventude, é com a melancolia da reconciliação falhada que o faz:
— Foi aqui, aos trinta e nove anos, que comecei a tomar consciência do tempo.
O seu regresso prova esta verdade inelutável: nunca se torna verdadeiramente a casa. E esta é a história que se está a repetir com João Félix.
Os ingredientes são os certos para o desastre. O optimismo temerário. A ingenuidade imprudente. E, claro, o clássico desespero dos que não querem largar o poder, e dão tudo o que têm à mão: algum dinheiro, poucas ideias, as saudades cegas do adepto; essa personagem crédula, tão manipulável quanto bela.
Tudo isto já foi escrito e reescrito. Passado a limpo. Desliza no fio do tempo com o fastio das inevitabilidades. E nós vamos assistindo. Nas páginas dos jornais, em câmara lenta, sem que nenhuma clarividência detenha a estupidez que marcha triunfante: a idealização pueril de que o herói que parte regressará, um dia, para reviver as glórias passadas. Não é assim. Nunca foi.
Quando, depois de Tróia, Ulisses regressa, Ítaca está desfigurada. Ele próprio é outro. Um estrangeiro na sua própria casa; o irreconhecido. Não é ao lar que volta. É a um festim de membros decepados.
Na Parábola do Filho Pródigo, é verdade que o filho mais novo é recebido em júbilo. Geralmente detemo-nos na hermenêutica do Pai. É Ele a personagem do grande gesto. Que esquece o que passou para abraçar o filho amado. Mas o irmão mais velho não achou grande graça. Talvez o regresso do outro ameaçasse a ordem que ele sustentava em silêncio. (Uma questão de balneário, portanto.)
Mas falemos dos regressos a casa que interessam. Dos verdadeiros. Os que nos amarram o coração; os nossos. Falemos de Valdo e de Mozer; de Rui Águas e Nuno Gomes; de Rui Costa e — com luvas de pelica e dez vénias até estalar a espinha — Fernando Chalana.
Ora bem. Não se pode dizer que tenham corrido, propriamente, mal. Valdo, digno e sereno como só ele, tinha o dom de disfarçar o peso da idade com a leveza da verdade, daquele número 10 estampado nas costas. Mozer chegou com estatuto, num regresso que serviu, sobretudo, para encerrar um ciclo. Longe da glória da primeira passagem, mas competente (até porque Mozer não sabia ser de outra maneira). Águas filho voltou com a mácula azul-obscena dos dois anos passados nas Antas, mas foi melhor marcador. Jogou como sempre. Jogou bem; era o meu ídolo. Nuno Gomes e Rui Costa não desiludiram, mas foram regressos mais emocionais e simbólicos, no contexto de equipas sofríveis e descentradas. Finalmente — as luvas, as vénias — Chalana, o mais triste de todos eles: a alma estava lá toda, inteira, mas o corpo, partido, já não respondia.
O leitor pode dizer — com razão, caro leitor, com razão — “Mas pode correr bem!”. Sim, pode: em Lucas 15, 32, o Pai pede regozijo, e diz que o irmão estava perdido e se encontrou. Mas depois disso não se diz mais nada. Depois disso sabe-se lá...
...Félix é Fénix ou é ferida?
Eu acho que é ferida. E explico. Quem vê caras não vê corações, sim, é verdade. Mas também é verdade que quem vê aquele sorriso artificial, entre a insegurança e a pertinácia, aquele jeito jingão, aquela névoa nos olhos, vê um rapaz deslumbrado. Numa bebedeira de fama que, como é evidente, ninguém aguenta aos 18 anos. E vê o abismo. Vê Porfírio. Vê Dani. Dois anjos negros do futebol nacional que pairam sobre Félix como suportes num brasão. Figuras tutelares que sustentam uma espiral em sentido descendente.
Tal como eles, João Félix padece do complexo de Marlon Brando, aquela coisa que dá em gente que não se dá bem em papéis secundários. Só o papel principal. É uma categoria rara. E perigosa. É preciso saber lidar com estes jogadores com muito talento e muita vontade de estar noutro sítio qualquer.
Curiosamente, no caso de Porfírio e de Dani, os períodos em que jogaram melhor tiveram um denominador comum: Paulo Futre. Outro rebelde. Outro génio. Que, talvez por ter cumprido aquela espécie de serviço militar obrigatório que foi jogar no Porto dos anos 80, soube canalizar essa voragem para dentro do campo. Para as batalhas certas.
Futre compreendia-os. Compreendeu Porfírio no West Ham, compreendeu Dani no Atlético de Madrid. E eles responderam. Mas e Félix? Quem é o seu Futre, o seu Zóssima, o seu Gandalf? Quem o compreenderá?
Num velho poema de D. Tolentino, a certa altura, diz-se:
com o tempo / apenas se consegue chegar aos degraus da frente
Eis onde estamos. No tortuoso edifício da glória, João Félix não passa do saguão. Está lá, preso, sem saber como sair. A ideia de um regresso à fonte é a mais velha ideia de sempre. Tão tola quanto o que vem depois.
Manuel Fúria é músico e vive em Lisboa.
Manuel Barbosa de Matos é o seu verdadeiro nome.
E escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.
‘Odeio Futebol Moderno’ é um espaço de opinião sobre atualidades futebolísticas da perspetiva de um romântico entalado num tempo em que não se reconhece.