
“Comecei como comissário de pista em 1991. Desde então fui subindo, categoria a categoria, até à Fórmula 1”, recorda. O percurso até à elite da FIA foi longo e feito sobretudo na base da experiência acumulada — uma progressão que o próprio valoriza e aconselha a quem quer entrar neste mundo: “Não se começa pela Fórmula 1. Primeiro, é preciso ganhar calo noutras competições.” Três décadas depois de ter começado como comissário de pista no Autódromo do Estoril, em 1991, Rui Marques é o homem que dá luz verde às maiores corridas do mundo.
Português, engenheiro e apaixonado pelo automobilismo, tornou-se em 2024 diretor de corrida da Fórmula 1 — um cargo de enorme responsabilidade e visibilidade. Nesta entrevista ao SAPO, fala sobre o caminho que percorreu, os bastidores de um Grande Prémio e a importância de manter a segurança sempre à frente da velocidade. Apesar da responsabilidade extrema do cargo, Rui Marques garante que a prioridade continua clara: a segurança. “O mais difícil é sempre decidir parar uma corrida. Mas quando é necessário, tem de ser feito.” E é nesse equilíbrio entre o risco e a espetacularidade que se joga a autoridade de um diretor de corrida.
Nesta entrevista, Rui abre o "Race Control" e explica como se prepara uma prova, o impacto que tem uma nova equipa e até o que falta para Portugal voltar a receber um Grande Prémio.
Como é que começa o seu percurso no mundo do automobilismo?
O meu início foi bastante semelhante ao de muitas pessoas ligadas a este meio: comecei como comissário de pista, no Autódromo do Estoril, em 1991. Tinha acabado de fazer 18 anos, que era a idade mínima, e entrei graças a um amigo de escola cujo pai já estava envolvido nas corridas. Aquilo que começou por curiosidade rapidamente se transformou em paixão. Fui evoluindo naturalmente, participei em várias fórmulas no autódromo, e acabei por ir recebendo formação como comissário técnico, o que me permitiu progredir. Fui delegado técnico, comissário desportivo e, mais tarde, diretor de corrida. O percurso passou pelas categorias de base até chegar à Fórmula 2, Fórmula 3 e, agora, à Fórmula 1.

Consegue explicar, de forma simples, o que faz um diretor de corrida?
O diretor de corrida é o responsável máximo por garantir que toda a prova decorre com segurança e de acordo com os regulamentos. Tomamos decisões como parar um treino, lançar um safety car, decidir se a pista está em condições ou não. Também somos nós que supervisionamos a preparação de todo o evento, dias antes da corrida começar. Mas há um aspeto importante que muitas vezes é mal compreendido: não somos nós que atribuímos penalizações. O nosso papel é identificar situações irregulares e encaminhá-las para os comissários desportivos, que depois decidem se é caso de penalização ou não.
Como têm corrido os primeiros meses nesta nova função, desde o início da temporada?
De forma bastante positiva. É claro que há corridas mais intensas do que outras e circuitos com desafios maiores, mas no geral tem corrido bem. O feedback tem sido encorajador, o que é sempre importante, principalmente num primeiro ano. Temos sempre de estar atentos a tudo — é um trabalho exigente, mas muito gratificante.
Como é que se prepara, na prática, um fim de semana de Grande Prémio?
A preparação começa meses antes. Por exemplo, recebi recentemente um e-mail com planos de obras no circuito de Abu Dhabi, que só vai acolher a corrida em novembro. Isso mostra como tudo é planeado com antecedência. Há um trabalho prévio muito técnico — desde adaptações na pista até à análise de segurança. Normalmente, chegamos ao circuito na terça-feira da semana da corrida. Na quarta já temos várias reuniões, na quinta fazemos a primeira inspeção detalhada à pista. Cada momento está definido com rigor: reuniões com equipas, verificações de segurança, coordenação com os organizadores locais. E quando uma corrida termina, começamos logo a trabalhar na seguinte — muitas vezes, já a pensar no ano seguinte.
Quais são as decisões mais críticas que passam diretamente por si durante uma corrida?
As decisões mais sensíveis são sempre as que envolvem a neutralização da corrida: lançar o safety car, acionar o full course yellow ou, em último caso, mostrar bandeira vermelha e parar a prova. Este último é sempre o mais difícil, porque implica que a situação é mesmo grave. Mas são decisões que têm de ser tomadas com base em critérios objetivos, com foco total na segurança. Felizmente, temos ferramentas e uma equipa preparada para reagir rapidamente a qualquer cenário.

Houve alguma situação mais difícil que tenha vivido em corrida?
Sim, já houve várias. Lembro-me particularmente de uma prova de Fórmula 3, no ano passado na Áustria, em que houve uma invasão de pista por manifestantes ambientalistas. É o tipo de situação para o qual temos planos de contingência, mas que exige uma resposta rápida e serena. Mais recentemente, já em Fórmula 1, enfrentámos um problema de eletricidade no Race Control — uma falha que podia comprometer toda a operação de controlo. Nessas alturas, temos de ativar os nossos planos de emergência e manter a calma. Nunca podemos entrar em pânico. E depois de cada corrida fazemos um “full meeting” para rever tudo o que correu menos bem e ajustar o que for preciso.
Acabar uma corrida atrás do safety car é frustrante?
É, claro que é. Sobretudo para os fãs e para os próprios pilotos. Mas por vezes não há alternativa. A corrida tem um número de voltas definido e há regras a cumprir. Por exemplo, numa das últimas provas, eu precisava de mais três voltas para conseguir retirar um carro em segurança, reorganizar a grelha e lançar bandeira verde. Não havia tempo. Por isso, mesmo que o carro seja retirado rapidamente, ainda há procedimentos obrigatórios, como deixar os carros com uma volta de atraso ultrapassarem. É frustrante, mas faz parte da lógica da segurança e do regulamento.
As equipas estão todas muito próximas em termos de nível?
Sim. A Fórmula 1 é uma luta pelo detalhe. Uma décima de segundo aqui faz toda a diferença. Todas as equipas estão num patamar elevadíssimo — é difícil encontrar amadorismo neste mundo. E em reuniões com as equipas, sente-se que todas estão ao mesmo nível de exigência e conhecimento.
Estava presente quando o Ivan Domingues venceu uma corrida de sprint e tocou o hino português?
Estava, sim. Fui ao pódio cumprimentá-lo pessoalmente. Já o conhecia, aliás. Dei-lhe formação no início do ano — uma sessão extra que fazemos com pilotos de Fórmula 2 e 3 sobre procedimentos e segurança em fins de semana de Fórmula 1. Fiquei muito contente pela vitória dele.

Vão existir alterações importantes no próximo ano?
Sim, já estão a ser preparadas. Vamos ter uma nova equipa e um novo circuito, em Madrid. O impacto logístico é significativo, porque tudo na Fórmula 1 é feito em grande escala. Mas o planeamento já está em marcha para integrar estas mudanças com sucesso.
Acredita que Portugal pode voltar a receber a Fórmula 1 num futuro próximo?
Para 2026 não será, porque o calendário já está fechado. Mas como vimos com as corridas no Algarve, o “impossível” não existe. É preciso vontade política e investimento, porque montar um Grande Prémio custa bastante dinheiro. Mas o retorno, direto e indireto, é elevado. A Fórmula 1 leva milhares de pessoas a um país e tem uma visibilidade mediática gigante. Tudo depende de vontade e recursos.
Já teve contacto com fãs ou portugueses em outros circuitos?
Sim, é bastante comum. Encontro comissários portugueses que fazem corridas como voluntários noutros países, e também fãs que aparecem para ver os Grandes Prémios. Alguns pedem-me ajuda para se tornarem comissários — tento sempre ajudar dentro do possível, embora não tenha controlo direto sobre essas decisões.
Acha que a série da Netflix trouxe mais fãs à Fórmula 1?
Sem dúvida. A série Drive to Survive abriu as portas da modalidade a um público novo, que talvez não fosse naturalmente atraído pelas corridas. E tudo indica que o novo filme sobre a Fórmula 1 também terá esse efeito. Os circuitos estão praticamente esgotados em todas as corridas — isso é um reflexo direto desse interesse renovado.
Quando não está em corrida, consegue voltar a Portugal?
Sim, sempre que possível. Normalmente viajo de regresso à segunda-feira após a corrida e estou em Portugal até à terça seguinte. No verão, há uma paragem mais longa e tento aproveitar para descansar um pouco. Nunca é possível desligar a 100%, mas ao menos dá para recuperar.
Quais são os seus objetivos agora que chegou ao topo?
Neste momento, o principal é consolidar a minha posição e ganhar o respeito de todos os envolvidos — equipas, pilotos, organizadores. O primeiro ano é sempre o mais desafiante. Embora as corridas sejam sempre corridas, cada categoria tem os seus procedimentos próprios. Aqui, o nível de detalhe e exigência é ainda mais elevado. Não sinto que falte nada específico — agora é continuar a dar o melhor e manter o prazer de estar neste cargo.
Esta transição para diretor de corrida da F1 mudou a sua forma de ver o trabalho?
Mudou na preparação. Nas outras categorias, o diretor de corrida chega e encontra tudo pronto. Na Fórmula 1, é o contrário — somos nós que temos de garantir que tudo está preparado. Essa responsabilidade é muito maior. Claro que a segurança continua a ser a prioridade absoluta, como sempre foi. E, apesar de a forma de conduzir uma corrida ser parecida, o grau de exigência aqui é de outro nível, tanto por parte das equipas como em termos de tecnologia, regulamentação e detalhe.
Que conselho deixaria a quem quer trabalhar na Fórmula 1?
É importante começar por outras categorias. Ganhar experiência fora da Fórmula 1 é fundamental. Entrar diretamente na F1 é difícil — há dois caminhos: ou se entra muito jovem e se vai subindo dentro da estrutura, ou se ganha experiência noutras categorias até surgir uma oportunidade. E mais importante ainda: não fechar portas. O automobilismo tem muitos campeonatos de altíssimo nível que ajudam a crescer profissionalmente.