
Faz algum tempo, mas Gianni Infantino disse-o, coincidentemente em Teerão, quando se distribuía em visitas mundo fora, atarefado a visitar muitas capelas durante a sua campanha para presidir à FIFA. “É muito claro que a política deveria manter-se fora do futebol e o futebol deveria ficar fora da política”, declarou, em 2016, o hoje líder da instituição, contraditório entre o dito e o feito. A sua última visita à Casa Branca, em Washington, ilustrou essa dualidade quando o suíço garantiu que as proibições de entrada no país impostas pelos EUA, para já, a 19 nacionalistas (poderão ser 55), “não são uma preocupação”, antes de rir, gargalhar até, quando Donald Trump proclamou que Infantino “nada sabia” sobre essas travel bans.
As declarações do presidente dos Estados Unidos, com quem, no olho público, Gianni Infantino vai nutrindo uma perceção de ter uma relação tu cá, tu lá, surgiram dentro da Sala Oval, com Trump sentado à secretária e os jogadores da Juventus em pé, nas suas costas. Convidados a irem à Casa Brancas, os jogadores não sabiam, admitiriam depois, do que se tratava exatamente a visita na véspera de defrontarem o Al-Ain, do Abu Dhabi, no Mundial de Clubes. Com um batalhão de jornalistas na sala, a maioria norte-americanos e alheios a assuntos desportivos, Trump falou sobre Israel, o conflito com o Irão e as negociações com a nação do Médio Oriente, conseguindo ver uma aberta para questionar dirigentes da Juventus sobre se uma mulher poderia jogar na equipa que ali estava.
A ocasião “foi estranha”, assim descrita por Timothy Weah, jogador norte-americano da Juventus. “Quando ele começou a falar da política com o Irão e tudo isso, fiquei, tipo… Eu só quero jogar futebol, man”, confessou. A presenciar a plena mescla do que a FIFA propaga querer evitar estava Infantino, o “grande amigo” de Donald Trump, descrito assim pelo presidente a cumprir o segundo mandato na Casa Branca, o coração da política do país onde entrou uma das 32 equipas de futebol a competirem no Mundial de Clubes.
Separados por quase uma década, estes episódios nas capitais iraniana e norte-americana expõem a incoerência da FIFA. Mais ainda, mostram a encruzilhada que a entidade poderá ter para resolver daqui a pouco menos de um ano.
De repente, o líder dos EUA que dera, a si próprio, as próximas duas semanas para pensar sobre a ação a tomar quanto ao Irão, demorou meros dias até lançar, no sábado, uma série de ataques aéreos a três bases nucleares iranianas. Ao bombardear a nação do Médio Oriente, fez os Estados Unidos entrarem na guerra entre Israel e Irão, um cenário com implicações futebolísticas, mesmo que não imediatas: Donald Trump deu a um dos anfitriões do próximo Campeonato do Mundo, em 2026, um conflito com um dos países já qualificados para o torneio, que prometeu retaliar com “uma resposta decisiva”.
A Team Melli, alcunha da seleção iraniana, tornou-se, em março, a sexta a garantir a presença na prova. Já aí as dúvidas rodearam de pronto a novidade, disparados pelo facto de o Irão ser uma das nações visadas nas restrições de entrada nos EUA impostas pela administração de Trump - mesmo sendo atletas de alta competição, convocados para representarem o país oficialmente no Mundial, teriam os jogadores um visto a autorizá-los a competir nos EUA? E se Israel - está num grupo de apuramento com Itália, Noruega, Estónia e Moldávia - também se qualificar? De novo, por enquanto nada se sabe além da breve resposta dada por Gianni Infantino, ao garantir que as restrições “não são uma preocupação”.
Sê-lo-á, agora, a guerra aberta entre Irão e Israel, país que os EUA decidiram apoiar formalmente e na prática, mas não existe qualquer regra escrita que norteie a atuação da FIFA no caso de duas nações em conflito coincidirem no mesmo torneio. Menos ainda se uma for a organizadora da prova.
Nenhuma referência existe a guerra ou conflitos armados nos Estatutos da FIFA, pelo qual a entidade se rege. O artigo 4.º impõe aos seus membros a “não-discriminação, igualdade e neutralidade” e proíbe-os atentar contra estes valores, frisando que a entidade “permanece neutra em matérias de polícia e religião”. A FIFA pode “suspender associações que violem as suas obrigações” com base no artigo 16.º e também dita, no 19.º, que cada membro tenha de “gerir os seus assuntos de forma independente e sem influência de atores externos”. Em 2022, a FIFA assentou nos dois primeiros artigos a decisão de suspender a Rússia das suas competições após a invasão da Ucrânia, apesar de o regulamento ser vago, cheio de espaços cinzentos e suscetível a várias interpretações.
Sem referências diretas a situações de conflito, é mais do que incerta a possível atuação da FIFA, ainda mais quando entramos no campo da futurologia, sem sabermos por quanto tempo, nem que consequências terá, a atual guerra. A entidade não quis comentar este imbróglio, nem respondeu, até ao momento, às questões da Tribuna Expresso sobre que medidas poderá tomar para atenuar os efeitos da coexistência de Irão e EUA - eventualmente, também de Israel, caso se qualifique - no próximo Mundial.
Nem Gianni Infantino ou Donald Trump se pronunciaram, desde o ataque norte-americano, acerca da presença do Irão no Campeonato do Mundo. Sem bolas de cristal nem cartomancia, mas fiando um parágrafo nos hipotéticos cenários, a FIFA poderia, mantendo-se o conflito, por exemplo, colocar a equipa do Irão a disputar a fase de grupos do Mundial no México ou no Canadá, os outros co-organizadores. Caso de lá saísse, contudo, já seria complicado manter a seleção fora dos EUA, ou impedi-la de cruzar-se com os representantes do soccer na fase a eliminar.
As flores e a fotografia conjunta de 1998
Com o tempo, Steve Sampson sentiu arrependimento. Fiel à sua função, o treinador remeteu-se ao futebol e antes do jogo, como ao intervalo, falou aos jogadores de tática, movimentos e jogadas. Cingiu-se ao jogo, limitou-se a abordar o que acontecia no campo. “Acredito que hoje teria feito de forma diferente. Nos treinos dos dias anteriores, as minhas palestras teriam sido mais motivacionais do ponto de vista político. Foram só futebol e nada mais”, confessou, mais tarde e à CNN, o selecionador norte-americano em 1998, no Mundial que sorteou os EUA e o Irão, países cujos governos se antagonizavam há décadas, no mesmo grupo.
Era a primeira vez que se defrontavam as seleções das nações que nada queriam uma com a outra desde 1979, quando a Revolução Islâmica depôs o Xá iraniano, Reza Pahlavi, cara do regime monarca apoiado pelos EUA, em favor do sistema secular do ayatollah Ruhollah Khomeini. Foi a eclosão de um clima anti-americano, igualmente anti-ocidente, no Irão, subsequente também à crise dos 66 funcionários da embaixada norte-americana, em Teerão, mantidos reféns durante mais de 400 dias durante os protestos de estudantes iranianos, que cercaram o edifício. Na década de 80, o antagonismo acentuou-se quando o Irão, invadido pelo Iraque, acusou os Estados Unidos de venderem armas ao país.
A tensão geopolítica inundou o pré-jogo. Ressuscitou-se a alcunha posta pelo ayatollah aos EUA e os iranianos chamaram ao adversário de “Grande Satã”. Sampson lembra-se da “incrível quantidade de segurança” e Mehrdad Masoudi, então diretor de comunicação da seleção iraniana, indicou à CNN que houve 150 militares no Estádio Gerland, em Lyon, “algo sem precedentes num jogo de Mundial”. Jogadores do Irão, como Khodadad Azizi, abraçaram a carga geopolítica. “Muitas famílias de mártires esperam que ganhemos”, disse antes do encontro. “Nós não politizámos o jogo, mas o Irão, sim, até ao extremo”, queixou-se o mesmo Sampson, ao “The Guardian”. O que se assistiria no relvado quebrou com esse espírito.
Apesar de serem instruídos pelo regime iraniano a nem cumprimentar os adversários, os jogadores da seleção iraniana levaram, cada um, um ramo de flores brancas, a cor da paz, para entregarem aos norte-americanos. Antes da partida, os futebolistas entremearam-se, munidos de sorrisos e abraços, posando para uma foto de comunhão. No final, o Irão venceu, por 2-1. No prélio e na ressaca do estádio, viram-se adeptos de ambos os países a conviverem, sem quezílias. “O desporto e a política estão completamente interligados”, recordaria Steve Sampson, o selecionador dos EUA. No caso, em nada perturbou o jogo jogado.
Os protestos de 2022
Há três anos, o lume nunca brando estava com outra intensidade. O Mundial do Catar repetiu a coincidência de os países ficarem agrupados e o torneio já decorria quando a conta oficial da seleção dos EUA, no ainda chamado Twitter, publicava uma imagem da classificação do Grupo B. No caso do Irão, partilhou uma versão sem o símbolo da República Islâmica no centro da bandeira. A federação norte-americana justificou a decisão como uma demonstração de “apoio às mulheres” iranianas que lutavam “por direitos humanos básicos”. As ruas do Irão enchiam-se, à época, de protestos contra a morte de Mahsa Amini, após ser detida pela Polícia da Moralidade por não usar o hijab de forma apropriada.
Criticada, mais tarde, pela veemência dos órgãos de comunicação estatais do Irão, ao ponto de defenderem a expulsão dos EUA do torneio, os responsáveis da federação pediriam desculpa. No seu primeiro jogo do Mundial, os jogadores iranianos não cantaram o hino nacional contra a Inglaterra e o silêncio foi encarado como um ato solidário para com as manifestações que decorriam no país.
Na véspera de o futebol fazer coincidir, de novo, as seleções do Irão e dos EUA, os jornalistas iranianos arrastaram a conferência de imprensa de antevisão para um exercício de perguntas geopolíticas, sem qualquer bola à mistura. Quando o selecionador, Gregg Berhalter, surgiu ladeado por Tyler Adams, o capitão, ambos foram cercados com questões sobre o racismo dentro das fronteiras dos EUA, o suposto desinteresse da população norte-americana na sua seleção ou porque não pressionarem o governo acerca do posicionamento dos navios de guerra do país perto do Irão.
No campo, ganhou, por 1-0, a seleção da nação a viver um interlúdio de Donald Trump. No rescaldo, vários americanos consolaram os adversários de cabisbaixo, amparando-os com um abraço. Carlos Queiroz, selecionador do Irão, diria após a partida: “Não é fácil conviverem com ameaças. Num dia são heróis do povo, no outro abrem o Instagram e querem matá-los.”
No último palco-mor organizado pela FIFA, fiel defensora da ideia de que o futebol e a política não se misturam, mal se falou da modalidade quando iranianos e norte-americanos se encontraram. A bola juntou o que a geopolítica entrincheirou.